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Ivanir Corgosinho: A construção da transparência na defesa da democracia

Ao tratar da questão democrática em Contagem, tenho dado ênfase à dimensão da participação popular, nas muitas formas em que ocorre no munício. Isto porque este é o melhor caminho para permitir que setores social, econômica e politicamente excluídos possam vocalizar suas preferências e subsidiar a adoção de políticas redistributivas. Por acréscimo, ao favorecer a adoção de praticas mais universais se repartição dos recursos públicos, a participação popular também é uma via para a superação do clientelismo como lógica de ação do Estado e, neste sentido, agrega um plus de legitimidade à atuação governamental além de reforçar o chamado “capital social” e operar para a requalificação do “poder local”, normalmente tomado pela cultura da clientela.

Neste artigo, quero chamar a atenção para outra variável essencial para a vitalidade e qualidade da democracia: a transparência.

Embora a preocupação com a publicidade dos atos do Estado seja uma um tema antigo, sempre associado à resistência contra o abuso do poder (Bentham), o termo “transparência” ao que parece, só passou a ser utilizado em sentido político-econômico mais recentemente, no curso dos debates sobres as condições para a estabilidade dos regimes democráticos na nova ordem mundial globalizada. Neste caso, a questão envolve a pluralidade de atores que passaram a interferir na arena política oferecendo soluções em políticas públicas em processos decisórios cuja coordenação cabe ao Estado.

No curso destes debates, ficou consagrada a tese segundo a qual políticas de transparência seriam vantajosas para a democracia em, pelo menos, dois sentidos básicos: a) primeiro, como meio de inibição da corrupção; b) como condição dos processos de accountability e incentivo à boa gestão;

Transparência e combate à corrupção — A corrupção é um fenômeno social e histórico. Como tal, pode ser observada nas diversas esferas de atividades humanas e tanto na área pública quanto na esfera privada. Para os fins deste artigo, naturalmente, considero a corrupção na vida pública, observável em manifestações sistêmicas nos fóruns institucionais, ou seja, entre agentes públicos eleitos e entre a burocracia estatal nas relações que estabelecem com o setor privado tendo em vista a obtenção de benefícios particulares (propinas, cargos, informações privilegiadas, etc) por meios ilegítimos e/ou ilegais (1).

Neste sentido, a corrupção é uma ameaça à harmonia social à medida que funciona como um fator de reprodução das desigualdades e da concentração de renda, alimentando ressentimentos e desgastando a legitimidade do Estado. Políticas de transparência, neste caso, são vitais tanto para identificar os criminosos quanto para dissuadir os servidores públicos de cederem às tentações da prática criminosa. O pressuposto é que a certeza da alta visibilidade de suas ações levaria os agentes públicos a adotarem atitudes condizentes com aquilo que se espera de uma administração proba e republicana.

Transparência e accountability — O termo inglês “accountability”, amplamente incorporado à literatura acadêmica nacional, se refere, em linhas gerais, à obrigação de indivíduos e organizações responderem por suas ações. De fato, a democracia não é imaginável sem que se possa responsabilizar aqueles que possuem atribuições na administração pública e sem que estes, ao mesmo tempo, não se disponham a uma prestação de contas regular e sistemática de suas ações e ganhos.

Transparência e boa governança — Finalmente, a literatura política mas recente tem pautado o desempenho do governo no exercício de suas funções como um dos favores decisivos na solução dos desafios sociais e econômicos enfrentados pelas sociedades. Naturalmente, o sucesso de um governo depende de uma série de fatores — nem todos sob a governabilidade dos mandatários. Como exemplos, temos a existência ou não de recursos suficientes para fazer frente as demandas internas existentes; o grau de qualificação do plantel de servidores; o nível de antagonismo da oposição, as condições conjunturais internacionais, entre várias outras interveniências. Não obstante, liminarmente, concorda-se que a ideia do bom governo depende, essencialmente, da disposição dos governantes para implementar uma administração honesta, imparcial e impessoal – noutras palavras, uma administração para todos, sem distinções ou preferências. A transparência, nesse caso, permite que os todos os setores sociais possam monitorar, em tempo integral, as ações do governo, checar se os princípios da boa administração são respeitados, se os acordos são cumpridos e, em caso contrário, protestarem. Assim, claramente, contribuem para o fortalecimento dos mecanismos de accountability e responsabilização dos tomadores de decisões.

No resumo, políticas de transparência são vantajosas para a democracia à medida que ajudam na prevenção à corrupção e, portanto, são fundamentais para qualquer projeto de republicano; estimulam a perspectiva da universalização dos serviços públicos e, neste sentido, são decisivas no combate a privilégios; são indispensáveis para que os cidadãos se mantenham informados sobre as ações governamentais e possam, eventualmente, contestar decisões e, finalmente, favorecem o aumento da eficiência na definição e execução da despesa pública.

Nesta perspectiva — e reiterando o propósito do artigo — podemos dizer que há uma clara indissociabilidade entre democracia e transparência, tanto quanto há um claro conflito entre democracia e o segredo. Não é sem razão que Norberto Bobbio define a democracia como o governo do poder público exercício em público, ou seja, nem de forma privada e nem secreta. “O segredo não é compatível com as liberdades e direitos do homem”, sentencia Bobbio.
Esta abordagem, todavia, me parece limitada. Salta aos olhos que ela contempla o sentido político-econômico da experiência democrática. Mas, não vai além disso e, por consequência, não calibra uma visão inovadora de mundo.

Indo além…

Ao refletir sobre a legitimidade do poder e os fundamentos de autoridade das instituições políticas, Hanna Arendt nos inicia num interessante debate sobre o conceito de realidade. O que é, afinal de contas, o real? Em “A condição humana”, a filósofa sugere que, no mundo dos negócios humanos, a definição, a existência e continuidade do real depende, em primeiro lugar, da presença de testemunhas, ou seja, de outros que compartilham do que foi visto e ouvido e que, posteriormente, haverão de se lembrar dos eventos narrados. Neste sentido, na esfera politica, aquilo que entendemos como realidade requer a dimensão da visibilidade, vale dizer, da publicidade, ou ainda, deve ser público. Público significa “tudo que pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade”.

A questão da transparência deve ser vista nesta perspectiva e é muito mais que uma vacina contra a corrupção ou contra a roubalheira dos cofres públicos, como pretende o moralismo udenista – muito embora não deixe de ser, também, a melhor maneira de solucionar o desacordo entre a moral e a política. “A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garantem-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”, escreve Hanna na página seguinte, deixando ainda mais explicita a dimensão mais radical do problema. Só é possível a construção do comum por meio de experiências tangíveis, que possam ser vistas e ouvidas e comunicáveis pelo maior número de pessoas.
Desde esta angulação do problema, fica claro que, na atualidade enfrentamos desafios gigantescos para comungarmos da mesma percepção da realidade.

O primeiro deles, com enorme incidência sobre as arenas políticas, diz respeito à existência de grupos ideológicos fechados que apenas consomem informações que confirmem o ponto de vista que professam previamente. São minoritários, é certo, mas, ainda assim, precisam ser levados em conta na elaboração das políticas de comunicação e transparência, especialmente aquelas que visam a explicação e o esclarecimento de questões. Aliás, estas têm sido cada vez mais demandadas.

Um segundo desafio é a própria opacidade das sociedades modernas. Sabemos que a realidade, tal como os aparece ante nossos olhos, é uma construção histórico-social que não é, nem tem como ser, transparente aos olhos do observador comum devido à sua complexidade.

Identificar o intrincado jogo de interesses entre a esfera pública e privada; os múltiplos encadeamentos entre sociedade e o Estado; as tenazes que ligam o presente ao passado e este ao futuro; a objetividade das contradições entre as classes em conflito latente; as interconexões causais entre fenômenos sociais de escala planetária, dentre vários outros fatores de ocultamento dos motivos pelos quais a vida é do jeito que é, real e incontornável, é tarefas que requer disponibilidade de tempo e de espírito, além de ferramentas de prospecção e análise que estão fora do alcance das pessoas comuns. Este fato explica a proeminência que os chamados “formadores de opinião” têm adquirido.

Finalmente, é necessário reconhecer que, embora seja de vital importância, a mera adoção de políticas de transparência não resolve a questão da construção de uma interpretação comum entre os beneficiários das ações governamentais. Por uma série de razões (entre elas, a opacidade do real citada logo acima) os indivíduos não processam as informações da mesma maneira e a compreensão dos fatos é afetada por variáveis como o nível de escolaridade, o envolvimento pessoal no tema, a facilidade de manipulação dos meios comunicativos e outros fatores de inibição. Assim, se não considerar a variedade do público, fornecendo dados e informações em linguagens e formatos variados, as políticas de transparência correm o risco de se tornarem ineficientes. Por essa razão, a chamada “inferabilidade”, ou seja, a capacidade de inferir conclusões a partir dos dados, vem ocupando cada vez mais espaço nos debates sobre a transparência.

Os desafios são imensos, como se vê. Serão, todavia, enfrentados e resolvidos com base em duas convicções primordiais:

A) Governos democráticos, inclusivos e emancipadores têm um compromisso primordial com a visibilidade, isto é, tem o compromisso de facilitar o acesso aos dados e informações relacionados com gestão pública — seja via sua publicação na internet e em outros meios de comunicação, nos termos da chamada “transparência ativa”, seja fornecendo-as em tempo hábil e satisfatório quando solicitadas, dentro a chamada “transparência passiva”.

B) Qualquer projeto emancipado almeja conseguir que pessoas comuns sejam capazes de compreender a vida tal como ela é, como é produzida, quais são os fatores que levam à sua reprodução permanente e sistemática e, enfim, entendam como introduzir elementos de subversão das dinâmicas postas que possam iniciar processos fecundos de inovação e mudança. Podemos chamar esta utopia de “desvelamento absoluto”.

Em Contagem, temos enfrentado esses desafios e é sem sombra de dúvida que, sob o exemplo e a liderança da prefeita Marília Campos, temos um governo claramente comprometido com sua própria visibilidade, com a obrigatoriedade da prestação de contas e com o fortalecimento dos mecanismos de controle social. Recomento, neste sentido, o artigo “Mecanismos de prestação de contas e transparência na Prefeitura de Contagem”, Controladora Geral do município, Nicolle Breme, neste blog.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

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