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Hamilton Reis: As guerras machucam a alma

A guerra não mata apenas crianças. Mata a esperança no ser humano. Em meio aos escombros que soterram vidas, perdemos a inocência, a pureza. Sonhos evaporam no ar. A guerra dói. Incomoda ver a celebração da morte. Quem vai levar doces à noite para os pequenos? Ninguém. Não tem pai, não tem mãe, filhos, irmãos, irmãs, avó. Não tem mais casa no quarteirão. Famílias deixaram de existir. Tudo é ruína.

Agora há pouco caiu uma bomba aqui na sala. Ao vivo. Corpos destroçados. Sobreviventes poucos pareciam zumbis empoeirados. Não era um episódio de “The Walking Dead”. Era real. Sangue mesmo, derramado. Carne frágil no retrato cru de uma nação dizimada em massa. Aos montes. Um suplício para que Guernica fosse pintada na tela da TV. Cores surreais. Medonhas. Foi preciso trocar o canal. Fugir em disparada, tentar romper a fronteira em busca de salvação. Em busca de outros ares, outras formas, outras cores. Mas pouco adianta. Os espíritos dos mortos insistem em perturbar a consciência. Fazem morada na tristeza. Impossibilitam a felicidade.

A fome também dói. As tragédias. Os crimes ambientais das mineradoras. O desemprego que incomoda, mesmo quando diminui. Tudo isso é dor. Mas a guerra é pior. É estupida. Fria. Calculada. Reafirma o poder bélico, a força do dinheiro, a insensatez, a imponência das potências, a impotência de Lula segurando a bandeira branca no plenário da ONU, implorando pela paz em Gaza, Israel, Rússia, Ucrânia… pela paz no planeta.

Tem guerra na minha insônia. Na inquietude. Me sinto menos pessoa, pois incapaz de fazer algo que a faça cessar. Certa feita ouvi uma frase que não esqueço: somos os primatas do ser humano. Precisaremos de outras gerações para nos tornarmos seres melhores. A humanidade ainda rasteja. Não caminha para tempos de prosperidade e abundância. Somos capazes de desvendar planetas, viajar para a lua, criar inteligência artificial, bater recordes de produção de alimentos. Mas somos incapazes de ser solidários, incapazes de amar o próximo, insensíveis diante da indústria do pânico e da morte, que cresce diante do nosso nariz.

Ontem os nazistas perseguiam aqueles que não eram considerados integrantes da raça ariana, que na definição dos liderados de Hitler, era uma raça superior. Comunistas, negros, homossexuais, ciganos, testemunhas de Jeová e portadores de deficiência física ou mental foram torturados e eliminados. Estima-se que cerca de seis milhões de judeus foram mortos na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Esse genocídio ficou conhecido como Holocausto.

Entre as práticas realizadas pelos nazistas naquela época estão o fuzilamento em massa de pessoas, a utilização dos prisioneiros como trabalhadores escravos, o aprisionamento em guetos e campos de concentração, entre outras.

Hoje, os judeus liderados pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em um mês de conflito (completo dia 7/11), já mataram 10 mil e 22 palestinos que vivem na Faixa de Gaza, em sua quase totalidade civis, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde local. É um massacre sem precedentes na história recente. Um revide desproporcional ao ataque realizado pelo grupo extremista Hamas contra localidades israelenses, que deixou pouco mais de 1.400 mortos entre civis e militares.

A ação israelense usa armas modernas e exibe um aliado de peso mortífero, os Estados Unidos. São mega bombardeios lançados por caças, drones e disparos de navios de guerra. Tudo com precisão letal, assustadora. Como um enorme videogame controlado por um ódio insano, avassalador e animalesco. Os descendentes das vítimas do Holocausto agora são as promotoras do genocídio contra os palestinos, em uma guerra de bodoques contra canhões.

E assim rasteja a humanidade.

Lembro como se fosse hoje, de uma aula de introdução ao Direito, na Funec Cruzeiro do Sul. Turma de ensino médio. O professor era advogado e político de carreira na cidade, tinha sido secretário municipal. Experiente. José Maria Pereira. Pois bem, ele defendeu a necessidade das guerras. Disse que eram inevitáveis e desejáveis. De tempos em tempos, é mesmo preciso reduzir a população, argumentou. Para espanto e revolta das nossas cabeças de jovens estudantes em processo de formação.

Felizmente, anos depois, tive a sorte de conviver com mestres que advogaram a favor da vida e dos direitos humanos. Pacifistas. Formadores de opinião e estimuladores de senso crítico. Que incitaram a busca pela justiça e contra o autoritarismo. E que seguem sendo pautados pela ética e pelo respeito. Hoje colegas de profissão, mas advogados e advogadas que seguem na faculdade, dividindo saberes e testemunhos existenciais.

Ao exemplo deles me apego nestes tempos difíceis. Para não negar a lágrima que cai diante das imagens fortes que insistem em ocupar a retina e que saltam das telas da bendita, e ao mesmo tempo maldita mídia social. Para não deixar que se crie uma casca de insensibilidade. Para que eu não aceite a violência como algo normal, para que a dor do outro não seja nunca banalizada. E para que não falte fé na existência de um Deus que um dia, enfim, vai nos perdoar e ter a compaixão que insistimos em não ter por nós mesmos.

Hamilton Reis é jornalista e advogado.

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