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Ivanir Corgosinho: Um plano de governo social-desenvolvimentista

Em artigo anterior neste blog[1], apresentei uma proposta para o conceito geral e os fundamentos da plataforma de governo que devemos apresentar na eleição deste ano. Apontei a necessidade de um horizonte ideológico que oriente o programa de governo, sem o qual, dificilmente, será possível encontrar a imaginação e as energias necessárias para superar as dificuldades existentes. Finalmente, situei as condições que precisam ser observadas para a construção de um plano de governo sustentável e que corresponda tanto às expectativas dos moradores quanto às questões postas aos municípios pelo tempo presente: responsabilidade fiscal, inovação e aprofundamento da intersetorialidade.

Neste artigo, retomo a conversa sobre o programa a partir daquilo que, acredito, devam ser seus objetivos e metas mais gerais. Trata-se, portanto, de um esforço para indicar desdobramentos do artigo anterior e, ao mesmo tempo, a partir disso, oferecer diretrizes para a próxima etapa, que consistirá do arrolar de propostas de iniciativas a serem encetadas pelo futuro governo.

A ideologia que, a meu ver, subjaz ao programa deve ser o social-desenvolvimentismo. Este campo de interpretação da realidade não tem o mesmo grau robusto de elaboração que outras perspectivas doutrinárias, como o liberalismo ou socialismo; sequer tem um autor ao qual se possa creditar sua paternidade. Ao que parece, suas origens mais remotas podem ser localizadas nas teses de Maria da Conceição Tavares, recentemente falecida, e de Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES nos anos 2003 e 2004, durante o primeiro governo Lula. Ambos foram, sabidamente, fortes defensores de um papel mais ativo do governo no direcionamento da economia na busca do crescimento econômico, como propõe o desenvolvimentismo clássico, de inspiração keynesiana. A diferença está na ênfase que ambos davam à questão social. A declaração de Conceição Tavares ao programa “Roda viva”, da TV Cultura, nos anos 1990, dizendo que um economista que não se preocupa com a justiça social não é “sério”, mas um “tecnocrata”, tornou-se um clássico meme da Internet. Quanto a Lessa, parece que se deve à insistência dele, a inclusão do “S” na sigla do banco, em 1982. Anteriormente, era apenas BNDE. [2] Mas, como escola de pensamento, o social-desenvolvimentismo só teria recebido este nome em 2007 pelo então Ministro da Fazenda, Guido Mantega, com o propósito de distinguir este campo de ideias do nacional-desenvolvimentismo clássico [3].

De forma resumida, na perspectiva do desenvolvimentismo tradicional, cabe ao Poder público criar as condições adequadas para a viabilização dos negócios empresariais, exponenciando as possibilidades do mercado. O estado deve, neste sentido, oferecer incentivos, crédito, investimentos em infraestrutura e abster-se de criar custos adicionais para as empresas na forma de encargos sociais e tributos. Em contrapartida, e de modo natural e espontâneo, o crescimento econômico produziria o aumento do bem-estar social pela via da geração de emprego e renda.

Essa falácia foi percebida desde cedo por pensadores de ideologias variadas. O crescimento econômico, per si, ainda que possa elevar as condições materiais de vida de setores da população, é uma fonte de reprodução de desigualdades e privilégios que leva muitos outros setores à pobreza e à miséria, já que culmina em formas concentradoras de renda.

Nesse sentido, a abordagem do social-desenvolvimentismo, desde suas primeiras elaborações mais consistentes, foca no crescimento econômico, mas via a expansão do mercado interno e ampliação do consumo em larga escala entre os setores populares. Prevê, nesse sentido, incentivos às empresas, mas, também contempla medidas sociais como o fortalecimento dos salários e concessão de benefícios como estratégia para o aumento do poder de compra da população e estímulo a um crescimento econômico inclusivo.

Em anos mais recentes, essas ideias foram acrescidas com proposições mais amplas e em sintonia com as questões postas pelo tempo presente, relativas ao chamado “desenvolvimento sustentável”. Para o economista polonês, Ignacy Sachs, criador do conceito de ecodesenvolvimento, o desenvolvimento sustentável teria cinco dimensões indissociáveis: social, econômica, ecológica, espacial e cultural. [4]

Estes conceitos (ecodesenvolvimento, desenvolvimento inclusivo, social-desenvolvimento, desenvolvimento sustentável, etc.) tornaram-se uma referência no debate internacional e são, atualmente, praticamente consensuais entre os segmentos mais esclarecidos das elites políticas, econômicas e intelectuais do planeta. Finalmente, foram incorporados aos chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) aprovados Organização das Nações Unidas (ONU) no ano 2000, com o apoio de todas as suas 191 nações associadas e, pelo menos, 22 organizações internacionais.

Uma questão pertinente para este tema é a ausência, pelo menos no Brasil, de uma tradição “desenvolvimentista municipalista”. Entre nós, o desenvolvimentismo está mais associado a projetos nacionais devido à dimensão macrorreguladora e, portanto, sob controle de instituições federais, de alguns itens fundamentais para o mundo dos negócios privados, como taxa de juros, taxa de câmbio, tarifas de importação, tarifas públicas, entre outros.

Decorre desta constatação que, além da precariedade dos instrumentos de regulação sob domínio dos gestores municipais, também não contamos com uma forte cultura municipalista e desenvolvimentista. Na perspectiva desenvolvimentista tradicional, as municipalidades têm pouco ou nenhum papel indutor de desenvolvimento, restando-lhes apenas tratar do varejão das demandas tópicas dos moradores.

Dessa forma, a ideia de uma teoria sobre o “desenvolvimentismo municipal” é relativamente recente. Ela foi impulsionada pela transformação dos municípios em entes federativos, a partir da Constituição de 1988, que criou um ambiente novo onde o chamado Poder Local é cada vez mais relevante aos olhos da comunidade. Neste novo contexto, os municípios vêm ganhando importância crescente no relacionamento com a população e assumindo cada vez mais responsabilidades na prestação de serviços.

Some-se a isso o processo que, na década seguinte, levou à abertura acelerada dos mercados nacionais e à implementação das políticas neoliberais globalizantes, forçando as municipalidades a pensar reações para problemas como o fechamento ou redução de empresas, o aumento do desemprego e redução da renda, como sugerem os professores Artur Henrique da Silva Santos e Jefferson José da Conceição[5].

Este movimento motivou a emergência de toda uma linha de reflexões sobe as possíveis vias para o desenvolvimento local que, entretanto, ainda é extremamente frágil e carente de sistematização.

Naquele período, quem brilhou foi o PT que, até o final da primeira década deste século, produziu um rico painel de experiências de gestão municipal, entre as quais se destaca o Orçamento Participativo, uma referência mundial nas políticas de incentivo à participação popular e gestão democrática dos recursos públicos.

Nos anos seguintes, entretanto, o partido refluiu sua participação nas gestões municipais, como mostra José Prata [6]. O PT chegou a governar 638 prefeituras (número alcançado em 2012) mas, em 2020, elegeu apenas 182 prefeitos, chegando a 265 com a janela partidária – a maioria no Ceará, Piauí e Bahia. Este refluxo levou ao esmorecimento das preocupações com as questões locais e, por decorrência, à perda da capacidade critica e criativa naquilo que se refere a um projeto de desenvolvimento municipalista. Atualmente, o chamado “modo petista de governar” não é mais um experimento coletivo, sistemático e não tem muito a oferecer em termos de inovação. Quando muito, os discursos sobre o assunto reforçam generalidades sobre a importância do município como espaço privilegiado para a democratização da ação pública e para o fortalecimento das identidades individuais e coletivas.

Neste sentido, a experiência implementada pela prefeita Marília Campos em Contagem é merecedora de registro e estudo – sem demérito de outras que, certamente, existem. Aqui, tanto nos mandatos de 2005 a 2012, quanto neste terceiro, tem prevalecido a visão de que é possível adotar políticas pró-ativas do poder público municipal, tendo como meta a mehoria geral das condições de vida da população,  com resultados muito promissores.

O êxito dos governos Marília Campos se deve, naturalmente, às suas realizações: contas em ordem, valorização dos servidores, o cuidado com a saúde e com a educação, gigantescos investimentos em infraestrutura, o zelo com os recursos públicos expresso na transparência e na prestação regular de contas, a oferta de uma miríade de formas de participação, etc. Ou seja, trata-se de um governo que busca a integralidade em suas relações com a comunidade, atendendo ao conjunto das necessidades e responsabilidades da administração pública.

Entretanto, mais que listar as realizações, é necessário captar o sentido dessas ações na cabeça dos moradores a partir da constatação dos efeitos que produzem em suas vidas. É isso que traduz o conceito de cidade defendido pelos governos de Marília, harmoniza e da coerência à plataforma de ação que, de forma implícita ou tácita, seu governo persegue. Acredito que esse conceito seja informado pelas seguintes diretrizes e metas gerais:

Fixar o cidadão ao território — é atribuição do poder público criar as condições para que o morador possa encontrar no município (e de forma acessível) todos, ou a maioria, dos recursos necessários à sua existência cotidiana, sem que precise se deslocar até outros centros para obter o serviço. Estamos falando de escolas (da educação infantil à formação superior), dos serviços saúde desde a atenção básica até a alta complexidade; de oportunidades de acesso ao lazer e à cultura; de um ambiente saudável e seguro; de investimentos em mobilidade, da existência de um mercado de trabalho favorável, etc. É assim que se desenvolve o orgulho de ser morador da cidade e o sentimento de identidade e pertença.

Promover a paz e a harmonia social — trata-se de combater cultura de violência e de intolerância via a promoção de valores como a tolerância, o diálogo, a solidariedade e a mediação diplomática dos conflitos. Faz parte deste objetivo o reconhecimento e a institucionalização de direitos para as chamadas “minorias sociais”, as ações focais para a proteção dos vulneráveis, a promoção de cenários sociais empáticos e favoráveis à convivência, à interação e aceitação das diferenças, tais como as festas e eventos culturais; a organização de fóruns e instâncias civis de conversação para resolver problemas, realizar acordos e avançar coletivamente.

Corresponsabilidade na gestão — é necessário superar a noção pela qual compete, exclusivamente, aos governos responder pelo desenvolvimento e problemas da coletividade. A empresa que sonega impostos ou o morador que joga lixo nos cursos de água devem, também, ser responsabilizados. Isso significa ampliar e consolidar o ambiente institucional adequado para que governo e sociedade sejam solidariamente responsáveis pela gestão do patrimônio público e pela definição do melhor futuro possível para todos ou, pelo menos, para a maioria da população, sem o silenciar as eventuais minorias. Busca-se, nesse sentido, um sistema de governabilidade ampliada e de gestão colaborativa que vá além da chamada “participação popular” e incorpore todos os setores da sociedade.

Honestidade, ética e luta contra privilégios — trata-se de avançar, progressivamente, na construção de mecanismos institucionais e de políticas que assegurem à sociedade a possibilidade de monitorar os processos político-administrativos, acompanhar e avaliar a execução das políticas públicas, os gastos e os atos do governo. Isso significa apostar em politicas que fortaleçam o controle social; descentralizem e tornem a administração pública mais próxima do cidadão, mais transparente e ética, e menos vulnerável à reprodução das tradicionais práticas de apadrinhamento, clientelismo e privilégios.

Prosperidade coletiva e vida boa — o acesso ao conforto e à abundância não pode mais ser imaginado como um privilégio das elites econômicas ou como um problema de ordem pessoal. O sonho dos velhos revolucionários do século XIX nunca foi o da socialização da pobreza (isso o capitalismo já faz) e, como disseram os Titãs “a gente não quer só comida, a gente quer comida Diversão e arte” [7]. A possibilidade de melhorar de vida, adquirir algum patrimônio, conseguir proteger as gerações vindouras dos percalços da vida e ter acesso a bens de conforto e prestígio (tais como viajar, ir ao cinema, a um show, ou consumir itens de melhor qualidade), precisa estar no horizonte de expectativas das pessoas como uma esperança factível.

O poder público tem todas as condições para colaborar com estes sonhos. Primeiro, ofertando aos moradores, além de seus direitos fundamentais à educação, saúde, moradia, etc., o acesso a bens simbólicos, como os shows em praça pública com artistas renomados, as exposições itinerantes, as competições, etc., de modo gratuito. De outro modo, o consumo de bens culturais e de prestígio apenas será feito por aqueles que podem pagar. Além disso, o município pode investir em infraestrutura para o desenvolvimento, no fortalecimento do parque produtivo existente, em modernização e aumento da sinergia com universidades e centros tecnológicos, facilitando a realização dos negócios privados, atraindo o investimento empresarial e na ampliando as oportunidades de empreendedorismo, trabalho e renda.

Ivanir Cargosinho é sociólogo.

NOTAS

[1] Ivanir Corgosinho: Anotações para o programa.  https://www.zeprataeivanir.com.br/ivanir-corgosinho-anotacoes-para-o-programa

[2] Roberto Requião. Um gigante da nacionalidade brasileira, in Carlos Lessa, o passado e o presente do Brasil. Fundação Perseu Abramo, 2023.

[3] MORAES, Isaías Martín de. A macroeconomia do social-desenvolvimentismo: um estudo da Rede Desenvolvimentista. Economia e Sociedade, Campinas, v. 32, n. 2 (78), p. 279-295, maio-agosto 2023.

[4]SACHS, I. Estratégias de transição para o século XXI. In: BURSZTYN, M. Para Pensar o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993.

[5]Artur Henrique da Silva Santos e Jefferson José da Conceição. Desenvolvimento e cidade: um novo modelo de gestão. https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento/noticias/?p=212524

[6]José Prata: O PT é atualmente um “gigante de pés de barro”. Mudança urgente! – https://www.zeprataeivanir.com.br/jose-prata-o-pt-e-atualmente-um-gigante-de-pes-de-barro-mudanca-urgente

[7] Música “Comida”. Composição: Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto, do Álbum “Jesus não tem dentes no País dos Banguelas”, da banda Titãs, 1987.

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