Valor Econômico, 05/07/2024
Prefeita de Contagem (MG), maior cidade governada pelos petistas no país, Marília Campos não entra em briga alheia nem fecha alianças pelo retrovisor e defende que partido abra mão de privilégios
Município da Região Metropolitana de Belo Horizonte e segundo maior do estado, com 668 mil habitantes, Contagem foi sede de vitórias históricas do PT iniciadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lá ganhou lá duas vezes, sendo a primeira, em 2002, com 82% dos votos.
Nesses bons anos do PT no município, Marília Campos elegeu-se vereadora, duas vezes prefeita e três vezes deputada estadual. Psicóloga formada na UFMG e bancária desde os 18 anos, idade com a qual ajudou a fundar o PT em Uberlândia em 1982, Marília deixou a prefeitura em 2014, rumo à Assembleia Legislativa na disputa em que seus eleitores também deram o segundo mandato à ex-presidente Dilma Rousseff e colocaram Fernando Pimentel no Palácio da Liberdade.
A cidade, antigo entreposto fiscal da coroa portuguesa para contagem de escravos e cabeças de gado, sempre foi cultivada por Lula. Em visita à cidade, em junho, o presidente disse ter ouvido pela primeira vez a menção a Contagem em 1968, quando seus metalúrgicos lideraram, junto com os de Osasco, a primeira grande greve da ditadura.
Essa relação não impediu que o fosse varrido de Contagem na lufada antipetista que se seguiu ao impeachment de Dilma. Tanto o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddd, quanto Lula perderam lá em 2018 e 2022. A cidade aderiu a Jair Bolsonaro, que ganhou as duas eleições no município, bem como o governador Romeu Zema.
A virada de chave bolsonarista na cidade não impediu a volta de Marília Campos à prefeitura em 2020 para seu terceiro mandato, derrotando um empresário impulsionado pela ascensão da direita no estado, Felipe Saliba.
É bola cantada o mau desempenho do PT em outubro. Os 5.565 municípios brasileiros vão às urnas em meio ao fortalecimento da extrema direita em todo o mundo, de Jordan Bardella, na França, ao ex-presidente Donald Trump, que ficou mais perto de voltar à Casa Branca depois do desempenho paralisante do presidente Joe Biden no primeiro debate da campanha.
Eleição municipal não antecipa resultado das eleições gerais, vide o pífio desempenho do PT em 2020 que não impediu que Lula voltasse ao Planalto em 2022. É nos municípios, porém, que a direita ganha musculatura para as bancadas que exercem o poder de veto no Congresso Nacional.
O partido nunca foi capaz de ter uma presença municipal expressiva no país, mas chegou a eleger mais de 600 prefeitos em 2012, situando-se como a quinta legenda em número de municípios. O impeachment de Dilma e o fortalecimento das engrenagens entre as emendas parlamentares e as bases eleitorais do Centrão desde então ajudaram a minguar o número de prefeituras petistas. Em 2020, o PT ficou em 11º em número de prefeitos, tendo eleito apenas 183, menos até que o PTB, partido sem representação na Câmara dos Deputados.
Um deles foi Marília, que hoje é a prefeita da maior cidade governada pelo PT no país. A trajetória que percorreu desde seu retorno à prefeitura num estado sob a dominância conservadora que reelegeu Romeu Zema (Novo) no primeiro turno e deu vitória apertada para Lula em 2022 mostra que o PT, para reverter o declínio de sua presença nos municípios brasileiros, terá que mudar a cartilha, a começar pela capacidade de estabelecer pontes com o conservadorismo.
Depois de ganhar a eleição com 52% dos votos, Marília, em seis meses, tinha avançado para 70% de aprovação. Da aliança restrita, de apenas três partidos (PT, PCdoB e MDB), avançou para fazer a maioria na Câmara de Vereadores. De 21 cadeiras, apenas quatro são da oposição. Sua chapa à reeleição caminha para ser registrada com 16 partidos (PT, PCdoB, MDB, PV, PP, União, PDT, PSD, PMN, PSDB, PSB, Solidariedade, Rede, Psol, Cidadania, Republicanos).
Ao atrair a centro-direita, isolou o bolsonarismo na oposição. Terá por adversários dois aliados do ex-presidente, os deputados federais bolsonaristas Felipe Saliba (PRD), que derrotou em 2020, e Cabo Junio Amaral (PL). Aderiram à sua candidatura os grupos que derrotou ao chegar pela primeira vez à prefeitura e que voltaram ao poder municipal depois de sua retirada, o PSDB e o MDB de Newton Cardoso, que foi três vezes prefeito da cidade, e governador do estado. Define numa frase sua relação com esses partidos: “Não discuto o passado, arrumo o que o passado me deixou”.
Aos 62 anos, casada, três filhos e um neto, Marília é uma releitura do Lula que chegou ao poder em 2002, mais do que aquele do terceiro mandato. Trafega pelo eleitorado conservador a uma distância regulamentar de pautas divisivas — “Não faço disputas que não são minhas, abraço questões políticas que impactam a cidade”. Nem por isso deixa de ser atacada pelo bolsonarismo. Num dos últimos, um panfleto apócrifo a “acusou” de dar voz à umbanda.
Sua gestão tem embates com os conselhos tutelares, hoje dominados pela extrema direita, que quer tirar a guarda dos filhos de mães em situação vulnerável, por uso de drogas. Por outro lado, o Centro Materno Infantil da prefeitura faz abortos nos três casos previstos em lei (estupro, má-formação do feto e risco de vida da mãe), mas apenas até as 22 semanas.
Esta é a prática da maior parte das maternidades, uma vez que, para além das 22 semanas, exige-se uma assistolia. O procedimento, normatizado pela Organização Mundial de Saúde para evitar que o feto nasça vivo, é praticado em alguns centros, como as maternidades-escolas da UFBA e da UPE. Também era oferecido na maternidade municipal de Vila Nova Cachoeirinha até a suspensão do serviço pelo prefeito de São Paulo e candidato bolsonarista à reeleição, Ricardo Nunes.
No lugar do orçamento-participativo, prática iniciada por prefeituras petistas para interferir na alocação orçamentária, em Contagem foram fortalecidos os oito conselhos regionais da cidade. Essas instâncias, a exemplo dos conselhos tutelares, são formadas por conselheiros eleitos, mas sua atuação extrapola a vigilância sobre os direitos de crianças e adolescentes e invade as demais políticas municipais.
Em Contagem, os conselheiros, que não são remunerados, discutem a alocação do Orçamento que, no de 2024, é de RS 33 milhões. A maioria deles é apartidária e recebe treinamento da UFMG para a tarefa. A iniciativa partiu da percepção de que tanto a Câmara de Vereadores quanto o orçamento-participativo só discutem obras, quando as expectativas da população em relação ao espaço urbano extrapolam a argamassa. Este foco está na mira de adversários que a acusam pela autarquia criada para cuidar de parques e praças.
A percepção converge com a ideia, já identificada pelo mapeamento das interações em redes sociais, de que é o combo de bem-estar, alimentação, exercícios físicos e mobilidade que atrai a atenção do eleitor. A polarização, pelo menos nas redes sociais, já deu o que tinha que dar. Quando invade a seara municipal, a polarização arrisca favorecer o bolsonarismo, como aconteceu, na largada da campanha paulistana, em que os cinco pré-candidatos da direita têm mais do que o dobro do que os dois da centro-esquerda.
Marília diz não abrir mão de iniciativas tradicionais de administrações petistas em torno, por exemplo, do combate ao racismo ou ao machismo, mas diz dar preferência a atividades de economia solidária com culinária de origem africana, por exemplo, ou a corridas de rua para mulheres, a seminários exclusivamente pautados por palestras. Mantém a parada LGBT na cidade pela tradição, mas não fez eventos comemorativos ao 31 de março. “Se engajasse, a prefeitura ressuscitaria a polarização”, diz.
A economia do bem-estar pauta o varejo das políticas públicas em Contagem, no varejo, a prefeita não abre mão das obras. No evento com Lula anunciaram-se novos recursos, além do que já foi alocado pelo PAC Mobilidade, para obras viárias e de saneamento que tiram o trânsito do centro da cidade e fazem prevenção de enchentes.
A prefeita cobrou a inclusão de passageiros nos investimentos ferroviários, majoritariamente destinados a cargas, além da extensão do metrô de BH e uma solução para a dívida de Minas como encaminhada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), que Lula pretende lançar ao governo do estado em 2026. Ao contrário do PT mineiro, Marília não se opôs ao regime de recuperação fiscal do estado liderada pelo governador. A oposição a Zema, diz, pauta-se, frequentemente, pelo “quanto pior, melhor”.
O discurso de Lula chamou a atenção de Marília por não ter mais mencionado Bolsonaro nem Curitiba, temas recorrentes na campanha, mas lhe preocupou a omissão do presidente sobre a presença, no palanque, do representante de Zema, o vice-governador, Mateus Simões (Novo). No final do evento, Simões disse à imprensa que o desalinhamento ideológico não deveria impedir trabalho conjunto, como o faz com a prefeita.
Marília mantém uma boa relação com o governador a despeito a tentativa de Zema da disputa contra a nova Lei do ICMS. Esta lei desconsidera a proporcionalidade da população na distribuição de recursos para a educação, que deixa cidades como Belo Horizonte e Contagem, respectivamente com R$ 2,97 e R$ 9,71 por aluno, enquanto grotões como Itambé do Mato Dentro, com 62 matrículas escolares, dispõe de R$ 5,5 mil por aluno.
Marília Campos teme, como muitos de seus correligionários, a surra que o PT pode tomar nas eleições municipais. Vê a campanha de Guilherme Boulos, em São Paulo, excessivamente focada no bolsonarismo e uma bancada de deputados que pouco se engaja na divulgação dos recursos federais alocados para os municípios. Já teve atritos com o PT mineiro, mas mantém boa relação com o PSD de Pacheco.
O contraponto, diz, também tem que ser estabelecido pelo exemplo. Protagonista do movimento pelo fim da aposentadoria especial dos parlamentares mineiros, insta seus correligionários a se engajar pelo fim de privilégios e verbas indenizatórias no Legislativo e nos demais Poderes. Não tem dúvida de que a iniciativa renderia mais ao PT do que a surrada polarização com o bolsonarismo.
Maria Cristina Fernandes é jornalista.