Ao longo dos anos, tenho me posicionado contrariamente à vertente do liberalismo econômico promovida pelo bolsonarismo, membros do Partido Novo e pelos “economistas de Twitter”, caracterizada por sua radicalidade e, paradoxalmente, por seu vazio conceitual. Esse liberalismo, que chamo de “liberalismo estilo livre”, é marcado pela flexibilidade interpretativa de suas ideias, que, não raro, são moldadas mais pelas palavras de coachs motivacionais do que por fundamentos teóricos sólidos. Neste texto, contundo, não apelarei a autoridades teóricas específicas para explicar o conceito exposto no título. Então, não sobrecarregarei o leitor com nomes e referências. Em vez disso, convido-o a uma reflexão crítica sobre os pressupostos comuns entre os adeptos do liberalismo econômico.
Muitos liberais compartilham um repertório de jargões como: “precisamos diminuir regulações”, “desburocratizar”, “cortar impostos”, “imposto é roubo” e “diminuir o tamanho do estado”. Contudo, essas aspirações raramente são acompanhadas de planos concretos ou de uma compreensão detalhada das implicações de tais medidas (ou conceitos). Falta, por exemplo, um discernimento sobre o que é e quais as regulamentações são, de fato, benéficas, quais impostos poderiam ser reduzidos sem comprometer serviços essenciais (ou qual é a melhor solução/modelo para a questão tributária como um todo), ou como a redução no número de ministérios não necessariamente acarreta diminuição dos custos governamentais.
Por essa razão, insisto que os liberais não conhecem o próprio liberalismo. Aliás, a confusão dos liberais em relação a conceitos nasce em vários aspectos, não se restringindo somente em relação a compreensão que têm sobre as estratégias de implementação dessas “políticas” e propostas econômicas citadas acima, mas estende-se também a um conhecimento equivocado sobre o que é próprio capitalismo. Equívocos como considerar o capitalismo meramente como a atividade de “ganhar dinheiro vendendo mercadorias ou serviços” ou enxergar um pequeno empreendedor individual como representante da burguesia revelam uma superficialidade na compreensão de conceitos econômicos fundamentais. Esse reducionismo conceitual é agravado pelo fato de que, no Brasil, há um desinteresse geral pela leitura e pelo estudo aprofundado de teorias econômicas.
A heterogeneidade de pensamento entre os liberais brasileiro reflete essa falta de compreensão do que é o capitalismo. Dessa forma, podemos dizer que ela é vasta, chegando ao ponto de incluir indivíduos que, contraditoriamente, se identificam como “monarquistas”, estes mesmos que desejam um governo imperial junto a um estado mínimo (?). Tal contradição ilustra a complexidade e, por vezes, a incoerência interna dessas visões políticas e econômicas. Da mesma forma, admiradores do ex-deputado federal e presidente do antigo partido Prona, sr. Enéas Carneiro, também de forma conflitante, se admitem como liberais, enquanto o próprio Enéas repudiava veementemente o liberalismo econômico. Em certa ocasião, Enéas até defendeu, da forma extremista como era, a prisão e o fuzilamento dos idealizadores do Plano Real. Tudo isso revela que os liberais brasileiros, na verdade, são mais antiprogressistas e anticomunistas do que propriamente liberais. Em simples palavras, vale tudo e qualquer coisa contra as ideias de igualdade e justiça social.
A minha argumentação central neste texto, porém, é outra. É a premissa de que o capitalismo, por sua natureza, demanda a existência do Estado. Em resumo: não existe capitalismo sem estado!
Em primeiro lugar, o Estado é a instituição que garante a execução e o cumprimento de contratos por meio do sistema de justiça. Ora, os contratos são a base do capitalismo. Contudo, sem quem os defenda e fiscalize, garantindo o seu cumprimento, o capitalismo teria muitas dificuldades de, sem o estado, garantir a defesa dos contratos. Se “imposto é roubo”, quem protegeria a propriedade privada? Com qual recurso? Se o Estado precisa ser mínimo, quem garantirá a força para fazer valer os contratos firmados?
Em segundo lugar, é o Estado que provê infraestruturas essenciais, como pontes e estradas, frequentemente construídas por empresas privadas sob contratos governamentais. Da mesma forma, como o Estado garante os contratos, é ele que provê a dinâmica do oferecimento de toda a estrutura para o funcionamento do capitalismo. Sem a logística providenciada pelo estado, como as empresas privadas operariam? Aliás, vale até citar que essa dinâmica ressalta um aspecto muitas vezes ignorado: o modelo de estado já opera sob lógicas privatistas, onde o setor privado desempenha um papel crucial na execução de obras públicas.
Em terceiro, vale citar o papel do Banco Central, uma instituição estatal de suma importância na regulação econômica e financeira. O Banco Central atua como um pilar fundamental para a estabilidade e o crescimento do capitalismo, através da implementação de políticas monetárias que visam controlar a inflação, regular a oferta de moeda, estabelecer taxas de juros e supervisionar o sistema financeiro. Essas ações são essenciais para criar um ambiente econômico previsível e confiável, o qual, por sua vez, é fundamental para o investimento empresarial, o consumo, e o planejamento financeiro de longo prazo. Além disso, o Banco Central desempenha um papel vital na manutenção da estabilidade financeira, prevenindo crises bancárias e financeiras que podem devastar a economia. Por meio da regulação (tão odiada pelos liberais) e supervisão das instituições financeiras, o Banco Central assegura a solidez e a confiabilidade do sistema bancário. Não menos importante, o Banco Central também é responsável por implementar políticas cambiais, gerenciando a taxa de câmbio para evitar desvalorizações ou valorizações extremas que possam prejudicar a competitividade externa da economia.
Em quarto, a necessidade do Estado no sistema capitalista se torna ainda mais evidente quando consideramos setores como a indústria pesada e a construção civil, que, sem a demanda e o financiamento estatais, teriam dificuldades em sustentar sua lucratividade. Empresas como a SpaceX, do bilionário excêntrico Elon Musk, se beneficiam enormemente de contratos bilionários com a NASA, exemplificando como o setor privado depende de parcerias estatais para realizar projetos de grande envergadura. O complexo industrial-militar nos Estados Unidos é outro exemplo significativo, demonstrando como empresas privadas prosperam a partir de contratos com o governo. Somente o orçamento militar americano gira em torno de US$ 700 bilhões, 10 vezes mais que todos os outros países gastam. E para onde vai todo esse dinheiro? Empresas privadas de tecnologias, de inovação, da indústria bélica, entre outras. Além disso, não se pode ignorar o impacto histórico de políticas como o New Deal nos Estados Unidos, que, por meio de investimentos e parcerias governamentais, impulsionou significativamente a economia e o setor privado durante um período de crise. Esses exemplos históricos e contemporâneos ilustram de forma inequívoca a interdependência entre Estado e mercado no capitalismo.
Inclusive, sobre esse debate sobre a indispensabilidade do Estado no capitalismo, um exemplo prático e ilustrativo pode ser encontrado na cidade de Contagem. Aqui no município, a prefeitura desempenha um papel crucial, não apenas no fomento à economia local, mas também na garantia do lucro das empresas. Isso é alcançado por meio de uma gestão eficiente que, de forma inovadora, harmoniza crescimento econômico com responsabilidade social, criando um ambiente propício tanto para negócios quanto para melhorias sociais.
A prefeitura de Contagem tem implementado uma gestão fiscal exemplar, que resulta em um ambiente extremamente favorável para o desenvolvimento empresarial e a criação de empregos. Isso é feito, em parte, por meio de investimentos significativos em obras públicas e programas sociais que visam tanto a expansão da infraestrutura urbana quanto a distribuição de renda. A administração municipal demonstra que é possível unir ideias aparentemente opostas em uma agenda social-liberal, promovendo o crescimento econômico simultaneamente à geração de empregos e à distribuição de renda.
Detalhadamente, a prefeitura tem direcionado recursos para a execução de obras públicas que fortalecem a infraestrutura da cidade. Com um investimento planejado de R$ 1 bilhão ao longo dos próximos anos, Contagem verá a construção de novas UPAs, Cemeis, viadutos (até o final desse terceiro mandato de Marília Campos, serão cinco viadutos entregues: Américas II, Teleférico, LMG 808 da nova Av. Maracanã, Ceasa e Beatriz), além da pavimentação e revitalização de mais de 350 vias, a construção de pontes e outras obras de artes especiais, e a reforma de parques, praças, e outros espaços públicos. Essas intervenções não apenas melhoram significativamente a qualidade de vida dos moradores, como também criam um ambiente atraente para o estabelecimento e expansão de empresas, aquecendo a economia local.
Os resultados desses investimentos já são perceptíveis. Contagem apresentou um saldo positivo na geração de novos empregos por vários meses consecutivos, conforme dados do Caged, refletindo diretamente o sucesso das políticas implementadas pela gestão municipal. Essa tendência positiva de criação de empregos é um indicativo claro do impacto benéfico de uma boa gestão fiscal e de investimentos públicos direcionados.
Apesar dos sucessos, é importante reconhecer que desafios persistem. Problemas inerentes ao Estado e à gestão pública não são inexistentes e requerem atenção constante. No entanto, é por meio do fortalecimento da democracia que tais questões podem ser endereçadas e resolvidas. A experiência de Contagem demonstra que adotar posturas negacionistas (como esta proposta descabida, que sempre volta ao debate, a respeito da isenção do IPTU residencial) ou refutar a importância do Estado no desenvolvimento econômico não apenas é contraproducente, mas também ignora as evidências práticas de que políticas estatais bem-orientadas (principalmente as que são orientadas pela LRF) são fundamentais para o bem-estar coletivo e para a saúde do capitalismo.
Por fim, a experiência de Contagem serve como um lembrete potente de que a verdadeira força de uma economia liberal não reside na ausência do Estado, mas na capacidade deste de agir como um facilitador do desenvolvimento econômico, social e infraestrutural. Ademais, essa experiência reafirma que o liberalismo econômico, quando temperado com responsabilidade social e uma gestão pública eficaz, tem o potencial de gerar benefícios tangíveis para a sociedade como um todo.
Primeiro adendo importante: o tal “rombo” nas contas públicas do governo federal
A recente discussão em torno do “rombo nas contas públicas” atribuído ao primeiro ano do governo Lula tem dominado o cenário midiático e político, gerando uma série de interpretações e, muitas vezes, desinformações. Os relatos de um déficit de R$ 230 bilhões têm sido veiculados de maneira quase incessante, com uma inclinação que, por vezes, parece desviar intencionalmente o público de uma compreensão integral da situação fiscal do país. Como já pontuei anteriormente, em análises e textos, incluindo um específico sobre esse tema que foi publicado aqui (link: https://www.zeprataeivanir.com.br/qual-e-o-papel-da-imprensa-na-cobertura-da-administracao-publica), a discussão sobre o déficit de 2023 carece de uma contextualização adequada para ser plenamente compreendida.
Importa reiterar que o orçamento executado em 2023, o qual culminou nesse déficit reportado, foi, de fato, planejado e aprovado durante a administração de Jair Bolsonaro, no ano de 2022. Essa é uma nuance fundamental que frequentemente é omitida ou negligenciada nas narrativas predominantes. Ao falhar em incorporar esse aspecto crucial, a cobertura jornalística não apenas distorce a realidade fiscal atual, mas também serve inadvertidamente aos interesses de grupos políticos específicos que intentam pintar a gestão corrente com as cores da irresponsabilidade fiscal.
A composição do déficit em questão revela uma história mais complexa do que a sugerida por certas narrativas simplistas. Detalhando os componentes desse déficit, encontramos:
• R$ 66 bilhões correspondem a um déficit preexistente, herança direta do orçamento formulado sob a gestão Bolsonaro em 2022.
• R$ 90 bilhões representam precatórios não quitados pelo governo anterior, uma dívida pendente que se arrasta para a gestão atual.
• R$ 20 bilhões são destinados à compensação para os estados pela redução do ICMS em 2022, uma medida anterior que impacta diretamente as finanças do governo atual.
• R$ 50 bilhões referem-se ao aumento do valor do Auxílio Brasil (agora Bolsa Família), de R$ 400 para R$ 600, uma ampliação do benefício cujo financiamento não foi integralmente previsto pela gestão Bolsonaro (isso mesmo: se Bolsonaro tivesse sido eleito em 2022, o Bolsa Família seria de apenas R$ 400).
• R$ 3 bilhões estão vinculados ao aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda, de R$ 1.904 para R$ 2.640, aliviando a carga tributária sobre a classe média.
• R$ 5 bilhões destinam-se ao ajuste do salário-mínimo para R$ 1.320, visando a melhorar o poder de compra da população mais vulnerável.
Somando esses valores, alcançamos um total de R$ 234 bilhões, que corresponde precisamente ao déficit reportado para 2023. Essa análise detalhada evidencia que o déficit atual não pode ser atribuído exclusivamente às políticas ou decisões da gestão Lula, mas sim a um conjunto de fatores e compromissos financeiros herdados e assumidos.
Portanto, uma discussão genuína e informada sobre a situação fiscal do Brasil requer a consideração de todas essas variáveis. Ignorá-las ou omiti-las da conversa pública não apenas empobrece o debate econômico, mas também mina a capacidade do eleitorado de formar uma visão crítica e embasada sobre as finanças públicas do país. A responsabilidade fiscal é um tema complexo, que transcende ciclos políticos e administrativos, exigindo uma análise cuidadosa e desprovida de viés ideológico.
Segundo adendo importante: “Boom das commodities”?
Dias atrás tive uma discussão com colegas e parentes sobre os dois primeiros mandatos do presidente Lula (2003-2010). A discussão girava em torno do sucesso econômico durante essa época. Para eles, o sucesso econômico foi em razão de apenas um fator: ao tal “boom de commodities”. O que eu procurei responder e gostaria de deixar registrado publicamente para eventuais consultas futuras é que, na verdade, quando analisado a partir de um ponto de vista científico, essa alegação é falsa (e se tornou um tanto quanto de senso comum pela popularização dessa ideia, que é feita constantemente por influenciadores digitais de extrema-direita).
A verdade é que, durante os anos em que Lula esteve no poder (2003-2010), o Brasil experimentou um período de forte crescimento econômico, redução da pobreza e melhorias nos indicadores sociais. Vários fatores contribuíram para esse sucesso, e com certeza um dos principais motores foi, de fato, o boom das commodities.
As commodities, que incluem produtos como soja, minério de ferro e petróleo, são uma parte significativa da pauta de exportação do Brasil. Durante os primeiros anos de Lula, os preços desses produtos no mercado internacional estavam em alta, impulsionados pela crescente demanda de países em rápido desenvolvimento, como a China. Isso levou a um aumento significativo nas receitas de exportação do Brasil, contribuindo para o superávit comercial, o acúmulo de reservas internacionais e o fortalecimento da moeda nacional.
Essa conjuntura externa favorável permitiu ao governo Lula implementar políticas sociais ambiciosas, financiar programas de desenvolvimento e manter a estabilidade econômica. No entanto, é importante notar que o sucesso econômico não se deveu apenas a isso. Políticas governamentais internas, incluindo medidas de estímulo ao consumo, expansão do crédito e investimentos em programas sociais, também desempenharam um papel fundamental.
Portanto, embora o boom das commodities tenha sido um fator importante, a análise do sucesso econômico do Brasil nessa época requer uma visão mais abrangente que considere tanto o contexto internacional favorável quanto as políticas domésticas adotadas pelo governo.
Lucas Carneiro Costa é comunicador e pedagogo. Mestrando em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa.