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Ivanir Corgosinho: Resgatar a função social das cidades

A ordem mundial que emergiu nos anos 1970, com o neoliberalismo e com a chamada globalização, está em crise. Crise profunda, sem que se tenha alguma noção de quais são as condições para sua superação.

Por um lado, vivemos o que muitos autores chamam de “desglobalização”, termo que me parece inadequado.

Não é mais possível desfazer as estruturas internacionais de comando e decisão formadas nas últimas décadas e retornar à situação prévia, quando os Estados Nacionais conseguiam amplo controle sobre os territórios no interior de suas fronteiras. Nesse sentido, a interdependência e integração dos fluxos de pessoas, informações e mercadorias em escala mundial são variáveis que vieram para ficar.

De toda forma, é imperativo reconhecer que fenômenos como as disputas comerciais entre a China e os Estados Unidos; o fortalecimento dos BRICS; o Brexit, pelo qual o Reino Unido abandonou a União Europeia; o acirramento das políticas protecionistas nos EUA; o renascer de identidades nacionais e/ou religiosas; a guerra entre Ucrânia e Rússia; o atual conflito na Faixa de Gaza entre Israel e o Hamas, dentre muitos outros fatores de tensão, apontam para um forte abalo na ordem internacional neoliberal. [1]

Empresas e países são forçados a repensar suas estratégias globais, investimentos são paralisados ou revistos, o comércio global vive um período de insegurança e a diplomacia mundial se encontra à beira de um ataque de nervos.

Por outro lado, frente a ineficiência do neoliberalismo como politica econômica de governo para gerar equilíbrio e estabilidade, vêm se tornando comuns os apelos por uma “nova ordem econômica mundial” na qual organismos estatais e, portanto, o próprio Estado Nacional, voltem a cumprir o papel de impulsionadores e coordenadores da economia mundial.

É o caso, por exemplo, da diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, que disse, em 2020: “Hoje, estamos diante de um novo ‘momento’ Bretton Woods”.[2] Como se sabe, os acordos de Bretton Woods, assinados em 1944, criaram o FMI, o Banco Mundial e estabeleceram as bases para o comércio internacional e as políticas de reconstrução após a Segunda Guerra Mundial. Na mesma toada vão Klaus Schwab, economista e fundador do FMI, quando afirma que temos de deixar para trás o “neoliberalismo na era pós-Covid[3], e o secretário-geral da ONU, António Guterres que, ano passado, afirmou: “É tempo de um novo momento Bretton Woods”.[4]

Acredito que, de fato, entre determinados setores das elites dominantes exista uma preocupação real com o estado da arte do mundo atual e que haja um apelo sincero por uma nova governança mundial que não deixe as coisas nas mãos dos grandes conglomerados financeiros. Ocorre que, do modo como vão, há um risco sério de que os conflitos cheguem a um nível bélico mais ou menos generalizado, militarizando as relações internacionais, colapsando os esforços de transição para uma economia de baixo carbono e colocando em risco as já precárias democracias ocidentais.

Temos, nesse sentido, uma importante janela de oportunidades para, no interior dos debates que estão em andamento, reforçar aquelas pautas que são do interesse do campo progressista e de esquerda: valorização do trabalho humano, justiça social, combate à fome e à miséria, soberania nacional, etc.

É importante frisar que se trata de uma janela de oportunidades porque, até o momento, a esquerda (como um sujeito político articulado na forma de partidos, associações ou movimentos) tem fracassado miseravelmente na construção de uma resposta à crise global neoliberal. Pretendo tratar deste ponto em outro artigo, mas é fato que vivemos uma situação de penúria imaginativa dramática.

O campo da direita, por outro lado, tem obtido amplo sucesso ao capitalizar e mobilizar as frustrações e o descontentamento das populações com o baixo crescimento econômico, as altas taxas de desemprego, aumento da miséria e da pobreza, a fragilização da soberania nacional, entre outras consequências de décadas de neoliberalismo. Essas mazelas estão, portanto, na base da reinserção da direita e da extrema direita nos cenários políticos, bem como são o seu principal fator explicativo. Em momentos de fartura, dificilmente a direita e, em especial, a extrema direita, terá o mesmo desempenho.

Sendo assim, compreender o sentido da prosperidade, do conforto e da fartura na luta simbólica contra o conservadorismo e o reacionarismo, é essencial. O neoliberalismo, como ideologia e visão de mundo, não pode governar sem produzir um sentimento de frustração generalizado porque alimenta um ideal de satisfação e felicidade que não é para todos e que só pode ser alcançado via a competição desenfreada entre os indivíduos, em detrimento da solidariedade e da colaboração.

É nessa perspectiva que aponto a necessidade de retomarmos o conceito de “social-desenvolvimentismo”, que desenvolvi em artigo anterior[5] e, agora, apresento a ideia da “função social das cidades”. Em ambos os casos, o que pretendo é contribuir com a elaboração dos fundamentos da plataforma de governo que devemos apresentar na eleição deste ano, fixando tanto o horizonte ideológico que deve orientá-la, suas metas e diretrizes estratégicas e, finalmente, um roteiro que subsidie suas propostas concretas de planos de ação.

A função social das cidades – Este conceito tem suas origens no movimento urbanista que, a partir da década de 1970 (ao mesmo tempo que o neoliberalismo e a globalização se consolidavam como ideologias dominantes no período), colocou em pauta o debate sobre as condições de vida nas cidades e seus problemas crescentes. O assunto foi tema da primeira Conferência Mundial sobre Assentamentos Urbanos, realizada em 1976 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 1993, foi publicada a famosa “Carta de Atenas” onde, pela primeira vez, se propôs um conjunto de funções sociais que deveriam ser atendidas pelas cidades: habitar, trabalhar, recrear-se e circular.[6]

Mais tarde, em 1998, o Conselho Europeu de Urbanistas (CEU) revisou a carta de 1993 e elaborou a “Nova Carta de Atenas”, ampliando para dez as funções sociais das cidades – listadas ao fim deste artigo. Mais recentemente, em Lisboa, em 2003, o CEU aprovou uma nova versão da carta, incorporando o conceito de ‘Cidade Inteligente’.[7]

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 incorporou a ideia de se cobrar das cidades uma função social, como se vê no Capítulo II, chamado Da política Urbana, em seu artigo182, que diz:

A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”

Note-se que, embora não exima os demais entes federados de responsabilidades no desenvolvimento urbano, a Constituição Federal atribui essa tarefa ao Poder Público municipal, prioritariamente.

A elaboração do conceito “função social da cidade” corresponde à tentativa de se elaborar uma nova ética urbanística que priorize os interesses coletivos em detrimento dos interesses privados, individuais ou de grupos, compreendendo a cidade como um bem comum produzido pelo esforço da coletividade. Representa, neste sentido, um avanço teórico em relação ao campo interpretativo que valoriza a propriedade privada como um direito absoluto, menosprezando as consequências perversas do livre mercado sobre o processo de ocupação dos territórios, em especial, para a população de mais baixa renda. Trata-se, por conseguinte, de uma conquista importantíssima para a perspectiva antineoliberal.

Ora, é nas cidades que as pessoas buscam os recursos necessários para que possam realizar suas necessidades radicais, como se alimentar, se vestir, morar, cuidar dos filhos e da saúde física e mental, além de frequentar uma escola, ir a cultos religiosos e confraternizar-se com parentes, vizinhos e amigos. Essas atividades possuem condicionalidades, entre as quais podem ser mencionadas a disponibilidade de meios de transporte, vias acessíveis e fluentes, pontos de parada minimamente aprazíveis e funcionais no trajeto; ambiente seguro, socorro em caso de necessidade e espaços para a confraternização, dentre outros requerimentos.

No neoliberalismo, boa parte dessas funcionalidades é apropriada e entregue à gestão privada. Bens e serviços coletivos são convertidos em mercadorias e passam a ser ofertados em conformidade com a lógica de rentabilidade e da financeirização, levando, inevitavelmente, à segregação urbana, ao fortalecimento das distâncias como via para o estabelecimento de distinções de status e prestígio e à formação de áreas precarizadas.

Nesse sentido, e contra essa realidade, os gestores de municípios precisam travar a batalha contra a privatização da cidade nos seguintes termos:

A cidade tem como fim principal atender a uma função social, garantindo a todas as pessoas o usufruto pleno da economia e da cultura da cidade, a utilização dos recursos e a realização de projetos e investimentos em seus benefícios e de seus habitantes, dentro de critérios de equidade distributiva, complementaridade econômica, e respeito à cultura e sustentabilidade ecológica; o bem estar de todos seus habitantes em harmonia com a natureza, hoje e para as futuras gerações.”[8]

Nesse sentido, o modelo social-desenvolvimentista guarda forte sintonia com o conceito de função social das cidades à medida que prevê uma série de políticas públicas nas mais variadas áreas, tendo em vista garantir o acesso das pessoas às chances vitais para uma vida boa, sem que o cidadão e a cidadã necessitem pagar pelo serviço.

Finalmente, cabe relembrar o que já afirmei num artigo anterior. Os mandatos da prefeita Marília Campos de 2005 a 2012, tanto quanto o atual, oferecem vasto material demostrando que é possível adotar políticas pró-ativas do poder público municipal, tendo como meta a melhoria geral das condições de vida da população. Aqui, temos a aplicação práica do modelo de social-desenvolvimentista e do conceito de cidade com função social fortemente com base numa noção muito nítida sobre os dois princípios morais, éticos e ideológicos decisivos para qualquer cidade. Elas devem ser construídas por todos e para todos e, portanto, devem ser inclusivas e não deixar ninguém para trás;  e devem ser humanistas, ou seja, focadas na promoção do desenvolvimento pessoal e coletivo das pessoas.

Eis a essência da cidade “marilista”, a essência da cidade que queremos continuar construindo.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

NOTAS
[1] João Estevam dos Santos Filho, Crise do neoliberalismo tem levado à elevação de diversas crises a nível internacional. Ver Le Monde Diplomatique Brasil, edição 203. Junho de 2024. Disponível em https://diplomatique.org.br/crise-ordem-internacional-neoliberal.

[2] Diretora-gerente do FMI diz que é hora de fazer um mundo ‘mais sustentável e igualitário’ – https://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2020/10/diretora-gerente-do-fmi-diz-que-e-hora-de-fazer-um-mundo-mais-sustentavel-e-igualitario.html

[3]Capitalismo pós-Covid. Artigo de Klaus Schwab, disponivel em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/603696-capitalismo-pos-covid-artigo-de-klaus-schwab

[4] Governança global está parada no tempo e é preciso reformá-la, diz secretário-geral da ONU. Disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/09/19/governana-global-est-parada-no-tempo-e-preciso-reform-la-diz-secretrio-geral-da-onu.ghtml

[5]Ivanir Corgosinho: Um plano de governo social-desenvolvimentista. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-cargosinho-um-plano-de-governo-social-desenvolvimentista/

[6] GARCIAS, Carlos Mello e BERNARDI, Jorge Luiz. As funções sociais da cidade, in Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Curitiba – PR, volume 4, 2008..

[7] A Visão do Conselho Europeu de Urbanistas sobre as Cidades do séc. XXI. Conselho Europeu de Urbanistas (CEU), Lisboa, 20 de Novembro de 2003. Disponível em https://apu.pt/wp-content/uploads/2024/02/Nova-Carta-de-Atenas_2003_pt.pdf

[8] Carta Mundial do Direito à Cidade. V Fórum Social Mundial. Porto Alegre – Janeiro 2005. Diponível em https://www.right2city.org/wp-content/uploads/2019/09/A1.4_Carta-Mundial-do-Direito-%C3%A0-Cidade.pdf.

APÊNDICE
OS DEZ FUNDAMENTOS DA NOVA CARTA DE ATENAS

1. Uma cidade para todos — Deve estabelecer a inclusão das comunidades através da planificação espacial e medidas sociais e económicas que por si só devem combater o racismo, a criminalidade e a exclusão social.

2. Cidade participativa — Desde o quarteirão, o bairro, o distrito, o cidadão deve possuir espaços e meios de participação pública para a gestão urbana, ligados numa rede de ação local.

3. A cidade deve ser um refúgio — Ou seja, deve estar protegida por acordos internacionais. Deve ser um lugar adequado para proporcionar o bem-estar, a solidariedade entre as gerações, como também tomar medidas para combater os desastres naturais.

4. A cidade saudável — Obedecendo às normas da Organização Mundial de Saúde, melhorando as habitações, meio ambiente e com o planeamento sustentável, reduzir os níveis de poluição e conservar os recursos naturais.

5. A cidade produtiva — Que potencializa a competitividade, gerando postos de trabalho e pequenos negócios, fortalecendo a economia global e melhorando o nível dos cidadãos através da educação e a formação profissional.

6. A cidade inovadora — A cidade deve ser inovadora, utilizando tecnologias de informação e comunicação e permitindo o acesso dessas tecnologias a todos. Desta forma desenvolvendo redes policêntricas, cidades multifacetadas comprometidas com os processos de governo e gestão.

7. Cidade acessível — Outras das funções da cidade são os movimentos radicais e a acessibilidade que vinculam o planeamento estratégico de transporte de forma integrada, com isto melhora as interligações, o transporte público, ampliando as ruas livres e devolvendo os passeios aos transeuntes e não como meros locais para estacionamento de carros, e promovendo a caminhada e o uso da bicicleta.

8. A cidade ecológica — Conceito da Carta de Atenas 1933, aplicado também na Nova Carta, com a sustentabilidade constituindo num processo de planeamento ligado ao processo de participação social, constituindo-se em princípios do desenvolvimento sustentável.

9. A cidade cultural— Estabelece o comprometimento com os aspectos sociais e culturais do meio urbano, com o objetivo de enriquecê-lo e diversificar a malha urbana com espaços públicos, integrando o trabalho, habitação, transporte e lazer, ao contrário da Carta de 1933, para proporcionar deste modo bem-estar e melhor qualidade de vida aos cidadãos.

10. Carácter continuo — Tem como objetivo proteger os elementos tradicionais, a memória, a identidade do meio ambiente urbano, incluindo as tradições locais.

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