Um dia antes dos atentados de 8 de janeiro, o então chefe do Gabinete de Segurança Institucional dispensou o reforço do Batalhão da Guarda Presidencial
VALOR ECONÔMICO, 20/04/2023
Às 18h30 do dia 8 de janeiro, o ministro da Comunicação Social, Paulo Pimenta, e o secretário de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Wadih Damous, chegaram ao Palácio do Planalto para aquilatar o estrago. Ao passarem pelo Gabinete de Segurança Institucional, viram, pela porta entreaberta, o general Gonçalves Dias sentado. Estava sozinho. A imagem era de um aparvalhado. Questionado sobre a inoperância ante a invasão, não parava de repetir: “Eles vinham de todos os lugares, em 360 graus, não pude fazer nada”. Podia.
No dia anterior, segundo depoimento do ex-comandante militar do Planalto, general Gustavo Dutra de Menezes, à Polícia Federal, Gonçalves Dias havia dispensado o reforço do Batalhão da Guarda Presidencial.
Na tarde do dia 8 o general participou de uma reunião no Ministério da Justiça sobre a invasão quando chegou a defender a decretação de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem, prontamente rechaçada pelo presidente, por golpista.
O que o vídeo revelado pela CNN Brasil mostrou é que, antes desta reunião, o general já tinha passado pelo Palácio do Planalto.
Quando Pimenta e Damous o encontraram ele tinha deixado o MJ e voltado para o Palácio. O diálogo que travaram com ele no dia 8, de não mais do que dois minutos, foi reportado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao ministro da Justiça, Flávio Dino.
O general perdeu a Abin para a Casa Civil mas foi mantido por Lula no cargo até essa quarta-feira, quando o vídeo tornou inviável sua permanência. Se o presidente agiu com celeridade para demitir o comandante do Exército quando estava em curso a nomeação do ajudante de ordens golpista de seu antecessor para um batalhão próximo a Brasília, colocou uma pedra sobre a disfunção de Gonçalves Dias.
Lula nunca acreditou que fosse um golpista. Como lhe serviu nos primeiros governos e na campanha presidencial, o colocou no balaio de suas lealdades pessoais. O problema é que a inação do general – e do presidente – agora servirá de combustível para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do 8 de janeiro. Seu afastamento foi tão inevitável quanto insuficiente será para evitar a instalação da comissão.
A solução encontrada para sua substituição, a ocupação do cargo, interinamente, pelo secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli, reforça o atuação de Dino como catalisador das crises do Executivo. O mesmo Capelli foi quem capitaneou a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal quando o Executivo decretou a intervenção no 8 de janeiro. Se o GSI for extinto, opinião que hoje parece ser majoritária no governo, é Dino quem comandará os trabalhos – e a realocação de poderes.
No Congresso, por outro lado, inexistem catalisadores. A distopia lá vivida pelo governo não poderia encontrar um caso mais eloquente. A Casa esteve até aqui impedida de realizar sessões porque se o fizesse, o requerimento da CPMI seria lido e a comissão, instalada.
O bloqueio desmascara a artificialidade dos blocos formados na Câmara dos Deputados. Metade das assinaturas da comissão pertence aos blocos que disputam espaço no governo. O vídeo tornou ainda mais difícil retirar as assinaturas. Os governistas decidiram, então, capitular.
A expectativa é de que o líder do governo, o senador Randolphe Rodrigues (Rede-AP), que se mostrou incapaz de debelar a paralisia no Congresso, venha a mostrar mais serviço na comissão, sua tradicional zona de conforto na Casa.
A oposição espera se valer da CPMI para mudar a realidade dos fatos, a de que a intentona foi um empreendimento bolsonarista que está prestes a ter seus réus sob julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Encurralado, o bolsonarismo quer fazer da comissão um picadeiro de narrativas falsas para dominar redes sociais, que restam desreguladas, e atravancar as votações.
Basta ver o que têm aprontado nas comissões onde se alternam para xingar ministros e colegas.
Chegam a fazer ameaças físicas convincentes, ainda que não se deva desprezar sua capacidade de atuar frente à câmara do celular.
Com o vídeo, esperam mostrar que o governo, por meio do general Gonçalves Dias, participou da invasão. Aos governistas restará tratar o ex-chefe do GSI como um general isolado num gabinete ainda dominado por bolsonaristas. No melhor das hipóteses, sairá como um atrapalhado.
Por outro lado, espera-se que seus comandados exponham ainda mais a vinculação do bolsonarismo com a invasão do Palácio. Na versão do vídeo vazado, a imagem dos integrantes do GSI que ajudam os invasores está convenientemente borrada. Só Gonçalves Dias aparece em condições de ser identificado.
O problema dos governistas no enfrentamento com os bolsonaristas na CPMI é que sua máquina de comunicação perde de lavada da oposição nas redes sociais, vide a crise que levou o governo a recuar na taxação do varejo online chinês.
O governo é ágil na articulação entre os Poderes e nas instâncias federativas, como na reunião da semana entre o presidente, ministros do Supremo, governadores, prefeitos e seus ministros para uma reação aos ataques nas escolas – ainda mais ampla do que aquela dos atos de 8 de janeiro porque abrigou o governador de Santa Catarina, bolsonarista quatro estrelas. A narrativa de que os ataques e os atos têm a mesma matriz da violência contaminou o Judiciário, que começou a colocar os vândalos do 8 de janeiro no banco dos réus.
Esta sintonia não é estendida ao Legislativo. Se a CPMI foi contida até agora para evitar que seu funcionamento contaminasse a pauta do governo no Congresso, agora os governistas terão que conduzi-la em meio aos folguedos da CPMI, tudo junto e misturado.
Por mais que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), garanta que o arcabouço fiscal tenha sua aprovação garantida na Casa, não há como a pauta do governo passar ao largo. É um prato cheio para testar o comprometimento já anunciado pelas mesas diretoras das duas Casas com a tramitação da pauta governista. Muito certamente esta concomitância cobrará um preço. O que limitará ainda mais as margens do arcabouço fiscal.
Nem a política externa, pelo desgaste do protagonismo destrambelhado do Brasil com a mediação na Ucrânia, servirá de bônus ao governo a um presidente da República que tem sua popularidade em precoce desgaste. Como dizia ontem uma experimentada raposa brasiliense, a sorte de Lula é ter um vice leal.
Maria Cristina Fernandes é jornalista.