“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. Por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”
John Donne
Com este artigo, o quarto de uma série, encerro minha produção sobre a plataforma de governo que devemos apresentar na eleição deste ano. No primeiro deles [1], apontei a necessidade de um horizonte ideológico para o programa, sem o qual, dificilmente, será possível encontrar a imaginação e as energias necessárias para superar as dificuldades do cotidiano gestão municipal. Além disso, situei as condições que precisam ser observadas para a construção de um plano de governo sustentável e que corresponda tanto às expectativas dos moradores quanto às questões postas aos municípios pelo tempo presente: responsabilidade fiscal, inovação e aprofundamento da intersetorialidade. No segundo artigo [2], tratei dos objetivos e metas estratégicas que devem ser indicadas na plataforma, retomando o conceito “social-desenvolvimentismo” como norte orientador. Finalmente, no terceiro texto[3], desdobrando o anterior, abordei as “funções sociais” que devem ser cumpridas pela cidade no contexto do projeto social-desenvolvimentista e, portanto, os campos de ação e as iniciativas a serem encetadas pelo futuro governo.
Desta vez, pretendo discutir o problema da descontinuidade das politicas públicas e como evitá-la. Trata-se de uma questão intricada, mas essencial. A descontinuidade deve ser aceita como um pressuposto elementar do princípio da alternância de poder que caracteriza os regimes democráticos. Ainda assim, proponho que sejam adotadas medidas que impeçam ou, pelo menos, dificultem esta possibilidade sempre que ela significar retrocessos na implementação do programa social-desenvolvimentista que, por sua própria natureza, exige a adoção de políticas de longo prazo. O esforço para se acabar com a miséria e a fome de modo sustentável e definitivo, por exemplo, pode levar décadas.
Portanto, trata-se de uma preocupação relevante uma vez que, no Brasil, apesar do avanço representado por instrumentos de planejamento como o Plano Plurianual (PPA), ainda há uma forte cultura de “reiniciar” o governo nos casos de alternância entre situação e oposição. É relativamente fácil encontrar, tanto no noticiário quanto na produção acadêmica, textos que retratam a solução de continuidade de programas vitais nas mais variadas áreas e em diversos temas devido à troca do governo de plantão. Esta, segundo pesquisadores do tema [4], [5], é uma das características mais marcantes da gestão pública brasileira.
Se descartarmos as soluções autoritárias, me parece que a via mais promissora para que uma determinada politica seja continuada e ver aumentadas suas chances de implementação por seja lá qual for o governo, é a sua institucionalização mediante leis e outras normativas que a convertam em politicas de Estado, com seus respectivos conselhos gestores, fundos orçamentários, estatutos, etc. Um exemplo dessa possibilidade é a aprovação, aqui em Contagem, da Lei 5443/2023 que criou a Política Municipal de Participação Popular e Cidadã — PMPPC e o Sistema Municipal de Participação Popular e Cidadã de Contagem – SMPPC. A proposição foi uma iniciativa da prefeita Marília Campos com a intenção de dar estabilidade e permanência aos múltiplos canais de participação oferecidos por seu governo [6].
Hoje, podemos dizer que, ao menos em tese, o município tem uma política municipal de participação popular que pertence à comunidade, e não apenas ao governo eleito. Esta é uma condição essencial às políticas de Estado. É mais difícil revogar políticas e programas quando estão institucionalizados, quando contam com o apoio de diversos sujeitos políticos (partidos, organizações da sociedade civil, lideranças populares etc). Será ainda mais difícil se estas políticas tiverem conquistado o coração das pessoas. Este é o grande desafio.
O ideal é que as políticas inspiradas no projeto social-desenvolvimentista e, de resto, todo o projeto, conquistem uma base social capaz de sustentá-las por longo tempo (quem sabe por décadas), conformando-se, ao final, como uma cultura política e ideológica tal como, no passado, aconteceu com a social-democracia, com o socialismo e com o comunismo na velha Europa, sem falarmos da própria ideia de democracia que, atualmente, é um valor praticamente universal.
Ocorre que, como tenho discutido em diversos artigos, vivemos tempos de fragmentação dos sujeitos sociais, de dissolução das grandes narrativas panorâmicas e de singularização radical das perspectivas. Tempos de apologia a uma liberdade individual que se sobrepõe ao bem comum, de valorização exacerbada da noção de mérito e de migração dos coletivos relativamente heterogêneos para as bolhas confirmativas num ambiente pautado pelo acirramento da competição e da intolerância. Em tais circunstancias, constituir um campo social unificado em torno de um mesmo ideal e socialmente majoritário ou, pelo menos, com algum poder de obstrução e veto, é tarefa para gigantes.
Realizá-la requer, em primeiro lugar, encontrar e mobilizar aquele elemento subjetivo que pode conectar os indivíduos uns aos outros, levá-los a sair de suas bolhas e, apesar e além de suas diferenças, seguirem juntos, cooperativos e solidários como partícipes de uma mesma comunidade.
Não tenho a pretensão de oferecer uma receita para este dilema. Todavia, a partir da experiência viva das gestões Marília Campos em Contagem e dos estudos e pesquisas que temos à nossa disposição sobre a questão da governança pública, penso que existem algumas soluções possíveis.
Contagem passa atualmente por um estado de efervescência impulsionado por um governo que promove a integração da cidade e a coesão social seja com obras e investimentos em infraestrutura para o desenvolvimento, seja com a prestação dos serviços necessários ao bem-estar da população, seja, enfim, com uma agressiva política de estímulos à convivência e interação das pessoas no espaço público por meio de reuniões, seminários, palestras, festas, shows, revitalização das praças, etc. A população aderiu a essa proposta e aprova o governo com índices impressionantes, como mostram todas as pesquisas de opinião realizadas nos últimos três anos.
Em consequência, a margem disponível para o oposicionismo (em especial o oposicionismo de extrema direita) foi reduzida a um gueto. Sustentada por esse projeto, além de, é claro, por suas qualidades pessoais, a prefeita Marília Campos caminha para a reeleição com o apoio declarado e entusiasmado de muitos eleitores que “odeiam o PT, mas amam a prefeita”, como já cansamos de ouvir.
Nesse sentido, o projeto implementado na cidade, sob a liderança de Marília, dialoga com duas propostas de resposta à fragmentação dos coletivos e dissolução do tecido social que me parecem promissoras. Uma delas, diz respeito a ações, institucionais ou não, visando aproximar as pessoas e mobilizá-las em torno de causas e/ou questões. A outra envolve medidas para organização e ocupar o espaço público de forma a provocar uma alteração do comportamento das pessoas.
A amizade social — No primeiro caso, tenho em mente a Campanha da Fraternidade deste ano, cujo tema é a chamada “amizade social” [7], expressão utilizada pelo Papa Francisco na encíclica “Fratelli Tutti” (Todos irmãos) [8]. Apresentada como um caminho para a renovação e humanização das relações humanas, a ideia da amizade social implica ir até o outro, ampliando nosso círculo de relações (“alargar a tenda”), especialmente na direção daqueles que mais necessitam de apoio e trabalhar para promover a coesão social e o bem comum. É, por conseguinte, um apelo em favor de uma cultura do diálogo, da reconciliação e da paz extremamente oportuno considerando o clima de radicalização da violência e da intolerância que tem contaminado as relações sociais nos últimos anos.
A ideia não é nova. Na Ética a Nicômaco [9], Aristóteles pondera que, dentre os sentimentos que podem vincular os homens entre si com mais intensidade, o principal é a amizade. Para o filósofo, assim como para Francisco, a amizade é um movimento desinteressado em direção ao outro, para apoiá-lo na sua dor ou compartilhar de suas alegrias. A forma mais valiosa de amizade seria aquela em que os homens bons e de virtude desejam igualmente bem uns aos outros, num exercício de boa vontade recíproca e mutuamente reconhecida (grifei). Dessa forma, a amizade estaria na própria base de sustentação da polis e, como tal, mais que um sentimento de afeto, seria um valor a ser cultivado como virtude política.
Aristóteles também afirma que a amizade é um tipo de relacionamento que, para sobreviver, precisa ser alimentado regularmente. Diz ele:
“Amigos que se separam não são amigos ativamente, mas têm disposição para sê-lo. Pois a separação não destrói absolutamente a amizade, embora impeça seu exercício ativo. Porém, se a ausência se prolonga, parece provocar um esquecimento do próprio sentimento de amizade”.[10]
Ou seja, uma amizade ativa precisa de encontros frequentes e, se os tiver, poderá ser de longa duração.
Atualmente, esta ideia pode parecer um tanto esdruxula, já que nos acostumamos às chamadas amizades virtuais que, rigorosamente, não fazem a menor diferença em nossas vidas. Mas, devemos nos lembrar que Aristóteles escreveu no século III a.C., num momento que a população de Atenas, apesar de grande para os termos da época, seria considerada pequena se comparada às metrópoles atuais. Ademais, naquele tempo, não haviam televisores, celulares, jogos de computador, redes sociais e outras formas de distanciamento entre as pessoas.
Nas sociedades contemporâneas, as amizades “verdadeiras” e de longa duração foram empurradas para a esfera da vida privada e, pouco ou nada, têm a ver com a vida pública. A efemeridade tornou-se uma marca da experiência cotidiana dos indivíduos, junto com a diminuição dos encontros face a face entre esses amigos [11] e a amizade, tal como compreendemos o conceito, parece ter deixado de ser uma força socialmente significativa. Nesse sentido, a proposta da amizade social apresentada pelo Papa Francisco tem como mérito o resgate do pressuposto aristotélico em novas bases.
A urbanidade — A segunda via a que me referi é o investimento na urbanidade, um valor essencial para a vida de uma cidade. Esse conceito envolve duas dimensões. Em primeiro lugar, trata-se da construção de espaços públicos acolhedores, acessíveis, funcionais e belos que atraiam as pessoas e as façam sair de casa no cotidiano de suas vidas. Dai a importância da praça, do parque, dos jardins, das pistas de caminhada, ciclovias e outros equipamentos esportivos onde as pessoas possam passear com as crianças, sentar num banco e namorar, encontrar amigos, vagabundear, fazer uma caminhada, etc.
O fundamental é fazer com que as pessoas se encontrem na rua e compartilhem de relações vizinhais. Esta dimensão envolve, também, a participação em fóruns, organizados ou não pelo governo, para tratar dos temas relativos ao território. Em “Ação e a busca da felicidade”[12], Hannah Arendt faz um comentário sobre a satisfação dos norte-americanos que participavam das assembleias de suas cidades durante o processo da independência que considero de validade universal como meio para incentivar a autoestima das pessoas. Hanna refere-se à paixão dos indivíduos pela distinção. De acordo com ela, essa vaidade seria satisfeita à medida que, nas assembleias, o sujeito poderia ia ser “visto, ouvido, comentado, aprovado e respeitado pelas pessoas ao redor e ter conhecimento disso” [12].
A segunda dimensão da urbanidade, intimamente ligada à primeira, diz respeito à oferta de oportunidades para uma “suspensão” do cotidiano e para o extravasamento da alegria de viver na presença de estranhos. Eventos que rompem com a vida ordinária e envolvem a presença de grandes e pequenas multidões, oferecem oportunidades únicas para a livre expressão de todos, ao contrário do cotidiano, onde lidamos principalmente com conhecidos (a família, a igreja, o trabalho, o círculo mais próximo de amigos, etc.) e de acordo com certas regras de hierarquia e obediência que inibem o contraditório e a mudança. Dentre as múltiplas possibilidades de reunião das pessoas, a festa é a que mais oferece chances para compartilharmos a experiência da felicidade comum e viver um sentimento coletivo de alegria[13]. Nesse sentido, é também a que mais colabora para a eliminação de artificialismos e hierarquias, para a aproximação das pessoas, para a quebra de preconceitos e dissolução de intolerâncias. Isso não significa que as festas eliminem os conflitos, mas certamente contribuem para a pacificação do ambiente urbano.
Pesquisas e estudos em profundidade demonstram que uma vida urbana efervescente, com uma pluralidade de oportunidades para convivência e para a celebração, é mais propícia à tolerância, à afetividade e à solidariedade. Neste sentido, remete a uma vida coletiva na qual os conflitos do cotidiano são tratados de modo educado, civilizado e têm suas soluções pactuadas em processos de negociação entre as partes com base em critérios mutuamente aceitos como justos.
Por outro lado, pesquisas sobre resultados eleitorais na Europa, nos EUA e, mais recentemente no Brasil, têm observado uma relação entre o voto em partidos mais à esquerda do espectro político e o eleitor dos maiores centros urbanos. A tese é que, ao ser levado a coexistir e a se relacionar com o seu outro diferente com mais frequência, este eleitor tenda a se tornar mais propenso a aceitar valores modernos, universalistas e humanistas [14].
Por conclusão, tanto a noção de urbanidade quanto a de amizade social operam na mesma direção, como políticas complementares. Ambas contribuem para formação de indivíduos mais propensos a aceitar e a conviver com o diferente e com mudanças comportamentais, morais e dos costumes e, nesse sentido, mais resistentes ao conservadorismo – o que é fundamental para a constituição de uma convicta, forte e duradoura base social de sustentação para o projeto social-desenvolvimentista.
Ivani Cargosinho é sociólogo
NOTAS
[1] Ivanir Corgosinho: Anotações para o programa. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-corgosinho-anotacoes-para-o-programa
[2] Ivanir Corgosinho: Um plano de governo social-desenvolvimentista. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-cargosinho-um-plano-de-governo-social-desenvolvimentista
[3] Ivanir Corgosinho: Resgatar a função social das cidades. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-corgosinho-resgatar-a-funcao-social-das-cidades
[4] SPINK, Peter. Continuidade e descontinuiadde em organizações públicas: um paradoxo democrático. Cadernos Fundap. São Paulo, ano 7, número 13, 987. . Disponível em https://pesquisa-eaesp.fgv.br/sites/gvpesquisa.fgv.br/files/arquivos/spink-_continuidade_e_descontinuidade_.pdf
[5]Nogueira, Fernando do Amaral. Continuidade e Descontinuidade Administrativa em Governos Locais: Fatores que sustentam a ação pública ao longo dos anos. Dissertação apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, em cumprimento parcial dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Administração Pública e Governo. São Paulo 2006 . Disponível em https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/fa940480-8761-4436-88fe-a493610b8e3a/content
[6] Ivanir Corgosinho: A legalização da participação popular em Contagem. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-corgosinho-a-legalizacao-da-participacao-popular-em-contagem
[7] CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Campanha da Fraternidade 2024:Texto-Base. Brasília: Edições CNBB,2023.
[8] FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020. Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html#_ftnref223
[9] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
[10] Op. Cit.
[11] HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 13 ed. São Paulo: Edições Loyola.
[12] ARENDT, Hannah. Ação e a busca da felicidade. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2018.
[13] SOUZA, Marcos Felipe Sudré, 1980. A festa e a cidade: experiência coletiva, poder e excedente no espaço urbano. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2013.
[14] Ivanir Corgosinho: Urbanidade, valores progressistas e voto: uma aproximação. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-corgosinho-urbanidade-valores-progressistas-e-voto-uma-aproximacao