Não há incompatibilidade: ambas convivem e se apoiam mutuamente
FOLHA DE SÃO PAULO, 05/12/2022
A volta da democracia, coroada pela promulgação da Constituição de 1988, trouxe muitos avanços sociais. O lema da democracia é a dignidade humana, segundo o qual cada cidadão é um fim em si mesmo. A partir dessa diretriz, implementamos o SUS e o Fundeb, orientados pela universalidade e gratuidade na prestação do serviço público. A evolução dos indicadores nas áreas da saúde e da educação não deixam margem à dúvida quanto ao acerto dessas políticas de Estado. É hora de sedimentar essas mudanças e pavimentar novos caminhos.
O Brasil tem um enorme desafio pela frente. Há ainda uma grande dívida social a ser paga, particularmente nas áreas assistencial e de saneamento básico. É claro que tudo isso custa, e nossos gastos públicos e carga tributária são elevados quando comparados ao padrão dos países de nível similar de desenvolvimento. Tributação elevada e gastos mal empregados provocam distorções alocativas e instabilidade macroeconômica, em prejuízo do crescimento econômico. E, sem ele, torna-se difícil pagar nossa dívida social, ainda que haja programas bem desenhados.
Felizmente, não há incompatibilidade entre responsabilidade fiscal e social. Ambas convivem e se apoiam mutuamente. Não iremos longe no enfrentamento da questão social sem responsabilidade fiscal. Mas esta não é um fim em si mesma. Serve para criar as condições adequadas para que a economia possa crescer e o Estado prestar os serviços de que a população necessita.
A responsabilidade fiscal deve ser compreendida de modo abrangente. Inclui a noção de sustentabilidade fiscal. Os gastos públicos não podem evoluir sem financiamento adequado; vale dizer, não podem produzir distorções no sistema econômico e colocar em dúvida a capacidade de pagamento do Estado. Do contrário, o resultado é conhecido: baixo crescimento e inflação. Em seu texto inicial, a Constituição já continha comandos importantes destinados ao controle da dívida pública.
As regras fiscais devem fazer parte da institucionalidade do país, com diretrizes para os gastos e a dívida, arquitetadas de modo a arrefecer o ciclo da economia e oferecer flexibilidade para atuar nos momentos de maior dificuldade.
A responsabilidade fiscal, entretanto, é mais do que gastos e dívida sob controle. Envolve também o uso adequado dos recursos públicos. Os gastos precisam ser efetivos, oferecendo serviços adequados e renda para a população mais necessitada. Há muito a se avançar no país em relação a esse tema. Precisamos adotar instrumentos modernos de planejamento e gestão desses recursos.
Destacamos aqui a chamada revisão periódica de gastos, conhecida internacionalmente como “expenditure review”. A revisão de gastos faz um escrutínio orçamentário periódico, de modo a ajustar as despesas que não cumprem adequadamente seus objetivos, abrindo espaço para novas políticas, sem prejudicar a sustentabilidade fiscal.
Estamos falando aqui de avaliação das políticas públicas, não apenas as executadas por meio de despesas públicas, mas também as que se efetivam via gastos tributários, as renúncias de receita. Não temos tradição nessa área. As despesas e renúncias são introduzidas e se mantêm inercialmente, sem levar em conta seus resultados. É preciso que a avaliação se institucionalize no país e, ainda mais importante, seja incorporada em nossa prática e cultura como algo normal e automático.
Há ainda o plano fiscal do médio prazo, destinado a planejar o gasto público em um certo horizonte, de modo a refletir as prioridades do país dentro da capacidade de financiamento de médio prazo. Temos que encontrar o nível adequado de extração de recursos da sociedade por meio da tributação e o grau de disposição dos poupadores de financiar o Estado por meio do crédito e dos títulos públicos.
Enfim, o país não pode parar. Vamos aprimorar o SUS e o Fundeb e avançar em outras políticas demandadas pela população, notadamente as demandadas pela parcela mais vulnerável. Isso só será possível se a responsabilidade social e a fiscal andarem de mãos dadas. Vamos em frente!
Gilmar Mendes é Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Felipe Salto é Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo.