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Maria Cristina Fernandes: O buraco de rua está no Congresso

Lula polariza com golpismo bolsonarista na retórica da eleição de outubro, mas o alvo real são as bases municipais de um Congresso crescentemente à direita que o mantém refém na Presidência da República

Valor Econômico, 01/03/2024

“Até certo ponto, o que está em causa é o risco de se consolidar no Brasil um estilo não democrático de utilização das regras democráticas…. os ímpetos antidemocráticos estão à mostra.” Não fosse o estilo, o alerta poderia ter sido subscrito por Luiz Inácio Lula da Silva.

O presidente da República, na verdade, era o alvo. O petardo veio de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, ao pedir voto para José Serra em artigo publicado no dia da eleição municipal de 2004.

Vinte anos depois, é Lula quem se vale da ameaça democrática do bolsonarismo como motor para sustentar o mote de polarização e alavancar seus candidatos nas eleições de outubro.

É bem verdade que, desta vez, o alerta é bem mais crível porque sucede a uma tentativa real de golpe. O comportamento de Lula e de FHC demonstra que não é de hoje que se reveste a eleição municipal do caráter “matar ou morrer” da política nacional.

O apelo democrático, porém, é uma arma retórica. O alvo de Lula é a política municipal como base da estrutura de poder que, das Câmaras de Vereadores ao Congresso Nacional, faz do presidente da República, especialmente se for de centro-esquerda, um refém.

O que dá a esta eleição de 2024 mais dramaticidade não é apenas a chance de sobrevivência do bolsonarismo, mas o grau de fragilidade, nos municípios, dos partidos da centro-esquerda ante um crescimento contínuo dos partidos de direita.

A composição do Congresso evidencia que Lula já foi eleito na contramão dessa tendência. Agora parece determinado a fazer convergir as curvas de sua fatia no eleitorado nacional e aquelas das bases municipais dos partidos de centro-esquerda.

Enfrenta um Himalaia de obstáculos. Da desatenção às bases locais da política, como a disputa pelos conselhos tutelares revelou, ao impacto das emendas parlamentares sobre a política municipal.

Dados do Portal da Transparência mostram que os picos de execução das emendas parlamentares aconteceram em 2016 e 2020, anos das duas últimas eleições municipais.

O viés de direita não apenas domina o Congresso como também a execução das emendas parlamentares. Inclusive neste governo. Ao longo do primeiro ano do governo Lula, segundo o Portal da Transparência, entre as seis legendas que mais executaram emendas parlamentares, cinco são de centro ou de direita (PL, PSD, MDB, União e PP).

São partidos para os quais o lançamento de candidaturas presidenciais se tornou acessório. Preferem se concentrar nas disputas proporcionais porque é do Congresso que emana o poder que detêm sobre verbas eleitorais e partidárias e sobre as emendas parlamentares.

A sexta legenda é o PT, que abocanhou 17% das emendas e ficou em terceiro lugar em execução orçamentária no clube dos seis maiores partidos do Congresso. O apelo de Lula por uma eleição polarizada enfrenta uma dificuldade adicional que é seu isolamento no bloco dos grandes partidos.

Os demais partidos de esquerda (Psol, Rede, PCdoB, PV, PSB, PDT), ao contrário do que aconteceu com as novas siglas surgidas nos últimos anos por fusão ou geração espontânea (PSD, Republicanos, União, PP), não ganharam musculatura no Congresso e, em consequência, nem nas prefeituras – ou em decorrência delas.

Sem bancadas para disputar fatias mais representativas dos fundos eleitoral e partidário e emendas parlamentares, os partidos de esquerda se enredam num círculo vicioso que os condena ao nanismo.

Em dois estudos sobre o desempenho dos partidos nas disputas majoritárias e proporcionais no Brasil (desde 1998) e em São Paulo (desde 1985), Or-jan Olsen, um dos maiores especialistas em comportamento eleitoral do país, dá os números dessa armadilha.

Tomou a bancada eleita pelo Maranhão para a Câmara dos Deputados em 2022 por exemplo. Todos os 18 eleitos garantiram 50% dos seus votos em 10% dos municípios do estado. Essa distribuição revela, pelo menos, duas distorções do modelo vigente.

A primeira é que as emendas se destinam a cidades de médios a grandes contingentes eleitorais. Assim, municípios menores e mais carentes ficam desguarnecidos de infraestrutura urbana. A destinação de emendas pelos parlamentares os ignora e priva o Executivo de poder priorizá-los.

A segunda é que os prefeitos e vereadores desses municípios beneficiados ficam comprometidos com aqueles parlamentares que, pertencentes a partidos de maior porte no Congresso, se comprometam a viabilizar mais emendas em seu mandato.

Este é um dos motivos pelos quais Lula, nesta eleição de 2022, não teve mais o mesmo desempenho como pu-xador de votos de 20 anos atrás, quando os recursos em mãos de parlamentares eram menos representativos.

Na sua primeira eleição à Presidência, em 2002, Lula puxou uma bancada de 91 deputados, um crescimento de 54% em relação àquela de quatro anos antes.

Quando Lula disputou seu terceiro mandato, a bancada estava no seu menor patamar em décadas. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 havia permitido ao PT levar para a Câmara apenas 56 deputados federais.

Lula voltou ao poder em 2022, mas a alavancagem de sua eleição sobre a bancada despencou. Com um crescimento de apenas 23%, chegou a 69 parlamentares. Já o PL de Bolsonaro, mesmo sem voltar à Presidência da República, conseguiu um crescimento espetacular de 300% nesta eleição, chegando a 99 parlamentares.

Isso não se deve apenas à eficiência de Bolsonaro como cabo eleitoral, comparável à de Lula, mas à irrigação dos recursos parlamentares do PL e ao poder de atração do PL sobre parlamentares com estruturas municipais sedimentadas.

O PT nunca teve, nas eleições proporcionais e nas disputas majoritárias locais, a proporção de votos que obteve ao longo cie sua história para a Presidência da República, mas a desproporção nunca foi tão grande quanto hoje.

Em nenhum quesito o partido é mais franzino do que na política municipal. É o 11- em número de prefeitos, tendo sido superado pelo PSB e pelo PDT nas duas últimas eleições municipais e até mesmo por um partido que caminha para a inanição, como o PSDB.

É verdade que o PT ganhou três vezes a eleição para prefeito da maior cidade do país – e estará, pela primeira vez, desde 1985, fora da cabeça de chapa da disputa deste ano, devendo compor a vice do candidato do Psol, Guilherme Boulos.

O silêncio de Boulos sobre a comparação de Lula entre a carnificina promovida por Israel em Gaza e o Holocausto, que o levou a ser perseguido por petistas nas redes sociais, tem por base o histórico eleitoral de São Paulo.

Basta rememorar a lista de eleitos para constatar o predomínio do centro e da direita e entender por que Boulos se acautela. Busca não afugentar o eleitorado de centro que, unido à direita, viabilizou sete entre dez eleitos: Jânio Quadros, Luiza Erundina, Paulo Maluf, Celso Pitta, Marta Suplicy, José Serra, Gilberto Kassab, Fernando Haddad, João Doria e Bruno Covas.

O estudo de Orjan Olsen sobre a política paulistana mostra que a ascensão da esquerda, embora tenha se realizado em três gestões (Erundina, Marta e Haddad), não se enraizou na política municipal, como, aliás, tampouco o faz no resto do país.

No Brasil como um todo, diz Olsen, da primeira eleição de Lula, em 2002, até 2012, o percentual de prefeitos eleitos pela esquerda (PT, Psol, PDT, Rede, PCdoB, PV) saiu de 11% para 28%, mas em 2020 já havia caído para 19%, mesmo patamar da bancada nacional de vereadores.

Já em São Paulo, a primeira eleição de Lula não beneficiou o desempenho do partido. Marta Suplicy elegeu-se em 2000, dois anos antes de o presidente petista chegar ao poder. O partido só voltaria à prefeitura em 2012, quando Lula já havia concluído seu segundo mandato.

Na disputa de vereadores, o cenário é ainda mais acachapante e reproduz o que se vê na Câmara de Deputados. Desde que o malufismo refluiu na cidade, o PSDB ocupou seu espaço e passou a polarizar com o PT na prefeitura. Na Câmara Municipal não foi isso que aconteceu.

Os tucanos abriram espaço para quatro partidos, PSD, PL, Republicanos e União, enquanto o PT cedeu cadeiras para o Psol. Desde 2000, quando Marta se elegeu prefeita, o PT passou de 30% dos vereadores para 13% na capital paulista, com oito cadeiras.

Lula nunca teve um correligionário na Prefeitura de São Paulo enquanto esteve no Palácio do Planalto. E não voltará a tê-lo se Boulos vier a ganhar, ainda que o pré-candidato pelo Psol seja mais identificado com o presidente da República do que muitas das lideranças do PT paulistano.

Bolsonaro não foi um ator de relevo na disputa de 2020 pela capital paulistana, embora tivesse vencido a eleição na cidade dois anos antes. Nenhum dos candidatos do segundo turno (Bruno Covas x Guilherme Boulos) o apoiava.

Em 2022, o humor do eleitor paulistano derrotou Bolsonaro na cidade. Daí porque o prefeito Ricardo Nunes (MDB), vice que assumiu a cadeira com a morte do titular em 2021, comporá chapa com um bolsonarista, mas o faz numa aliança envergonhada.

Na manifestação do dia 25 na avenida Paulista o prefeito subiu ao palanque porque não pode desprezar uma liderança que, a despeito de estar no encalço da Polícia Federal, teve 46% dos votos na cidade na última vez em que seus eleitores se manifestaram. Nunes, porém, não discursou.

É assim que o prefeito do MDB pretende fidelizar o eleitor bolsonarista que não desgruda do ex-presidente, por um lado, e, por outro, manter o apoio daquelas forças ascendentes no Congresso, PSD, Republicanos, PL e PP, que querem fazer de São Paulo o maior clique de contenção do lulismo.

Maria Cristina Fernandes é jornalista.

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