Você já notou aquela nossa velha mania, como brasileiros, de querer ser parecido com os outros? Já nos moldamos de diversas formas: fomos portugueses, franceses, americanos e em breve chineses. É sobre essa construção idealizada que Maria Rita Kehl se debruça em seu livro “Bovarismo Brasileiro” explorando a brasilidade através do conceito de bovarismo.
O termo “bovarismo” foi introduzido pelo filósofo Jules de Gaultier, inspirado na personagem Emma Bovary do romance “Madame Bovary” de Gustave Flaubert. Na obra, Emma é uma mulher do interior que passa a vida tentando se transformar em outra pessoa, buscando essa mudança através do amor. Em vários relacionamentos amorosos, Emma tenta encontrar nos amantes o que seu casamento com Charles Bovary não lhe proporcionou: a oportunidade de escapar de seu destino medíocre no interior do país e se tornar uma mulher da corte, uma heroína dos romances que leu na adolescência.
Para Jules de Gaultier, o bovarismo é a ilusão de se tornar outro, uma distorção da realidade quando uma pessoa se vê como algo que não é. Segundo Maria Rita Kehl, os brasileiros possuem essa síndrome de Bovary. Nesse contexto, o bovarismo seria um sintoma da realidade brasileira, um mecanismo de fuga que nos permite rejeitar o país real e imaginar um país diferente do que realmente é, apesar das tentativas fracassadas de determinados governos em alcançar um patriotismo tupiniquim.
O livro e a obra de Maria Rita Kehl inauguram um modo de pensar e de fazer a psicanálise no Brasil, menos colonialista, menos primitivo, menos bovarista. Ela nos mostra como a boa clínica é crítica social feita por outros meios. Meios que não são os gritos de massa, mas a escuta pessoal de cada um, meios que não se reduzem a oposições genéricas em torno do monopólio da crítica.
Dois pontos interessantes sobre isso são que: é muito difícil na democracia moderna se escutar cada cidadão para decisões políticas, razão pela qual escolhemos ser “representados”. Mas isso não exclui a importância dos representantes chegarem o mais próximo da população para entender suas demandas e anseios, indo de encontro ao outro ponto em que, o governante deve ter sabedoria para distinguir o monopólio da crítica, no qual certas pessoas e/ou pequenos grupos se sentem donos de toda a razão existente, acima de qualquer outro cidadão, prontos para jogarem a pedra na próxima Geni, parafraseando Buarque, em seu jogo próprio de poder.
Diante disso, falamos cotidianamente que a política é um instrumento poderoso para mudar o mundo. Mas não parece uma utopia acreditar que podemos mover as imensas estruturas capitalistas de poder e os inúmeros interesses econômicos?
O fato é que ao assistir a participação de Kehl no Café Filosófico da TV Cultura, começo a refletir se a primeira e mais viável mudança na estrutura do mundo começa pelos afetos. Como lá dito: “uma revolução da nossa economia psíquica, realizada no cotidiano dos nossos relacionamentos”. Mudar o mundo não é apenas redistribuir poder, dinheiro e fama, mas transformar nossos modos de nos relacionarmos com mais empatia, amor e cuidado também é uma baita forma de transformação política.
Refletindo sobre tais questões no contexto Contagense, sou levado a parafrasear a maior liderança político-social da história do país, Lula: “Marília faz política com coração”. Tal modus operandi de Marília se manifesta na sua proximidade com as pessoas. O fato de sua presença diária nos mais diversos espaços populares como feiras, comércios, periferias, praças e ruas de Contagem e da facilidade de ser contactada, em adição a seu esforço para dar espaço à participação popular de qualidade, com discussão, capilaridade e orçamento próprio, já é suficiente para caracterizá-la como boa representante, além de sua habilidade e respeito para lidar com críticas cara-a-cara e conter grupos que se sentem donos da cidade.
Se sentir bem representado seria portanto um primeiro passo para construir uma agradável e reconhecida identidade própria dos cidadãos, em contraponto ao Bovarismo citado anteriormente. Temos tido cada vez mais orgulho de dizer: Eu sou de Contagem! em todas as dimensões que isso quer dizer.
Em paralelo, a política de cuidado é a matriz central em lideranças femininas, e se materializa principalmente quando estas ocupam espaço majoritário, no executivo. Marília ser a prefeita da maior cidade governada pelo PT e uma das únicas 9 prefeitas que governam as 100 maiores cidades do país remonta a essencialidade do seu fazer político com afeto, e sua aprovação popular é caso de sucesso e indicativo de que é a vez das mulheres ocuparem o poder real, como lutadoras do Estado Social.
Por outro lado, Kehl também explora a interseção entre psicanálise e cultura, investigando como fenômenos culturais impactam a subjetividade humana. Ela analisa questões como a formação do sujeito, o papel da mídia, e as influências da cultura de massa na psique.
A valorização da cultura local, neste contexto, é expoente para incentivo do orgulho e da valorização da comunidade, impactando com profundidade nas pessoas. Em sua promoção de eventos e atividades que celebram a identidade e as tradições da nossa comunidade, que tem crescido como nunca em Contagem, nós alcançamos este terceiro ponto no combate ao bovarismo.
Tal valorização pode e deve acontecer nas manifestações mais simples do dia-a-dia. A título de exemplificação, meu avô Moisés Brauer, aos 91 anos, é o último trabalhador da Estação Bernardo Monteiro em vida, e foi homenageado na inauguração do novo Museu pelo Ramon, Secretário de Cultura. Além de ter seu nome exposto no museu como trabalhador da linha. Esse museu vai ficar marcado para sempre na minha história e da minha família, mas demonstra também como as nossas histórias fazem parte da história da cidade. O chão que pisamos, os lugares onde trabalhamos e as lutas que travamos moldam a nossa comunidade e o reconhecimento disso é necessário para nos valorizarmos enquanto povo. Obrigado por isso, Marília!
A partir disso convido você, caro leitor, a fazer um jogo interessante que aprendi com Marília: como todos devem perceber, a classe dos motoristas de aplicativo e taxistas são em sua maioria muito críticos a qualquer político ou governante, seja este da esquerda à direita. Assim, é comum que estes passem toda a corrida reclamando de como a cidade e o país estão mal cuidados, em qualquer canto do Brasil. Porém, quando o governante é excepcionalmente bom e cuida verdadeiramente do seu povo, você pode ouvir um ligeiro elogio a este, mesmo pela classe dos motoristas. Da próxima vez que pegar um uber em Contagem, pergunte: Como acha que está a cidade? A prefeita tem cuidado bem dela?
A partir das respostas dadas a essas perguntas, você entenderá o que é construir a política com afeto.
Tudo bem considerado, gostaria de ressaltar que não sou psicólogo e em razão disso, não busquei neste texto fazer pesquisa apurada em psicanálise ou tentar usá-la em benefício de pessoa política. Quis escrever por três motivos: terminei de ler “Bovarismo Brasileiro” e achei o texto super coerente com nosso contexto político municipal; fiquei pensativo quando Lula disse que Marília faz política com o coração e busquei melhor entender a relação do afeto com a política e por último, sei que Marília se interessa pelos escritos de M. R. Kehl e materializar/correlacionar sua atuação política com o supracitado pode ser estimulante para nosso grupo.
Como já disse, repito: Contagem com Marília não é pautada pela sobrevivência, mas pela profundidade.
Keith Richard Brauer Sales é ambientalista, formado em Física pela Universidade de São Paulo USP e mestrando em Economia na UFMG.
REFERÊNCIAS
• Bovarismo Brasileiro. Editora BoiTempo. Maria Rita Kehl. 2018.
• Café Filosófico. Afeto, Psicanálise e Política. 2022. Disponível em: https://cultura.uol.com.br/videos/65789_afeto-psicanalise-e-politica-maria-rita-kehl-e-vladimir-safatle.html.