A ideia de um governo de combate me veio esses dias, observando a agenda da prefeita Marília Campos e os comentários em suas redes sociais. É uma agenda intensa, com uma grande variedade de eventos, forte presença na comunidade e que gera comentários do tipo “Contagem tem Prefeita” “O trabalho não para”, “Contagem no rumo certo!”, em franco reconhecimento do trabalho que vem sendo realizado pela prefeita e seu governo. Mas, também enseja uma grande quantidade de demandas, várias delas procedentes, além de ataques à administração e à chefe do Executivo, alguns legítimos, outros frutos da falta de informação e da má-fé. Trata-se de um permanente estado de mobilização e de luta, pensei cá com meus botões.
Entretanto, não creio que o termo “governo de mobilização” esteja consagrado em algum manual de Ciência Política. Pelo menos, não me recordo de tê-lo visto em algum lugar.
Uma provável explicação para isso é que a ideia da mobilização remente a conflito, ao passo que a ideia de governo sugere uma situação de ordem e pacificação. Mobiliza-se contra ou a favor de algo e, em ambos os casos, a mobilização visa vencer resistências e satisfazer a uma determinada demanda. Mobiliza-se para ganhar a eleição. Há antagonismo. Mas, passado o momento da disputa eleitoral, o governo eleito deve governar para todos e tentar diluir as desavenças graves que impedem a formação de uma coalizão governamental capaz de governar de fato.
Assim, de forma geral e, exceto, talvez, nos casos de algumas experiências revolucionárias[1], não são usuais governos que envolvam a população, de forma sistemática e permanente em processos mobilizatórios, ainda que, topicamente, os governos possam lançar mão desse recurso.
Os governos convocam as pessoas a se mobilizarem, por exemplo, nas campanhas de vacinação – que são contra uma doença, ou nas campanhas pró-matrículas escolares, que afetam as famílias, conselhos tutelares, etc. Num sentido mais amplo, é possível citar o Sistema Nacional de Mobilização (Sinamob), inovação adotada pelo governo Lula em 2007, mas com objetivos também tópicos: enfrentar situações catastróficas, de crise internacional e de ameaças à soberania do país.
Estes exemplos refletem situações que dependem do engajamento da população para se alcançar o resultado desejado, mas esse engajamento tem finalidade específica, é temporário e se faz dentro dos limites estabelecidos pela autoridade promotora.
É necessário frisar que, até recentemente, no campo Ciência Política, os processos de mobilização popular eram vistos com desconfiança por gerarem demandas que, do ponto de vista da intelectualidade conservadora, não poderiam ser atendidas sob pena de descontrole orçamentário e, por consequência, de crises que instabilizariam os regimes democráticos.
Nessa perspectiva, os golpes militares que assolaram a América do Sul nas décadas dos 60 e 70 do século passado chegaram a ser justificados por certos analistas como uma solução inevitável para reequilibrar a relação entre a pressão radicalizadas por direitos e a suposta baixa capacidade dos governos de atenderem a essas demandas.
Um exemplo dessa linha de raciocino está em Samuel Huntington, autor de grande influência no cenário acadêmico brasileiro nos anos sessenta. Para Huntington, o acelerado processo de urbanização e os aumentos nos índices de alfabetização, educação e exposição aos meios de massa teriam provocado “um incremento das aspirações e expectativas, as quais, se não satisfeitas, galvanizam os indivíduos e os grupos para a política. Na ausência de instituições políticas fortes e adaptáveis, tais acréscimos de participação redundam em instabilidade e violência” (2). O grifo é meu.
Compreende-se, desta forma, que o modo de fazer mobilização social para os representantes mais conservadores do poder público tenha sentido tópico, pontual, descontínuo e inclua certa aversão ao envolvimento expansivo da sociedade e, em especial, a qualquer sombra de autonomia civil.
Essa abordagem, que recomenda a desmobilização da sociedade, passou a ser questionada a partir dos anos 1980 devido à crise estrutural do modelo liberal de democracia representativa (3). É o momento em que fervilham pesquisas sobre as experiências participacionistas e sobre as influências positivas da “cultura política” e do “capital social” (4) sobre a gestão do Estado.
Essa produção, todavia, permaneceu muito vinculada aos experimentos focados na questão orçamentária, como no caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Portanto, experiências limitadas no espaço e no tempo. Não que haja erro nesta linha de pesquisa. Ao contrário, como observei em outro lugar, o Orçamento Público está no centro dos conflitos de interesses em nossas sociedades e não é exagero afirmar que toda a atual crise da democracia não passa, em última análise, de uma consequência da radicalização da luta entre os atores sociais por seu controle (5).
A abordagem econômica, entretanto, é insuficiente para dar conta do conjunto de questões que envolvem a vida coletiva na atualidade. Temas como o racismo, o sexismo e preconceitos de forma geral, a pauta ambiental, a questão dos direitos dos animais, o projeto de uma nação soberana, entre muitos outros assuntos, esbarram em costumes e convicções arraigados e assentados ao longo de gerações e que não serão mudados com a simples melhoria das condições materiais de vida das pessoas, ainda que este seja um passo indispensável na redução das desigualdades sociais.
Assim, numa abordagem gramsciana, qualquer projeto moderno, desenvolvimentista e socialmente inclusivo de país — ou de cidade — deve se dispor a lutar pela hegemonia sobre o grupamento ao qual se destina, numa abordagem que vá além do terreno da economia. Sua meta central deve ser conquistar mentes e corações; buscar consensos sustentados por valores humanistas e civilizatórios e, enfim, criar e manter, permanentemente mobilizada, sua base política e social de sustentação, a começar por seu eleitorando, avançando progressivamente sobre as posições da oposição, de modo a tornar-se não apenas uma força majoritária, mas também uma força hegemônica no território considerado.
É este o sentido do conceito de mobilização que defendo. A mobilização ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade ou uma sociedade decide e age com um propósito comum desejado por todos, ou quase todos, compartilhando a interpretação e o sentido dessa busca. Por isso, o mobilizar-se é um gesto de vontade e um ato racional. Já “mobilizar” é criar situações que favoreçam o despertar do desejo de mudança, ajudem esse desejo a se tornar uma consciência da necessidade de mudança e, finalmente, levam à transformação desse desejo e dessa consciência em disposição para a ação. É por esse caminho, acredito, que se constrói uma base política e social de sustentação.
Ainda recorrendo a Gramsci, compartilho da ideia de que a supremacia de um grupo tanto se mede por seu poder de fato e que o torna capaz de se impor, se necessário e, portanto, como “domínio”, quanto por sua capacidade de cativar e influenciar seus aliados, simpatizantes e neutros, portanto, como “direção intelectual e moral”.
Guardadas as devidas proporções, não é exatamente isso que é feito em Contagem e que a agenda da prefeita revela
Em primeiro lugar, o governo exibe uma musculatura invejável ao colocar em prática um poderoso plano de ação, em todas as áreas, desde os investimentos em saúde, educação, urbanização e infraestrutura, etc, até o novo plano Diretor, que indica por onde passa o desenvolvimento da cidade. Neste sentido, o governo age no sentido de insular a oposição – especialmente aquela com a qual não há dialogo possível – e se tornar a grande força política dominante na cidade.
Em segundo lugar, o governo Marília Campos cria, de forma permanente, eventos que alteram o cotidiano das pessoas e geram oportunidades para que elas se encontrem, interajam, celebrem, reflitam e deliberem, num processo que vai desde a valorização dos conselhos municipais de políticas públicas até os granvdes shows que levam milhares de pessoas às praças, passando pela adoção de formas inovadores de gestão participativa, como os conselhos de moradores por territórios.
Assim, podemos dizer sem medo de erro, que nossa cidade está, realmente, sob a direção de um “governo de mobilização e luta por um futuro bom e comum”. Talvez no futuro encontremos este conceito consagrado nos compendios da Ciência Política.
Ivanir Corgosinho é sociólogo
NOTAS
[1] A exemplo de Cuba e seus Comitês de Defesa da Revolução (CDR), dos sovietes russos nos primeiros anos da tomada do poder pelos bolcheviques e da Revolução Cultural na China de Mao Tsé-Tung
[2] HUNTINGTON, S. 1975. A ordem política nas sociedades em mudança, 1975, p. 60. Rio de Janeiro/São Paulo : Forense-Universitária/Edusp.
(3) BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo). Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. 171 p.
(4) BOURDIEU, P. O capital social – notas provisórias. In: CATANI, A. & NOGUEIRA, M. A. (Orgs.) Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
[4) Corgosinho, Ivanir. Democracia, participação e transparência no Governo Marília Campos, in: Araújo, José Prata; Contagem feliz com Marília, 2023.