Tenho enfatizado em vários artigos que o capitalismo passa por transformações que, por sua própria natureza, reconfiguram, em praticamente todos os níveis, as dinâmicas sociais às quais estamos relativamente habituados e que, em vários casos, se converteram em tradição e cultura. O impulsionamento da conectividade global, a inteligência artificial, a automação e as redes sociais, dentre os muitos exemplos possíveis, estão alterando profundamente o modo como trabalhamos, como interagimos com outras pessoas e como percebemos a realidade. Sociologicamente, o que estamos observando é a emergência de um mundo mais fluido, nos termos da chamada “sociedade líquida”. Refiro-me ao conceito criado pelo filósofo Zygmunt Bauman para descrever os tempos em curso, marcados pelo predomínio do efêmero, pela fragmentação social e dissolução dos coletivos duradouros, pela instabilidade e pela desorganização das estruturas tradicionais da vida social, como a família, o trabalho e a cultura, incluindo a religião.
Embora seja uma característica marcante da época, essa reviravolta nada tem de inédito. Já no Manifesto Comunista, Marx e Engels observaram que o capitalismo é uma ordem econômica e social instável por definição e que, do mesmo modo como deitou por terra os modos de ser e de fazer típicos do feudalismo, não poderia sobreviver se não fosse capaz de se reinventar permanentemente: “Tudo o que era sólido se desmancha no ar”.
Assim tem sido. A ordem política, econômica e social que as revoluções burguesas construíram sobre a sepultura do absolutismo monárquico, foi detonada na primeira metade do século XX pela crise da bolsa de valores norte-americana, duas guerras mundiais (1914–1918 e 1939–1945) e a emergência do socialismo como alternativa de poder, especialmente a partir da Revolução Soviética de 1917.
O Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), implodiu com o capitalismo “laissez faire”, garantindo um novo ciclo de crescimento regulado e acomodação dos conflitos sociais.
Esta solução funcionou bem até os anos 1970, quando as transformações estruturais do modo de produção se chocaram com as relações de produção. A globalização e os avanços tecnológicos — como a automação e o declínio da indústria em favor de serviços e finanças — mudaram a forma de trabalhar e gerar riquezas. As fábricas concentradas nacionalmente, deram lugar a cadeias produtivas globais, e o trabalho fixo passou a ser substituído por empregos precários e flexíveis. Com isso, sindicatos fortes, contratos estáveis e expectativas de proteção estatal já não se encaixavam num mundo onde o capital podia realizar lucros instantâneos e crescentes, em qualquer parte do planeta.
A nova situação abriu as portas para o neoliberalismo, que desmontou o Estado de Bem-Estar.
Durante curtíssimo espaço de tempo, este modelo funcionou para alguns. A crise de 2008, entretanto, expôs as fragilidades de um sistema carente de regulação a décadas e explodiu com o mercado financeiro. A crise espraiou-se por todo o tecido social, desnudando o fracasso do modelo. O aumento das desigualdades sociais (agravadas pela pandemia de COVID-19) tem alimentado uma crescente demanda por mais Estado. O acirramento da competição predatória entre países e empresas em escala global, vem impulsionado o ressurgimento de nacionalismos, protecionismos e guerras; a automação e a Inteligência Artificial representam uma ameaça objetiva de desemprego em massa; as mudanças climáticas, a crise ambiental, aos desafios da transição energética são desafios que não serão vencidos sem que os Estados Nacionais desempenhem um papel de vanguarda, dentre outras questões para as quais o neoliberalismo não tem respostas sustentáveis.
Desta forma, nos encontramos diante de uma nova crise estrutural do capitalismo, num momento em que ainda não estão claros os caminhos para sua superação.
Podemos chamar este momento de “interregno”, parafraseando o pensador marxista italiano Antônio Gramsci. Refletindo sobre a crise na Itália e em toda a Europa em sua época, Gramsci escreveu: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer”. E concluiu, numa referência ao fascismo que emergia no velho continente. “Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”.
Eu diria que a nossa crise reflete o fato de a ordem mundial (envolvida numa combinação tensa entre metas neoliberais e demandas social-democratas) estar morrendo, sem que tenha nascido aquilo que a pode substituir.
De fato, não há previsão de superação desse interregno num horizonte próximo. Talvez, sejam necessárias duas ou três décadas para que, enfim, surja uma proposta capaz de galvanizar vontades majoritárias e suficientemente fortes em termos de apoio popular e entre setores significativos das elites para se impor de modo duradouro.
Até lá, estaremos sujeitos (nos casos onde a democracia persiste) ao pêndulo das razões de circunstâncias, ou, em outras palavras, à mera satisfação ou insatisfação do eleitor frente ao desempenho do governo de plantão — com o risco do eventual surgimento de monstros.
Um levantamento publicado pela agência Universo Online (UOL) no início do ano ilustra bem esta situação.
Segundo o UOL, foram realizadas eleições em 63 países em 2024(1). Deste total, houve alternância ideológica no poder em 22 casos — uma taxa inédita. Em doze países, o poder estava com a direita, e os eleitores optaram por uma mudança à esquerda. Em dez outros casos, ocorreu o oposto: o poder estava nas mãos de partidos de esquerda, mas a oposição de direita saiu-se vitoriosa. Entre os casos de alternância estão democracias consolidadas e significativas como os EUA, França e Portugal. Já no início deste ano, na Alemanha, o governo dirigido pelo SPD (Partido Social-Democrata), perdeu a eleição para uma coligação considerada de direita moderada, enquanto o partido de extrema-direita ficou em segundo lugar.
A alternância se explica pela incapacidade dos governos oferecerem expectativas otimistas de futuro a longo prazo, suficientemente convincentes para os eleitores aceitarem conviver com vicissitudes momentâneas. É, enfim, a percepção que seus problemas foram resolvidos no imediato, o que mais pesa na consideração das alternativas postas no momento eleitoral, sem qualquer fidelidade de sentido ideológico ou partidário. É este o grande monstro do interregno.
Ivanir Corgosinho é socólogo
(1) Ver: Direita avança, mas mapa das 63 eleições de 2024 mostra ciclo de mudanças. Disponível em: Veja mais em https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2025/01/12/direita-venceu-27-das-63-eleicoes-gerais-no-mundo-em-2024-esquerda-leva-25.htm?cmpid=copiaecola