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João Pio: Caminhos e desafios da política de igualdade racial em Contagem

Para início, é preciso considerar que Contagem é a terceira cidade do Estado de Minas Gerais, onde 64,3% da população se autodeclarada negra (pretos e pardos), segundo os dados do IBGE de 2022. Uma cidade de maioria de população negra, onde como no país com todo, permanece a desigualdade social e racial que afeta, sobretudo, as vidas das pessoas e das comunidades negras, o que precisa ser lido e entendido como fruto do racismo estrutural, institucional, religioso e ambiental que entremeia as relações sociais, econômicas e de poder na sociedade brasileira. Com destaca SILVA

o racismo, o preconceito e a discriminação racial são os fenômenos que estruturam as desiguais relações entre diferentes grupos sociais e são responsáveis pela permanente reprodução social das desigualdades. (SILVA, 2013)

A política pública de promoção da igualdade racial é um fato novo enquanto política de Estado no Brasil. Destaca-se que políticas públicas, programas e ações do estado brasileiro para a promoção da cidadania da população negra e o enfrentamento ao racismo só começam a ser efetivamente estabelecidas 120 anos depois da abolição da escravidão e o estabelecimento da República.

O ano de 2003 é o marco inicial para o processo de institucionalização de políticas públicas para a população negra, com a sanção da Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas escolas. Uma antiga reivindicação do movimento negro brasileiro desde a Frente Negra Brasileira na década de 1930 e fruto da luta organizada do conjunto do movimento negro educador que no processo da Assembleia Constituinte de 1988 e, em 1995, com a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, estabeleceram para o Estado brasileiro marcos legais, a exigência e proposição de ações efetivas para a reversão dos quadro de desigualdade e exclusão vividos pela população afro-brasileira.

Ao longo de quase duas décadas, o processo de implementação da política pública de promoção da igualdade racial tem como um dos seus grandes obstáculos o racismo institucional e estrutural. Há conquistas simbólicas e marcos legais que se estabeleceram desde a Constituição Federal de 1988, que têm como base de fundamentação os tratados e convenções internacionais sobre o enfrentamento ao racismo, e, mais recentemente a Declaração e o Plano de Ação III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância em Durban, a partir do qual o Brasil assumiu o compromisso de implementar políticas de Estado de combate ao racismo e de reduzir as desigualdades raciais. É preciso reconhecer o processo de estabelecimento da política pública de igualdade racial é resultado da luta do movimento negro, indígena e diversos grupos diversos grupos étnicos e socialmente discriminados. Os períodos dos governos Lula-Dilma (2003-2014) foram fundamentais para o estabelecimento do diálogo, a acolhida e para a transformação das reivindicações históricas da população brasileira por direitos e políticas inclusivas.

No município de Contagem, os marcos legais referentes à política pública de promoção da igualdade racial são frutos do diálogo do movimento negro local com as gestões municipais progressistas, que se sucederam no município entre 2004 e 2016. Período em que se destaca a realização de três conferências municipais de promoção da igualdade racial. As conferências foram momento singulares da interlocução da gestão municipal e a sociedade civil organizada que resultou no estabelecimento de proposições que resultaram no que, hoje, é o Plano Municipal de Política para a Promoção da Igualdade Racial (Plampir), instituído pela Lei 4.812/2016.

O Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR), estabelecido pela Lei 4.622/2013, também resultado da interlocução com os governos, tem desempenhado papel importante na proposição e monitoramento da política de igualdade racial no município. Consequências deste processo histórico é o estabelecimento de importantes marcos legais referentes à está política pública.

Os marcos legais, que apresento abaixo, constituem um conjunto de portarias, decretos e leis que darão o start para a política pública de promoção da igualdade racial no município de Contagem:

• Lei 3.936/2002 – Reserva do percentual mínimo de 40% de vagas para afrodescendentes em peças publicitárias de órgãos da Administração Pública Direta e Indireta do Município de Contagem;

• Lei nº 3.998, de 04 de maio de 2006 Institui a Semana do Hip Hop no Município de Contagem, a ser comemorada, anualmente, na segunda quinzena do mês de março, e dá outras providências.

• Lei 4622/2013 – Estabelece o Conselho Municipal de Igualdade Racial (COMPIR) – Órgão público permanente, colegiado, paritário entre governo e sociedade civil, de caráter normativo, deliberativo e fiscalizador

• Lei nº. 4701/2014 – Instituiu o dia 20 de novembro como feriado Municipal – Dia da Consciência Negra

• Lei nº. 4717/2015 – Institui no Calendário do Município a Marcha e da semana de Enfrentamento e Combate ao Racismo;

• Lei nº. 4714/2015 -Instituiu a reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para cargos efetivos no âmbito da administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional.

• Lei 4812/2016 – Institui o Plano Municipal de Igualdade Racial (PLAMPIR)

• Decreto nº 606, de 8 de junho de 2022, que institui a Comissão Permanente de Heteroidentificação que visa a heteroidentificação de autodeclarados pretos e pardos no âmbito das vagas reservadas para negros conforme determina a Lei nº 4.714, de 9 de janeiro de 2015

• Lei nº 5.270, de 29 de junho de 2022, que institui a Política SOS Racismo no Município de Contagem.

Homenagens

• Homenagem Zumbi dos Palmares as pessoas e organizações com atuação no combate e enfrentamento ao racismo, preconceito e discriminação racial.

• Homenagem Efigênia Francisca – Uma honraria pública concedida pelo Município de Contagem, com o objetivo de estimular a inclusão social das mulheres negras, por meio do fortalecimento da reflexão acerca das desigualdades vividas pelas mulheres negras no seu cotidiano, no mundo do trabalho, nas relações familiares e de violência e na superação do racismo.

• Comenda Antônio Maria, concedida pelo conselho municipal do Patrimônio a pessoas e instituições que se destacam na preservação do patrimônio artístico, histórico e cultural do município de Contagem.

Na perspectiva de institucionalidade da política pública de igualdade racial, um capítulo importante é a instituição do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial – SINAPIR, estabelecido pelo Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010, e regulamentado pelo decreto nº 8.136/2013. O SINAPIR constitui forma de organização e de articulação voltadas à implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades raciais no Brasil, com o propósito de garantir à população negra, cigana e indígena a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa de direitos e o combate à discriminação e as demais formas de intolerância. É, portanto, o instrumento fundamental para a institucionalização da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

A Prefeitura Municipal de Contagem, em 2016, formalizou a sua adesão ao SINAPIR e, desde então, assumiu os seguintes compromissos para a institucionalização da política municipal de promoção da igualdade racial:

• Executar suas ações no âmbito do SINAPIR orientado pelas diretrizes da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial

• Manter e apoiar administrativa e financeiramente o conselho voltado para promoção da igualdade racial;

• Manter e apoiar o funcionamento do órgão de política de promoção da igualdade racial, oferecendo condições administrativas e financeiras para sua ampliação;

• Participar do Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial;

• Elaborar e executar plano de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial;

• Propor planos e programas a serem pactuados no âmbito do SINAPIR e executados sob a coordenação dos órgãos de Promoção da Igualdade Racial integrantes do sistema.

Em Contagem, no que diz respeito à política pública de promoção da igualdade racial, deve-se reconhecer, ao longo do tempo, “uma maior interlocução entre sociedade civil e Estado até o ponto de sua institucionalização, com a criação de conselhos e a realização de conferências setoriais”. (MOURA; RAMOS, 2017)

O que se verifica em Contagem, no estabelecimento da política de promoção da igualdade racial e a instituição de órgãos, não é muito diferente do que vem se dando a nível nacional e em diversos municípios, que

“resulta do aprofundamento das relações político-institucionais entre movimentos sociais e Estado, que revela uma maior interlocução entre sociedade e Estado até o ponto de sua institucionalização com a criação de conselhos e a realização de conferências setoriais (LIMA e RAMOS, p.14 2017).

A seguir, apresento os desafios para a efetiva implementação da política pública para a promoção da igualdade racial no município de Contagem, que precisa ser entendida nos cenários impostos pelo racismo institucional e estrutural. O primeiro está relacionado às dificuldades do reconhecimento do racismo como determinante social para a manutenção da desigualdade racial e o fracasso do Estado em efetivamente desenvolver políticas, programas e ações para o enfrentamento ao racismo, a promoção da população negra e demais grupos étnicos discriminados. O segundo desafio é o mito da democracia racial, que embora tendo as suas bases estremecidas, persiste na reflexão e na análise da maioria dos formuladores e gestores das políticas públicas, que não reconhecem o racismo e a discriminação racial com determinantes importantes para a compreensão da desigualdade racial.

Para Silva (2013) o desafio é “compreender o racismo como estruturante das relações sociais, o que se reflete no tratamento ainda insuficiente do tema pelas políticas públicas”. Associada a esta questão, está o fato que a política de promoção da igualdade racial ainda não se constituiu como estruturante das políticas públicas e programas no município, particularmente pelos seguintes motivos: a) a descontinuidade; b) a pouca materialidade das ações estabelecidas no plano municipal de 2016; c) a falta de dotação orçamentária municipal; d) a necessidade de maior incidência do movimento social negro sobre o orçamento, bem como, atuação e efetividade do Conselho Municipal de Igualdade Racial no monitoramento e controle desta política pública. No que diz respeito ao orçamento deve-se considerar a disputa que sempre existe em torno deste e ausência dos quesitos gênero e raça no orçamento municipal. Em coro a outras análises, destaco que pensar no enfrentamento ao racismo e na efetividade da política pública de igualdade racial, sem financiamento, é mera intenção.

Entre todos os aspectos que implicam na efetividade da política pública de promoção da igualdade racial está a sua transversalidade e a intersetorialidade dada a especificidade em relação às outras políticas públicas. A questão central está no fato que a gestão pública, ainda é marcada pela pouca articulação entre as diversas políticas públicas, que ainda funcionam dentro das caixinhas, o que não promove o diálogo para uma atuação conjunta e mais efetiva. Diversas iniciativas realizadas a partir da gestão municipal ao longo deste período, como o fórum governamental de Promoção da Igualdade Racial, instituído Decreto nº438/2014, a atuação e a pactuação em torno deste é condição sine qua non para a materialidade e intersetorialidade da política pública de promoção da igualdade racial.

Por último, deve-se considerar que a aprovação do plano municipal de promoção da igualdade racial e a articulação para a aprovação dos marcos leis municipais são frutos de arranjos institucionais e articulação governamental, da atuação do movimento negro e do conselho municipal de promoção da igualdade racial.

Nesse momento vale destacar outra reflexão de LIMA e RAMOS (2017), que ao analisarem o processo de implementação da política pública da política de promoção da igualdade racial que

“tais instabilidades revelam o baixo nível de força institucional que possuem as políticas de igualdade racial. Isto as tornam dependentes de outros […], os quais terão ou têm outras perspectivas, que não aquelas do combate às desigualdades raciais”. (LIMA e RAMOS, p.13; 2017).

A análise produzida por JACCOUD (2009) sobre as dificuldades no processo de implementação da política de promoção da igualdade racial aponta para algumas questões importantes e que alerta para a reflexão, aqui apresentada, sobre Contagem:

A análise da trajetória das iniciativas federais voltadas ao enfrentamento do problema racial tem apontado para a existência de um conjunto de dificuldades, entre as quais se podem indicar a descontinuidade, a limitada cobertura e a ainda insuficiente coordenação. Ao lado destas dificuldades, referentes à gestão, deve-se destacar a complexidade do problema em foco. Os programas, as ações e os instrumentos de combate à desigualdade racial enfrentam um conjunto variado de fenômenos, tais como a discriminação direta, a discriminação indireta, o chamado racismo institucional e o preconceito racial. Enfrenta-se, ainda, o próprio racismo como formulação que sustenta a ideia de uma hierarquia entre grupos raciais. Distinguir este conjunto de fenômenos e enfrentá-los permitirá não apenas combater o processo de concentração da população negra nos segmentos mais baixos da estratificação social, como também superar um dos mais importantes fatores atuantes no processo de produção e reprodução da desigualdade social que marca a sociedade brasileira. (JACCOUB, 2009, p. 14)

Reconheço que, no município de Contagem, ainda se vive um processo incipiente de implementação da política pública de promoção da igualdade racial, mas considerando as instabilidades que juntos revelam a necessidade de maior institucionalização. Por outo lado, a não consideração do racismo estrutural na produção das desigualdades e hierarquias raciais na formulação das políticas públicas pode levar, conforme destaca ALMEIDA (2019, p 32) a “reproduzir as práticas racistas já tidas como ‘normais’ em toda a sociedade”.

Novos passos precisam ser dados na perspectiva de maior efetividade desta política pública e para o efetivo enfrentamento ao racismo e de superação das desigualdades raciais no município de Contagem.

Bibliografia

ALMEIDA, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019

JACCOUD, Luciana (Org.). A construção de uma política de promoção da igualdade racial: uma análise dos últimos 20 anos; Brasília; Ipea, 2009

LIMA, Márcia; RAMOS, Paulo. Educação e políticas de promoção da igualdade racial no Brasil de 2003 a 2014; Friederich Ebert Stiftung/Brasil; Análise nº 31,2017.

SILVA, Tatiana Dias. Políticas de igualdade racial no brasil: avanços e limites. Disponível em: < https://www.academia.edu/35369673/Pol%C3%ADticas_de_igualdade_racial_no_Brasil_avan%C3%A7os_e_limites>. Acesso em 20 de ago. de 2023.

João Carlos Pio de Souza: Mestre em Educação; Professor de História na Rede Estadual de Educação; Atual Superintendente de Política para a Promoção da Igualdade Racial/Secretaria Municipal de Direitos Humano e Cidadania Prefeitura Municipal de Contagem; Membro associado da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN), onde coordena o Fórum Permanente da Educação Básica (FNEB); Membro da Irmandade de Nossas Senhora do Rosário da Comunidade Quilombola dos Arturos; Membro da Associação dos Agentes de Pastoral Negros (APNs), Ogan do Ilé Axé Alá Tooloribi; Ex-Superintendente de Política para Povos e Comunidades Tradicionais/Secretaria de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Gestão 2015 a 2018); Ex-Conselheiro Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2005-2007).

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