No Brasil, como na maioria dos países presidencialistas, a Constituição Federal concentra no Executivo uma grande quantidade de poderes – inclusive legislativos. Em função disto, há até pouco tempo, eram comuns as referências ao presidencialismo brasileiro como um tipo de “presidencialismo imperial” ou “hiper-presidencialismo” no qual quase todas as iniciativas importantes em termos de definição de políticas públicas e prioridades orçamentárias ficariam com o presidente da república (1).
Este poder de agenda, entretanto, apenas foi viabilizado graças ao assim chamado “presidencialismo de coalizão” – fórmula para solucionar o sistemático problema da eleição de presidentes sem maioria parlamentar.
A receita do presidencialismo de coalizão, como explica o sociólogo Sérgio Abranches, criador do conceito (2), consiste em, no pós-eleição, compor uma aliança política com alguns poucos partidos de grande porte, mediante a partilha de ministérios e recursos públicos conforme a representatividade de cada agremiação, medida em número de parlamentares eleitos. Neste esquema, a liberação de emendas parlamentares serve como incentivo adicional para que deputados e senadores votem com o governo.
Em anos mais recentes, entretanto, esta fórmula tem perdido eficiência, por várias razões e, todas elas, levando a uma gradual transferência de poderes do Executivo para o Congresso Nacional.
A principal razão para esta mudança é de natureza estrutural. Está relacionada à legislação eleitoral e partidária que, até a aprovação da Emenda Constitucional nº 97, em 2017, favoreceu a ampla fragmentação da representação partidária, com a consequente redução do espaço disponível para os maiores partidos. Este processo atingiu a seu auge em 2018, quando o número de legendas com direito a acesso a recursos públicos chegou a 30, na Câmara dos Deputados. Em 2010, eram apenas 22 legendas (3).
Em segundo lugar, o enfraquecimento do presidencialismo de coalizão tem como causa a guinada autoritária e golpista de parte significativa das elites nacionais. Este movimento de virada à direita inciou-se com a tentativa de criminalização do governo Lula no episódio do “Mensalão” e teve seguimento com o impeachment de Dilma ao final de um longo processo de enfrentamentos entre um Executivo enfraquecido e um Congresso declaradamente hostil — Eduardo Cunha à frente.
Finalmente, o enfraquecimento do presidencialismo de coalizão tem como explicação provável a ausência de um projeto de nação articulado e consistente por parte dos presidentes que sucederam a indomável Dilma Rousself. Temer, sem a legitimidade conferida pelas urnas, rendeu-se rapidamente ao Congresso e tratou de minimizar o peso do Executivo, praticando o que ele próprio chamou, em repetidas ocasiões, de “semipresidencialismo”. Quanto a Bolsonaro, jamais lhe ocorreu desenvolver um projeto propositivo de nação. Sem preparo, vocação ou paciência para os assuntos da gestão pública, o capitão isolou-se com seus devaneios totalitários e, de bom grado, cedeu aos presidentes da Câmara e do Senado o trabalho de coordenação da coalizão parlamentar da base do governo, deixando o Congresso ainda mais poderoso.
Por conclusão, há uma brutal distancia entre o Congresso com o qual FHC ou Lula conviveram no passado e o atual. Esta distância é marcada, em primeiro lugar, pelo real fortalecimento do Congresso que, no período que vai do início da crise com o governo Dilma até a eleição de Bolsonaro, aprovou uma série de resoluções no sentido que cercear o “poder imperial” do Executivo. Entre essas disposições, estão a limitação do número de reedições das medidas provisórias; a transferência do controle das emendas parlamentares não obrigadores das mãos do Executivo para os presidentes das duas casas legislativas e de lideranças próximas; os vetos presidenciais passaram a ser derrubados com maior frequência, etc (4).
Por outro lado, o Congresso empoderado que emerge da crise do presidencialismo coalizão não é um fórum iluminista, republicano e progressista. É um congresso comprometido pelo processo de fragmentação partidária e já contaminado, na sua base, pelo fisiologismo do Centrão e do baixo clero.
O termo “Centrão” nasceu na Constituinte de 88 para designar um grupo de parlamentares que se classificavam como centro na disputa política entre esquerda e direita, não se alinhando ideologicamente com qualquer dos dois campos. Nas votações, o grupo de uniu sob a liderança do então deputado Ricardo Fiuza (PFL/PE). Sem constituírem propriamente um corpus doutrinário, ideológico ou programático, os deputados deste grupo tornaram-se conhecidos por seu pragmatismo político e pela capacidade negociar benefícios pessoais em troca de apoio ao governo no Congresso – de preferência, recursos orçamentários para seus redutos eleitorais e nomeações de aliados em cargos federais, configurando o famoso “toma lá, dá cá”.
Esse jogo sofreu uma importante inflexão no curso da queda de braço entre o Congresso e o Executivo no governo Dilma. Os deputados do centrão vislumbraram a possibilidade de controlarem, individualmente, uma parcela maior do orçamento.
Assim, já em 2015, aprovaram, via Emenda Constitucional, as “Emendas Impositivas” (EC 86/2015). Em 2019, chegaram a aprovar o famigerado Orçamento Secreto, felizmente declarado inconstitucional pelo Supremo. Mas, naquele mesmo ano, aprovaram o instituto das emendas impositivas de bancada (EC 100/2019).
As consequências dessas iniciativas são de duas ordens. Em primeiro lugar, comprometem a capacidade do poder do Executivo de implementar políticas de longo prazo e de alcance estratégico para o desenvolvimento do país. Como já deixou claro o atual grande líder do Centrão e presidente da Câmara dos deputados, Arthur Lira, a vontade dos parlamentares é que fatias cada vez maiores do Orçamento sejam gastas sob a forma de emendas parlamentares, e não em políticas públicas do governo federal. A tendência, desta forma, é a predominância da ineficácia no uso dos recursos públicos com gastos espraiados numa miríade de empreendimentos regionais e, até paroquiais, sem coordenação federal e com maior dificuldade para a fiscalização.
Em segundo lugar, o debate politico e o convencimento tornaram-se desnecessários já que cada deputado e cada senador passou a contar com seu próprio orçamento, em montante suficiente para financiar suas máquinas eleitorais particulares sem que tenham que atender a quaisquer condicionalidades. Dessa forma, passamos a ter um parlamento onde cada uma das 594 cabeças de parlamentares é, literalmente, uma “partido” com interesses próprios. Por um lado, é o paraíso para os lobistas que nunca tiveram tão boas condições para tramitar seus projetos. Por outro, a extrema pulverização do processo decisório leva, inevitavelmente, a um considerável aumento dos custos da governabilidade num congresso que já é um dos mais caros do mundo.
Ivanir Corgosinho é sociólogo
(1) LIMONGI, Fernando de Magalhães Papaterra e FIGUEIREDO, Argelina. Poder de agenda e políticas substantivas. Legislativo brasileiro em perspectiva comparada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
(2)ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-38, 1988.
(3) Fragmentação de partidos, recorde, é aberração mundial – https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/fragmentacao-de-partidos-recorde-e-aberracao-mundial.shtml
(4) Presidencialismo de coalizão tem exigido mais e entregado cada vez menos – https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/07/presidencialismo-de-coalizao-tem-exigido-mais-e-entregado-cada-vez-menos.shtml