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Não há teto para engordar os rentistas: artigo de Paulo Kliass

Despesa com juros da dívida cresce sem controle – e pode chegar a 600 bi neste ano. Mas garrote fiscal das elites estrangula apenas a seguridade social, estratagema para mais privatizações. Cinismo esconde a verdadeira “farra do orçamento”

Outras Palavras, 29/11/2022

Uma vez confirmados os resultados do processo das eleições de outubro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as especulações e pressões exercidas pelos representantes do sistema financeiro voltaram-se imediatamente para a formação do novo governo. Apesar do silêncio criminoso do Bolsonaro e de sua recusa em assumir publicamente a derrota nas urnas, ampliam-se a cada dia as dificuldades políticas para que ele consiga promover algum tipo de golpe, com a ajuda do comando das Forças Armadas, para impedir a posse de Lula em 1º de janeiro próximo.

A impunidade oferecida pelo atual governo às manifestações golpistas e terroristas que se espalham pelo país afora é preocupante, pois o Brasil corre o risco de permanecer acéfalo durante este final de novembro e todo o mês de dezembro. Na verdade, o núcleo duro do bolsonarismo busca de inúmeras maneiras criar obstáculos de toda ordem para inviabilizar a transição entre governos de maneira civilizada e republicana. Como já é de amplo conhecimento, a orientação de tal estratégia política vem de fora. Steve Bannon e seus comparsas pretendem transplantar para a realidade brasileira o fiasco da tentativa de ocupação do Capitólio, quando a intenção era impedir a posse de Biden como presidente dos Estados Unidos, após sua vitória contra Donald Trump.

No entanto, ao que tudo indica, as preocupações do povo do financismo de nossas terras passam longe desse risco de ruptura institucional ou do agravamento escandaloso do quadro de miséria social e econômica envolvendo a grande maioria de nossa população. Sua influência junto aos grandes meios de comunicação se faz presente por meio de editoriais, artigos encomendados de “especialistas” e matérias exigindo que Lula apresente imediatamente o nome de seu “comandante da economia”. A pressão é pela nomeação de alguém com perfil próximo a seus interesses, de preferência um banqueiro como Henrique Meirelles ou Pérsio Arida.

Financismo pressiona por austeridade irresponsável

Para além do nome do ocupante do cargo, tenta-se criar novamente o conhecido clima de antevéspera do apocalipse, caso suas propostas de natureza conservadora não sejam incorporadas pelo novo governo. Nesse caso, o foco principal é a continuidade da austeridade fiscal a todo custo. Os escribas buscam bombardear qualquer iniciativa que vise flexibilizar as regras draconianas do teto de gastos orçamentários, seja por meio da revogação pura e simples da EC 95, seja através da chamada PEC da Transição ou ainda pela adoção do caminho da simples edição de créditos extraordinários. De qualquer forma, a intenção de Lula é viabilizar nos orçamentos de seu terceiro mandato a existência de recursos para cumprir com o programa para o qual foi eleito. Simples assim.

Os termos utilizados para chantagear o novo governo junto à população são “licença para gastar”, “farra no orçamento”, “irresponsabilidade fiscal” e por aí vai. O financismo não abre mão de sua meta de obtenção de superávit primário e ameaça sempre com uma suposta explosão do endividamento público. Assim, para os setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade, atenuar o quadro trágico do retorno da fome e da miséria não deveria estar dentre as prioridades do novo governo. Tampouco deveriam ser levadas em consideração as iniciativas de recuperação do protagonismo do Estado para viabilizar o retorno do crescimento econômico e a adoção de um Programa Nacional de Desenvolvimento, tal como previsto no artigo 21 da Constituição.

A questão essencial que se coloca para as forças progressistas é recuperar o desastre representado por esses últimos seis anos de destruição do Estado e de desmonte de políticas públicas, levados a cabo pelas duplinhas Temer & Meirelles e Bolsonaro & Guedes. E isso tem um custo econômico e financeiro. A implementação de uma estratégia para recolocar o Brasil nos trilhos vai exigir também um esforço fiscal. Porém, felizmente, temos condições para encarar esse desafio sem maiores riscos de “quebradeira do país”, como bradam aos quatro cantos os arautos da austeridade irresponsável.

Lula precisa de orçamento para governar

Até mesmo economistas do campo conservador admitem que o quadro é favorável a uma retomada da iniciativa do governo federal, pois o governo tem “bala na agulha” para enfrentar a chantagem do financismo. Só quem se coloca contra a revogação do Novo Regime Fiscal e o abandono da política de teto de gastos são os defensores do liberalismo tardio e da privatização completa de nossas instituições governamentais. A tática é a de arrochar o garrote do orçamento cada vez mais para que os serviços públicos sejam assumidos pelo capital privado.

No entanto, o mantra financista de reduzir gastos e cortar despesas apresenta um sério viés. Ao insistir na tecla do superávit primário, esse pessoal procura esconder a verdadeira natureza da composição das rubricas orçamentárias. Para obter esse saldo positivo nas chamadas “contas primárias”, os responsáveis pela economia deveriam comprimir apenas as “despesas não financeiras”, uma tautologia que vem da própria definição do universo primário do orçamento. Daí surgem as propostas de cortes em educação, assistência social, saúde, previdência social, recursos humanos, ciência e tecnologia, saneamento e por aí. Mas não se ouve uma única palavra a respeito do escandaloso nível das despesas financeiras.

As informações a esse respeito podem ser obtidas nas próprias páginas do Banco Central (BC) e da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Por exemplo, a verdadeira “bomba fiscal” é representada por um valor acumulado equivalente a R$ 8 trilhões que os sucessivos orçamentos anuais da União transferiram ao sistema financeiro a título de pagamento de juros da dívida pública. Desde janeiro de 1997 até setembro de 2022, período em que o órgão do Ministério da Fazenda passou a registrar tais informações, os gastos com juros apresentaram uma média anual de R$ 300 bilhões a valores atualizados. Ou seja, essa rubrica apenas ficou apenas abaixo das despesas com benefícios previdenciários.

Despesa com juros só cresce

Mas como a despesa com juros é considerada “não primária”, nada se comenta a respeito de seu crescimento sem controle. O interessante é a desonestidade escandalosa desse pessoal, pois ninguém da turma jamais levantou a voz para exigir a colocação de um teto nos dispêndios financeiros. Por exemplo, ao longo dos últimos três exercícios o comportamento desse tipo de gasto subiu muito acima do que os demais itens orçamentários. Enquanto a retórica da austeridade e do apelo à responsabilidade exigia a presença da tesoura fiscal nas despesas não financeiras, a conta de juros subia 44% entre 2020 e 2021. Os gráficos abaixo são a demonstração do fenômeno. Os gastos saíram de R$ 312 bilhões para R$ 448 bi no biênio. Já a comparação entre 2022 e 2021 tem que ser feita apenas para o período janeiro a setembro, em função da disponibilidade de informações. De toda forma, o crescimento foi de 49%, saindo de R$ 292 bi no passado para alcançar R$ 436 bi nos nove primeiros meses deste ano.

 

A seguir essa tendência, é bem provável que 2022 seja encerrado com um volume de despesas de juros superior a R$ 600 bi. Como Paulo Guedes é chegado na cifra de R$ 1 trilhão, ele já pode botar no currículo que transferiu esse valor aos seus operadores do financismo na segunda metade de seu biênio à frente da economia a título de juros da d´vida pública. A principal razão deste crescimento encontra-se na trajetória de elevação da SELIC, patrocinada pelo COPOM, desde o início de 2021. A taxa oficial de juros saiu de 2% e alcançou os atuais 13,75%. Como os gastos com a dívida pública têm uma ligação direta com o patamar em que se encontra a taxa referencial, a manutenção da política monetária também arrochada implica maior pressão sobre essa rubrica orçamentária.

O elemento complicador nesta equação é a “independência” do Banco Central aprovada em 2021. Graças a ela, o atual presidente do órgão deve permanecer no cargo, assim como a maior parte da diretoria indicada por Guedes e Bolsonaro. Assim, ele pode vir a operar como um sabotador da política econômica do próximo governo. Ao vestir o uniforme desta entidade conhecida por “mercado”, Roberto Campos Neto [presidente do BC] abandona sua missão de responsável pela regulação e fiscalização do sistema financeiro. Enfim, mais um abacaxi para Lula descascar a partir de janeiro.

Paulo Kliass é economista.

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