Acidentes de trânsito geralmente causam comoção e perplexidade, principalmente quando envolvem mortos e feridos. Infelizmente, vítimas do trânsito no Brasil e no mundo são assuntos recorrentes no noticiário em todas as mídias disponíveis. O tema sempre foi importante, mas ganhou relevância sobretudo a partir da década de 1960, quando a situação começou a adquirir uma dimensão inimaginável até então, com milhares de pessoas mortas ou lesionadas gravemente pelos acidentes de trânsito, tanto nas rodovias como nas áreas urbanas. Houve ano em que se registrou mais de 50.000 mortos em acidentes de trânsito no Brasil.
Antes de prosseguirmos em nossa reflexão, vale a pena comentar que recentemente no Brasil a expressão “acidente de trânsito” passou a ser denominada de “sinistro de trânsito”, por ser um termo mais adequado. A justificativa para tal mudança é que se considera o “acidente” como um acontecimento inesperado, segundo a definição da língua portuguesa, e no caso do trânsito há uma crença que a imprudência dos motoristas é responsável por mais de 90% dos sinistros. Por outro lado, o sinistro de trânsito é a situação em que envolve dano a um veículo, carga, pessoa ou animal (podendo envolver mais de um desses) gerando consequências ao trânsito ou ao meio ambiente e necessariamente um dos envolvidos deve estar se deslocando por uma via e ou local aberto a população.
Você que está agora lendo esse artigo muito provavelmente conhece alguém que já se envolveu em um sinistro de trânsito ou pode ser que você mesmo já tenha passado por isso. Você já perdeu alguém de sua família ou um amigo ou pessoa de sua relação que morreu em um acidente de trânsito? Conhece alguém que tenha se lesionado gravemente e ou que tenha ficado com sequelas para o resto da vida em decorrência de um sinistro de trânsito, como por exemplo uma pessoa que ficou paraplégica ou perdeu a visão ou algum membro do corpo? Quanta dor, quanto drama e quanta tristeza estão envolvidas em um sinistro de trânsito, além dos prejuízos materiais decorrentes!
Você sabia que uma parcela significativa dos leitos hospitalares nas unidades de tratamento intensivo é ocupada por vítimas da violência no trânsito? Fraturas de todo o tipo, sobretudo pernas e braços; traumatismo craniano; perfurações nos órgãos vitais (pulmões e coração), dentre tantos outros, são consequência comuns decorrentes dos sinistros de trânsito.
Imagino que tudo que relatamos até agora, em grande parte, é do conhecimento de todos vocês. Conhecer e saber de tudo isso é importante, mas o que está sendo feito na prática pelas autoridades, pelos técnicos, pelos profissionais que lidam com os temas da mobilidade?
As leis, normas e regulamentos que regem o trânsito no Brasil são adequadas para tratar do assunto e evitar ou pelo menos reduzir significativamente os sinistros de trânsito? Muitos julgam que as leis são severas, que as punições são excessivas, que é um absurdo limitar a velocidade nas vias públicas com a utilização de equipamentos de registro de velocidade, os populares “radares”.
Muitos advogam que a única solução é a Educação para o Trânsito; pois com condutores mais conscientes e instruídos, as normas serão respeitadas e os acidentes vão diminuir. Você pensa de que forma a respeito disso?
As soluções de engenharia de tráfego têm sido capazes de resolver os principais problemas e contribuir efetivamente para a redução das vítimas do trânsito? Os profissionais que lidam com a mobilidade (engenheiros, arquitetos, técnicos, dentre outros) estão devidamente capacitados para estudar, projetar e implantar medidas que tenham como um dos focos principais a segurança do trânsito ou estão somente preocupados com a fluidez do trânsito?
A fiscalização e operação do trânsito realmente se preocupa com os aspectos de segurança e prioriza suas ações nesse sentido ou o foco é simplesmente penalizar (autuar) os eventuais infratores em nome do cumprimento da lei?
A ocupação do espaço urbano é feita de maneira a propiciar que a infraestrutura viária e outras questões importantes correlacionadas com a mobilidade urbana sejam efetivamente atendidas e consideradas no desenvolvimento e crescimento das cidades?
Os veículos que utilizamos nos nossos deslocamentos são seguros? Eles têm estrutura, dispositivos e componentes que priorizem a segurança do condutor e passageiros? Aqui não estamos falando apenas dos automóveis, mas dos ônibus, dos caminhões, das motocicletas e todos os veículos automotores. Os condutores e passageiros seguem as regras de segurança? Cito como exemplo o cinto de segurança: o motorista e o passageiro do banco dianteiro em grande parte costumam utilizar o cinto, sendo que inclusive os automóveis mais modernos têm dispositivos que alertam quando esses não usam o cinto, o que é muito positivo e ajuda na segurança. Contudo, pode-se afirmar que os passageiros do banco traseiro em quase 100% dos casos “andam soltos, sem usar o cinto de segurança”! Isso é correto? Essa atitude de não usar o cinto é adequada para a segurança?
Como mencionamos no início deste artigo, há uma crença aqui no Brasil e em quase todo o mundo que a imprudência do motorista e dos pedestres é responsável pela maioria esmagadora dos sinistros de trânsito, crença essa que vem servindo de certa forma para explicar e justificar o grande número de acidentes nas rodovias e vias urbanas em toda parte. Evidentemente que essa é uma crença equivocada, embora saibamos que pode haver sim um componente de imprudência nos sinistros de trânsito.
Nesse contexto, é imprescindível que o olhar para o gravíssimo problema dos sinistros de trânsito seja radicalmente mudado, partindo do princípio que nenhuma morte ou lesão grave no trânsito é aceitável. Essa é a premissa conceitual do programa Visão Zero, criado na Suécia em 1997 e que apresentou resultados extremamente positivos. Para se ter uma ideia do sucesso do Visão Zero na Suécia, houve uma redução significativa nas mortes no trânsito, passando de taxas que se situavam em torno de 17 mortos por 100 mil habitantes, chegando-se ao notável marco de 2 mortes por 100.000 habitantes em 2021.
Inspirados nesse sucesso sueco, o programa Visão Zero vem sendo adotado em vários países do mundo, na busca de fazer valer a preservação e qualidade de vida no trânsito como pilares básicos para sistemas seguros. É preciso reorientar a forma como a segurança viária é vista e gerenciada, reconhecendo que os seres humanos cometem erros quando usam as ruas e sistemas de transporte, assim como em qualquer outra circunstância cotidiana.
Importante dizer que em 2018, o Brasil lançou o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans) por meio da edição da Lei Federal 13.614/2018, que também dispôs sobre regime de metas de redução de índice de mortos no trânsito por grupos de habitantes e de índice de mortos no trânsito por grupos de veículos. Mais recentemente o Pnatrans foi revisado e aprimorado no ano de 2021, com a inclusão de princípios e ações que alinham o país à agenda global de segurança viária, dentro do conceito da Visão Zero.
Muitos municípios brasileiros ainda enfrentam diversos desafios para avançar em ações que contribuam para o alcance dos resultados esperados Em 2020, no contexto da pandemia da Covid-19 e após dois anos do lançamento do Plano, observou-se que, embora a mobilidade tenha sido reduzida consideravelmente, o número de vítimas aumentou, o que reforçou ainda mais os desafios identificados, tornando-se ainda mais urgente a demanda por estratégias capazes de tornar os sistemas de transporte mais sustentáveis, seguros e inclusivos.
A mobilidade, quando assegurada, garante acesso justo e inclusivo à cidade, contribuindo para a efetivação de outros direitos, como educação, saúde, moradia, trabalho e lazer. Portanto, as principais ações passam por colocar as pessoas e a vida humana no centro das decisões em relação ao uso do sistema viário e do espaço urbano, o que tem relação direta com o papel que se atribui aos modais de transporte coletivo e individual, com a formulação das diretrizes, definição de estratégias e implementação de políticas públicas de mobilidade e de segurança viária.
A promoção da segurança viária nas cidades brasileiras ainda depende de maior disseminação e escalabilidade das soluções que vem sendo adotadas internacional e nacionalmente. Há que se ressaltar que já existem no Brasil alguns casos que podem ser inspiradores, tais como Fortaleza, Salvador, São Paulo e outras, que alcançaram significativa redução de mortes e lesões no trânsito.
Felizmente o desafio da Visão Zero vem sendo objeto de reflexões e busca de mudança nas crenças e comportamentos de muitos dos que lidam com a mobilidade, mas é preciso que toda a sociedade se engaje para contribuir para o sucesso do programa. Nesse sentido é oportuno destacar e saudar a iniciativa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de implantar o programa DESAFIO VISÃO ZERO: TRÂNSITO MAIS SEGURO NAS CIDADES BRASILEIRAS, capacitando profissionais dos órgãos gestores para lidar de forma mais adequada e consciente com os desafios para reduzir a quantidade e gravidade dos sinistros de trânsito. Esse programa foi lançado pelo BID em 2023 e aberto a todas as cidades brasileiras com população acima de 200.000 habitantes. Várias cidades se inscreveram e apenas 12 delas foram selecionadas, sendo que o município de Contagem/MG foi uma delas.
A capacitação das equipes iniciou-se agora em 2024 e a expectativa é que isso seja o embrião de um novo tempo para a mobilidade urbana em Contagem, assim como se espera que também ocorra nas demais cidades selecionadas: Boa Vista/RR, Belém/PA e Recife/PE, todas três capitais dos seus Estados, e mais Campina Grande/PB, Caruaru/PE, Ribeirão Preto/SP, Joinville/SC, Blumenau/SC, Londrina/PR, Foz do Iguaçu/PR, Novo Hamburgo/RS.
“Nenhuma morte no trânsito é aceitável; todas são preveníveis”. Esse é o ensinamento e conceito fundamental para orientar todas as ações.
Sabemos que o caminho é longo para se chegar aos resultados exitosos do Visão Zero, como ocorreu na Suécia, na Holanda e em outros países, mas a semente está lançada. Assim, convido você que nos lê a refletir sobre o tema e buscar a partir de agora se engajar nessa proposta para que possamos vencer o DESAFIO VISÃO ZERO: TRÂNSITO MAIS SEGURO NAS CIDADES BRASILEIRAS.
“Visão Zero” no trânsito é “Trabalho pela Vida”. E a vida merece o nosso esforço conjunto: autoridades, legisladores, profissionais que lidam com a mobilidade, comunidade em geral, enfim, todos e todas juntos refletindo e avançando na busca do objetivo maior.
Saudemos o Visão Zero! Saudemos a vida! Sigamos juntos nessa luta.
Marco Antônio Silveira é Engenheiro Civil e especialista em engenharia de tráfego e transportes