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Hamilton Reis: De dentro da vida a morte nos observa

De sonhos são feitos os dias. De intensas fantasias vividas em intervalos que a lucidez consente. De delírios, de delícias fugazes as quais a carne se permite. E, claro, de esbarrões na poesia, que insiste para que melhores sejam os dias. E ainda assim, a morte espreita, no ar rarefeito, atiçando os defeitos, avisando que nos ronda, que está por perto, que espera pacientemente. Que não vai tão cedo embora.

Na rapidez da tela o aviso sempre chega. Desconhecidos ou próximos, viram imagens, suas digitais vagando em perfis fantasmas, memoriais nos quais são enclausurados para permanecer sendo o que há muito já eram: distantes, aparentemente felizes, retocados, entes virtuais. Incógnitos, enfim.

E eis que chega o tempo em que recebo mais convites para missas de sétimo dia do que de batizados. O que parece mesmo ser a ordem natural das coisas, nesta batalha entre comer, dormir, amar e pagar uns boletos no início do mês. Lembro do Rodrigo Mineiro, que frequentava a banca de revistas em frente ao Minas Tênis Clube, na portaria da rua Espírito Santo. Chegava e pedia licença para folhear o “Estado de Minas”. Ia direto na página do obituário. Certa vez me contou a razão. Era para saber se algum amigo tinha morrido. Hoje o jornal é que anda moribundo, e o Mineiro, não sei se ainda é vivo, deve procurar pelos mais próximos nas redes sociais, porque os impressos andam cada vez mais, digamos, fora de moda.

Difícil mesmo é quando ela, a tão temida, se aproxima. Não nos deixa sinais visíveis, invade a mente até roubar o coração, rindo das humanas fraquezas e de picardia semeando a dor. Aquela que ela tira de quem parte e semeia no peito dos que ficam. Angústia que aperta tal qual a corda que sustenta o corpo inerte, lembrança macabra que adentra a memória e balança a vida entre prós e contras, entre remorsos e lágrimas. E tem sempre um bode expiatório no canto da sala, uma doença a ser culpada e as coisas mal guardadas, acumuladas, torturantes. A doença onipresente apaziguadora da culpa, o luto que se instaura permanente enquanto Belchior canta perpétuo na mesma velha vitrola: “…viver a divina comédia humana onde nada é eterno”.

Só a arte importa na hora de seguir em frente. Nos anima, nos carrega, nos embala, nos faz pegar no tranco. Porque a vida pulsa e nos pede coragem, explica o Rosa, embrulha e desembrulha, esfria e esquenta. Só temos que medir a temperatura, sentir o pulso, calibrar os rumos. Porque a esperança vem no sorriso do filho que descobre o mundo e na inocência da pequena que sente a tristeza, faz a pergunta e amansa a dor como se a pedir serenidade, apoio, atenção, secando a lágrima que se pensava disfarçada. Porque o que vence a morte é a vida. Um dia a mais para nós é um dia a menos para ela. Viver é a garantia que se tem de que ela só virá na hora certa.

E aí, querida, não tem mesmo como evitar o niilismo. Pontas ficam soltas, afetos não se juntam e sou testemunha própria, próximo da trama que se desenrola, mais personagem do que escritor, parte da cena, chamado ao processo. Em busca de juízo e equilíbrio. Catando cacos, remendando roupas, tentando colar o que não tem mais jeito, cultivando a delicadeza, medindo o tamanho das palavras, abraçando com afeto o desespero enquanto em silêncio perdura. Sem fugir quando aflora.

Estar por perto, estar presente, distinguindo o que é possível daquilo que é ilusão. Não há um bilhete a se ler quando o que suicida é a razão. Não há justificativa, nada é plausível. A não ser cuidar dos vivos. São eles que precisam se recompor. Recomeçar. Acordar de noites mal dormidas e encontrar forças para traçar metas, seguir planos. Não importa se insone, firme, retomando a rotina e se preparando para um próximo encontro.

Porque é sabido que a morte vem. E que a dos outros é um prenúncio da nossa. E o que podemos deixar para os que vão ficar depois de nós é uma vida bem vivida. Seremos lembrados pelo que deixarmos de bom. Do bom uso que fizemos das horas, da alegria que espalharmos, dos abraços dados sem pressa, dos bons vinhos e prosas, pelas amizades cultivadas, pelos encontros e reencontros. Pelos amores, pelos filhos e filhas, pelo entrelaçar com a mulher amada no gozo profundo da existência.

Para isso existimos. E não para as coisas tristes, que precisam ser passageiras, pois a felicidade é muito melhor. E maior, se prestarmos atenção aos detalhes, pois a beleza é para ser vista, vivida, exercida em plenitude nesta vida, a saber, a única da qual temos certeza, por mais que se acredite em outras. Quanto à morte, prefiro conviver com ela lembrando do Mário Quintana. Olha que belo ele diz: “A morte deveria ser assim: um céu que pouco a pouco anoitecesse e a gente nem soubesse que era o fim…

Hamilton Reis é jornalista e advogado.

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