I.
Surpresa boa, disse ele quando ela entrou na sala no fim da tarde. Trouxe o abraço de sempre. Teve o breve aconchego de corpos se tocando. Um perfume adocicado pairando no ar. Sentou-se aflita e derramou palavras de muito lamento. Vinha falar do trabalho. De pequenos percalços, coisas bobas, que se avolumaram ao ponto de se tornarem um problema. Os olhos claros e diretos não se desviaram dos dele. Que escutava atento e ao final surpreso pela situação que ela trouxe.
A blusa preta, o jeans justo, o decote discreto e a elegância de sempre eram marcas registradas daquela presença boa, ali à sua frente. As unhas pintadas de vermelho vivo eram realçadas com as mãos entrelaçadas, que despertavam o desejo de segurá-las e de acalmá-la. Desta vez ela não chorou. Por pouco. A emoção, via-se que estava contida. Assim como se podia perceber a sua agonia. Fruto de um rigor demasiado, que partiu de onde menos se esperava.
A causa possível: inveja. A outra queria estar no lugar dela. Ter a cria que ainda não teve. Ter um amor, como ainda não teve. E, sobretudo, ter o viço da tenra idade que ela tem. Uma mulher madura e segura de si. Sem ter que se preocupar com o tic tac do relógio biológico implacável, lembrando que o tempo se esvai. Lentamente.
No final da noite, em casa, antes de dormir, ele agradeceu a ela pela confiança. E adormeceu, repleto de gratidão, mesmo sem ela ter respondido a mensagem.
II.
Ela não tirou a roupa. Ele não tirou os óculos. Gozou rápido e ela estava só começando. Não entendeu a pressa. A calcinha nas mãos testemunhou a urgência com que ele se levantou, se vestiu, partiu. Ela se virou de lado e tentou dormir. Mas o corpo inquieto não permitiu. Com a imaginação em chamas, sozinha na cama, com calma e ritmo, se tocou. Vibrou. Gemeu. Se entregou ao prazer. De se ter, de ser plena. Cena de cinema, pensou e sorriu. Amanheceu.
III.
De novo ele cometeu o mesmo erro. Lembrou-se do pai, que por mais de uma vez o tinha alertado. Dizia o velho que o pouco diverte e o muito aborrece. Apesar de ter a frase em mente não conseguia se conter. E tinha seus momentos de excesso. Era exagerado. Dava em demasia, coisas e sentimentos. Uma abundância que assustava e por fim repelia. Um estranho mecanismo de defesa, concluiu, capaz de expressar desejo e, ao mesmo tempo, afastar o que se deseja. Porque é do ser rejeitar o que acha que já tem. O encanto é desfeito e a sedução derrete e se desfaz. Fica o aprendizado.
IV.
Quando John Lennon morreu nos encontramos embaixo do poste que ainda hoje divide o passeio das casas do Beto e do Toninho. A notícia tinha sido dada no Fantástico. Eu lembro do Jaime comentando. Estávamos todos impactados. Os Beatles faziam parte das nossas vidas. Com alegria pueril nos reuníamos na sala da casa do Nilton Maia, o Nonô, dono de vasta coleção da banda, para tomar refrigerante, dançar e apreciar Hey Jude, Let It Be, Yesterday, Yellow Submarine, Help e tantas outras.
A música era presença entre nós. Nas festas se dançava música lenta de rosto colado. E nas matinês da Fina Flor, no quarteirão mágico da Rua Flamboyant, centro do nosso mundo, vivemos os nossos dourados anos de discoteca, como era comum naquele tempo.
Na velha kombi de pai, que eu lavava com gosto, era o rádio que embalava as jovens tardes de domingo. Foram viagens boas, ao som das paradas de sucesso, do brega ao chique, da MPB às trilhas internacionais de novelas. Bons tempos.
Hamilton Reis é jornalista e advogado.