Não há um só dia em que eu não pense nele. Após tantos anos de convivência a presença é constante, mesmo após a sua partida. Em nosso último encontro ele disse que ia nos visitar. E sua estadia conosco era feita de comida gostosa, prosa boa, risadas, reminiscências e música da boa. Ele se apropriava da cozinha e inventava quitutes, petiscos, iguarias. Dominava a arte dos temperos, dos aromas e cheiros, das plantas, o segredo de cada ingrediente. Tínhamos muitas histórias para relembrar.
Tudo começou na escola estadual Helena Guerra. Vindo do Firmo de Matos, repeti a série. Minha segunda turma foi a 7ª C. Foi a partir dela que me reinventei e me apropriei de tudo que a educação salesiana proporcionava. Tinham como ênfase a formação humana e ofereciam diversas atividades extraclasse. Foram tempos de fanfarra, esporte, viagens ao Caraça, jornal e união de ex-alunos e alunas.
Estudar era uma aventura permanente, um desafio que ia além da sala de aula. Adorava, sobretudo, o português ensinado pela Maria Carmem, e qualquer matéria que fosse lecionada pela Gláucia Maria, que estreou na profissão conosco. Pessoas extraordinárias. Não gostava de Química e penava no laboratório, mas foi lá que nasceu uma amizade para a vida toda com a Cleudirce Cornélio, que seria no futuro minha chefa no Sind-UTE Minas e minha colega de secretariado no primeiro governo da prefeita Marília Campos. E foi justamente em comemoração ao seu aniversário, que Cléo nos reuniu para o que seria o derradeiro encontro.
Mas como ia dizendo, o conheci na memorável 7ª C. Tinha os cabelos encaracolados, grandes, e se achava o rei do pedaço. Dois anos mais velho que eu, dominava o fundão. Fizemos uma disputa acirrada para decidir quem seria chefe de turma. Recém-chegado, tive a ousadia de colocar meu nome na roda. E ganhei. Uma disputa acirrada, que não nos transformou em adversários e ao contrário, nos aproximou.
Quando fundei o jornal escolar Boca Livre, sob as benções da Irmã Maria da Penha Nacif, minha protetora e parte essencial da minha trajetória, ele estava junto. Quando me encantei com o Partido dos Trabalhadores, que tinha sido fundado em Contagem pelo professor Ciris Teixeira, por Nilmário Miranda, Tilden Santiago, Ignácio Hernandez, Milton Freitas e outras figuras de igual grandeza, ele estava comigo. E juntos nos filiamos, assim que a idade permitiu, eu aos 18 anos.
Foi também no Helena Guerra, que fizemos shows juntos. Eu produzia, dirigia, divulgava e ele era o centro das atenções. Em um palco improvisado, que depois viraria cantina, nos juntávamos para mandar nossos recados. O Cosme cuidava do som e da iluminação. Tinha as manhas dos fios e das luzes. Era quase um teatro de revista, que misturava a declamação de poemas, performances e a voz e violão do meu melhor amigo. Ele era a atração principal. Nosso elenco era reduzido, o público idem, mas a experiência não tinha preço. Das apresentações que fizemos a mais marcante foi “Pedaço de Sonho”, que dava título também a uma das nossas parcerias. Dividimos a letra e ele fez a melodia, o que aconteceria muitas outras vezes depois.
A música e a poesia funcionavam como um imã entre nós. No quarto dele, na rua Portugal, 442, em uma casa que hoje cedeu lugar a um prédio, nos revezávamos na prancheta. Um começava a escrever e o outro continuava. Eu estava junto com ele nos festivais nos quais se apresentou, no Rock Senzala na esquina da Rua Flamboyant e depois no bairro Santa Cruz. Estava na noite em que ele abriu o show do Leci Estrada (que em 1980 participou do Festival MPB Shell da Rede Globo com a música “Voar com gaiola e tudo”) no antigo restaurante Bola Branca, em frente ao Big Shopping, quando lá era ainda um campo de futebol. Também estava com ele em BH, na fila que se formou na avenida Olegário Maciel, quando se abriram as inscrições para a Escola de Minas, projeto de Milton Nascimento, na qual ele foi aluno durante alguns meses. Uma das poucas vezes em que não estive em momentos marcantes, foi quando ele, em Brumadinho, cantou para a nossa sempre presidenta Dilma Rousseff, então candidata a senadora por Minas. Ela elogiou a voz dele, me contou depois com indisfarçável orgulho. Éramos inseparáveis, mesmo quando a vida e a distância impediam a convivência diária. Mesmo quando a doença o arrebatou e eles travaram uma luta longa e árdua, permanecemos juntos, ele em minhas preces diárias, pois existem elos que sequer a ceifadora consegue romper.
Muitas vezes, esticávamos a noite no Postinho, point dos anos 1980, que ficava entre as avenidas João César e José Faria da Rocha, no Eldorado, onde até a pouco tempo funcionou o Habibs. Ao voltarmos, era de praxe comer um mexido, feito com a refeição que o pai dele, seu Gino, deixava separado em cima da geladeira para o filho predileto. Eu dormia no chão e era o único a ter esse privilégio, tanto que passei a ser considerado membro da família, com direito a participar das comemorações de Natal e de aniversários. Um dos irmãos, Zé Carlos, cruzeirense e flamenguista, me chamava de “meu poeta”. Uma das honrarias que desfrutei junto à família Souza, comandada pela professora Waldelys, ou simplesmente dona Déca.
Também se tornou tradição nos reunirmos nas noites de sexta, na varanda da 442. O ritual consistia em sair da escola, passar no supermercado Orcasa, na João César, onde funciona agora a Localiza e comprar um garrafão de vinho tinto Sangue de Boi, ou garrafas de Dom Bosco ou Chapinha, dependendo do alcance da grana, que era curta. A bebida barata fazia a alegria da nossa embriaguez, enquanto ele tocava uma trilha sonora que ia de Caetano Veloso a Simon & Garfunkel, passando por Beatles, Mercedes Sosa, Chico, Raul, Gilberto Gil, Belchior…
Quando se casou, ainda era um menino sendo criado pela mãe, conforme ela mesma asseverou. Ele, de gravata borboleta azul marinho e terno branco, Sandra Maria Duarte com seus olhos azuis, ambos radiantes de felicidade. Eu, como sempre, testemunha presente e padrinho do casal. A cerimônia foi na capela do colégio Pio XII, em Belo Horizonte. Na hora de assinar os papéis, percebeu-se que faltava uma caneta. Como conservo o hábito de ter sempre uma no bolso, fiz o empréstimo e ganhei a história.
Ao lado de Sandrinha, ele foi viver a vida em plenitude. O amor, que antes era cantado em prosa e verso, se realizou, e os dois fizeram uma parceria que durou até o dia da sua ida, para nós prematura, aos 59 anos. E que seguirá até o dia em que ela se for, porque ele permanece na memória dela e na de todos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo. Não por acaso, quando escrevia essas linhas, ela me ligou. Pela primeira vez desde aquela trágica quarta-feira, 3 de janeiro deste ano. Eu disse que estava fazendo essa homenagem e confirmamos a grafia do nome da mãe dele. Eu estava certo. A memória o tinha registrado corretamente. Quando vi que era ela que me ligava, arrepiei. Não foi coincidência, caros leitores e leitoras que chegaram até aqui.
Em nosso último encontro ele disse que ia nos visitar. Passaríamos o dia juntos, como de outras vezes. Teríamos a melhor música, comida boa, prosa agradável, risos. Disse ainda que iria me devolver o presente que eu dei a ele nos idos de 2005. Tinha outro violão e iria devolver o mimo dado naquela época. Quem sabe, poderia interessar à pequena Cecília, que chega aos três anos com acentuado gosto por tudo que é musical. Mas, infelizmente, não deu tempo. Eduardo não veio. Eele tinha outra visita inadiável. A morte, que o espreitava, criou coragem e tirou-lhe a vida. Eduardo Rodrigues de Souza, meu irmão, meu companheiro, meu melhor amigo, não vai nunca mais trazer o violão.
Hamilton Reis é jornalista e advogado.