A salvaguarda dos direitos de patrimônios culturais, é uma prática que reflete em várias esperas. No âmbito econômico, o patrimônio cultural registrado pode impulsionar o turismo cultural, atraindo visitantes interessados em conhecer e vivenciar as práticas culturais autênticas do município. Isso, por sua vez, gera oportunidades de emprego e renda para os moradores locais, estimulando o desenvolvimento da região. Além disso, ao promover o orgulho e a valorização das raízes culturais locais, o registro e o inventário de patrimônio cultural contribuem para a coesão social e o senso de pertencimento da comunidade. Isso fortalece os laços entre os habitantes do município, promovendo a inclusão e a diversidade cultural.
Antes de falar sobre os avanços na salvaguarda do direito aos patrimônios culturais de Contagem, realizados pela Secretaria de Cultura em parceria com a Superintendência de Políticas para Igualdade Racial do município, é preciso entender quais leis estão amparando essas ações realizadas no ano de 2023.
A começar pela Constituição democrática de 1988, o direito à identidade e à diversidade cultural encontra-se delineado nos artigos 215 e 216, representando a base fundamental para o direito à auto identificação. Esses artigos destacam a importância de considerar como central para a identificação das comunidades não as diferenças culturais percebidas por um observador externo, mas sim aquelas diferenças que os próprios atores sociais consideram significativas e que são reveladas pelo próprio grupo. No artigo 30, a Constituição irá dispor sobre as competências dos municípios para com os patrimônios culturais, e afirma:
IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Concomitante à essa competência, temos o conceito de patrimônio cultural sendo ampliado no artigo 216:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II– os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Ou seja, a própria Constituição brasileira destaca a importância dos patrimônios culturais para o país, sendo uma forma de assegurar o direito à cidadania e à memória dos cidadãos. Além de perpetuar a existência de grupos fundamentais e formadores da sociedade brasileira. Ademais, ressaltamos a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que logo em primeiro artigo afirma que a autoidentificação deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da Convenção, ou seja, para além da Constituição temos importantes organizações se mobilizando em prol de assegurar os direitos dessas comunidades tradicionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU).
Para fins de registros desses patrimônios, temos os seguintes mecanismos de proteção definidos pela Constituição Federal de 1988: inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação. Além disso, cabe à Administração Pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental.
Ademais, os Bens Culturais de Natureza Imaterial instituídos pelo Decreto n. 3.551/2000, sendo os registros estabelecidos, conforme (Artigo 1º, paragrafo1º), lavrados nos seguintes livros:
• I Livro de Registro dos Saberes (Conhecimentos e modos do cotidiano das comunidades).
• II Livro de Registro das Celebrações (Rituais, festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social).
• III Livro de Registro de Formas de Expressão (Manifestações literárias, musicais, plásticas, ciências e lúdicas).
• IV Livro de Registro dos Lugares (Mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas).
No que tange à legislação estadual, temos a Lei nº 11.726 de 30/12/1994 que dispõe sobre a política cultural do Estado de Minas Gerais, a Lei nº 21.147, de 14/01/2014 que institui a política estadual para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades do estado e também o Decreto nº 47.921, de 22/04/2020 que Contém o Estatuto do Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.
Todavia, é importante dar destaque para a legislação de Contagem que se apresenta através da Lei 4647/2013 que dispõe sobre o sistema municipal de cultura do município, apresentando logo no primeiro artigo o que constitui o patrimônio cultural brasileiro, logo, do município também:
II – constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico;
Já adentrando no trabalho desenvolvido no ano de 2023, realizou-se o registro como patrimônio imaterial do município de 8 comunidades tradicionais, sendo 7 comunidades de terreiro e uma irmandade de rosário do divino espírito santo e também do Sindicato dos Metalúrgicos de Contagem. O mecanismo de registro utilizados para salvaguarda dessas comunidades foi o Inventário, que de acordo com artigo 113 da Lei 4647/2013 do município de Contagem, “O inventário é o procedimento administrativo pelo qual o poder público identifica, cadastra e protege os bens culturais do Município” e complementa logo em seguida no artigo 114 um critério importante que foi determinado nas conversas iniciais sobre esse processo, que é o de encaminhar as comunidades para um futuro tombamento ou registro caso estas desejarem. Ou seja, o inventário foi uma escolha estratégica considerando o tempo necessário para a produção destes documentos. Ademais, destacamos os seguintes artigos: 115 e 117, que dispõe sobre a finalidade dos inventários e sobre as solicitações ao Conselho de Patrimônio do Município, o COMPAC.
Art. 115: O inventário tem por finalidade:
I – promover, subsidiar e orientar ações de políticas públicas de preservação e valorização do patrimônio cultural;
II – mobilizar e apoiar a sociedade civil na salvaguarda do patrimônio cultural;
III – promover o acesso ao conhecimento e à fruição do patrimônio cultural;
IV – subsidiar ações de educação patrimonial nas comunidades e nas redes de ensino público e privada.
Parágrafo Único – Na execução do inventário serão adotados critérios técnicos em conformidade com a natureza do bem, de caráter histórico, artístico, sociológico, antropológico e ecológico, respeitada a diversidades das manifestações culturais locais.
Art. 117 Após o inventário, qualquer pedido de demolição, construção, reforma, restauração e modificação deverá ser encaminhado ao COMPAC.
Junto aos processos de inventários, foram realizados dois Registros pela Secretaria de Cultura, o Registro da Comunidade Os Ciriacos e o Registro do Jubileu de Nossa Senhora das Dores, amparado pelo artigo 118, que institui o Registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural do Município de Contagem e, assim como o artigo sobre o Inventário, dispõe sobre toda a caracterização do Registro, o objetivo, agente competente pelo registro e o livro em que se enquadra o bem a ser registrado.
Mapeamento das comunidades tradicionais
O processo de inventário e registro das comunidades supracitadas, não aconteceria sem a parceria com a Superintendência de Políticas para a Promoção Igualdade Racial estabelecida pela diretora de patrimônio da época, Aniele Fernandes de Sousa Leão, atual Superintendente de Políticas Culturais, e o Superintende João Carlos Pio. O processo teve como ponto de partida o Mapeamento das Comunidades Tradicionais do Município de Contagem. Esse mapeamento foi desenvolvido em 2021 pela Superintendência de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial e teve como objetivo, segundo o documento elaborado pela superintendência, “subsidiar as secretarias e órgãos da gestão municipal com informações sobre as comunidades tradicionais para a avaliação, monitoramento e redefinição da política pública com foco nestas comunidades”, ou seja, em um momento em que o debate sobre a salvaguarda das comunidades tradicionais está em destaque, esse projeto desenvolvido busca trazer o holofote para esses povos – diga-se de passagem, tem uma forte participação como agentes de cultura de Contagem – espalhados dentro do município. Além de alertar sobre os riscos que a falta de conhecimento e efetivação dos seus direitos tem. O mapeamento segue em atualização constante pela Superintendência e destaca-se a construção, junto aos povos e comunidades tradicionais e dada a realidade de invisibilização produzida pelo racismo estrutural e a discriminação étnico-racial que ainda impactam a vida destas populações no município de Contagem, indo de acordo com as orientações da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que prevê a consulta dessas comunidades de forma livre, informada e de boa fé.
O município contagense tem uma vasta quantidade de bens que representam o patrimônio cultural. Isto demonstra a significativa trajetória histórica da cidade. Contagem das Abóboras tem seu início no século XVIII no contexto colonização portuguesa. O local onde hoje fica a regional Sede, anteriormente abrigou um posto de registro onde se realizava a – contagem – do se passava para as regiões mineradoras, sobretudo para as cidades hoje conhecidas como Ouro Preto e Sabará. Logo, atualmente é possível observar vários casarões antigos, como a Casa da Cultura Nair Mendes Moreira, os três casarões do Centro Cultural e a própria igreja São Gonçalo, todos são bens tombados que rememoram esse período da história da cidade. Os bens tombados são patrimônios materiais porque representam manifestações físicas do patrimônio cultural, como edifícios históricos, monumentos, sítios arqueológicos, obras de arte, entre outros, que possuem um valor cultural, histórico, arquitetônico ou artístico significativo e são protegidos legalmente para preservação e manutenção pela sociedade.
Para além disso, é valoroso destacar os patrimônios imateriais da cidade. O patrimônio imaterial são os elementos da cultura que não podemos tocar, como tradições, músicas, danças, histórias, conhecimentos e técnicas transmitidas de geração em geração. São coisas que fazem parte da identidade de um grupo ou comunidade. No caso de Contagem, há presença maciça destes bens. Muitos patrimônios rememoram a cultura afro-brasileira construída na cidade. É válido destacar a Comunidade Quilombola dos Arturos que tem o registro estadual e municipal de suas tradições. Somado a isso, outros grupos de Reinado ou Congado, como Os Ciriacos, Os Marianos, Os Carolinos a Guarda do Congo Jardim Industrial. Em conjunto a eles, os vários grupos de Capoeira que fazem parte dos registros patrimoniais da cidade, entre outros.
No ano de 2023, pós o contexto pandêmico, a equipe da Diretoria de Memória e Patrimônio, que é responsável pela salvaguarda e pela formulação de políticas de preservação dos patrimônios, se empenhou a desenvolver mais registros do patrimônio cultural de bens imateriais do município. Ao ser registrado, um bem imaterial recebe reconhecimento, valorização, proteção legal, acesso a recursos e fortalecimento da identidade cultural, promovendo sua preservação e continuidade. Foi assim, que se desenvolveu um plano de ação em conjunto com a Superintendência de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial do município. Foram elencadas oito comunidades: Casa de Caridade Vovô Pedro de Aruanda; Nzo Ndanji Mona Simby Kia Kabila; Ilê Asé Odé Inlê; Centro Espírita Ogum Beira Mar/Ile Asé Igba Ogum; Comunidade Espírita Odê Farangi; Comunidade Espírita Netos de Bate Folhinha; Nzo Atim Obatalacy; Comunidade Marianos (Congado, terreiro, quilombo urbano).
A elaboração dos inventários contou com a realização de entrevistas, visitas técnicas em festividades, digitalização de documentos, fotografias, entre outros. Com isso, foi construído um material robusto. Cada documento tem cerca de 35 páginas. Toda a documentação está disponível para a consulta pública. Ademais a documentação foi enviada para o IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) a fim de receber a pontuação e o repasse do Programa ICMS Patrimônio Cultural que é um programa de incentivo à preservação do patrimônio cultural do Estado.
Não obstante, foram realizados registros patrimoniais. Assim, o Jubileu de Nossa Senhora das Dores, celebração que ocorre há mais de 200 anos na cidade, foi redigido em formato de dossiê. Somado a isso, têm-se o registro da comunidade Os Ciriacos, que rememora as muitas facetas da cultura negra em Contagem. E por fim, foi elaborado o inventário do Sindicato dos Metalúrgicos de Contagem que foi referência nacional frente à luta pelos direitos trabalhistas. Ambos também disponíveis para consulta.
Logo, totaliza-se a produção de 2 (dois) registros e 9 (nove) inventários de patrimônios culturais de Contagem. Totalizando (onze) Cada uma com sua especificidade, demonstrando a pluralidade cultural contagense. As regionais em que os bens se localizam são diversas: Ressaca, Nacional, Sede, Industrial, Eldorado e Vargem das Flores.
A política de registro e inventário de patrimônio cultural dentro de Contagem desempenha um papel crucial na preservação e promoção da riqueza cultural local. Ao documentar e reconhecer as diferentes expressões culturais presentes nos bens culturais, o município fortalece sua identidade e valoriza suas tradições. Essa prática permite que os órgãos municipais e os gestores tenham um panorama das manifestações culturais existentes, desde práticas tradicionais até formas contemporâneas de expressão. Com esse conhecimento, é possível desenvolver políticas públicas eficazes, que atendam às necessidades e interesses da população e ajude na manutenção das tradições.
Além disso, o registro e o inventário de patrimônio cultural facilitam o acesso a recursos financeiros, tanto governamentais quanto de organizações internacionais, para a preservação e promoção desses bens culturais. Isso possibilita a realização de projetos de conservação, restauro, educação e difusão cultural, contribuindo para a vitalidade e continuidade das tradições locais.
Gabrielle Vaz é formada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, nas modalidades de Licenciatura e Bacharel. Pós-graduação lato sensu em Gestão e Projetos de Patrimônio Cultural pelo IEPHA Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e a UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Atua como gerente de museologia, arqueologia e bens patrimoniados na Secretaria de Cultura de Contagem.
Rafael Braga é graduando do 8º período em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, nas modalidades de Licenciatura e Bacharel. Atua como gerente do Centro de Memória do Trabalhador Industrial de Contagem na Secretaria de Cultura de Contagem.