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Fagner Sena: Remontemos a Sister Rosetta Tharpe

Publicar qualquer coisa sobre Contagem depois do artigo da jornalista Maria Cristina Fernandes é um tarefa inglória… Mas vamos lá.

O filme Forrest Gump é uma daquelas produções que farão sentido em todo e qualquer tempo. Tiver a oportunidade de assisti-lo já nas suas primeiras exibições na televisão. À época, me chamava a atenção as cenas mais engraçadas e as mais emocionantes. Da cena de despedida de Forrest trouxe a minha primeira noção sobre a finitude da vida: “a morte faz parte da vida”, dizia a senhora no leito de morte. A cena da tempestade em que o Tenente Dan desafia Deus, naquele momento, me causou apenas espanto; um sentido mais apurado apenas me veio recentemente. Explico.

A cena do desafio citada (na verdade foi uma blasfêmia) ocorre em um contexto em que a atividade pesqueira que Forrest e seu sócio desenvolviam estava muito ruim. Ar redes lançadas ao mar, ao invés de camarões, traziam lixo. Tenente Dan sugere buscar a Deus para ajudar a melhorar os negócios. Os dois procuram a igreja (aqui está a questão). Enquanto Forrest cantava e dançava os hinos evangélicos, em uma cena muito comum no cinema norte-americano, que simboliza momentos de redenção, de pontos de virada de uma vida trágica para uma vida próspera, o Tenente Dan ficava ao fundo bebendo. A cena da tempestade resulta em uma tragédia no setor pesqueiro; Tenente Dan abandona os negócios e logo em seguida o barco de Forrest assume o monopólio da pesca, pois todos os demais barcos haviam sido destruídos pela tempestade.

Ora, por óbvio que não foi sorte, sempre foi Deus. É o que a cena reforça. O barco de Forrest foi o único que foi preservado exatamente pela bondade de Deus. Os dois ficaram ricos, muito ricos. O detalhe é que a Igreja onde foram buscar o milagre era uma igreja evangélica. A percepção que tenho hoje, no ano que marca os 30 anos daquele filme, é da presença do pentecostalismo no cinema da maior potência cultural em geral e cinematográfica em especial do mundo. Eu citaria vários filmes que esta cena aparece: um passado arruinado, a procura por uma igreja evangélica, pessoas cantando e dançando hinos e um futuro de glorias e conquistas em seguida. Detalhe importante: a presença de mulheres negras nessas cenas.

Falei de um filme que acredito que espero que seja conhecido dos leitores deste blog. Agora descrevo rapidamente outra cena. Uma estação de trem abandonada cheia de poça de água da chuva. Aparece uma charrete, um cavalo pampa e desce uma senhora negra, de cabelo escovado, pintado, salto alto, roupas longas… ela dá o braço a um senhor negro e os dois caminham em passos no ritmo que a banda (bateira, baixo e piano) começa a tocar. Do outro lado, uma plateia a esperava batendo palmas no ritmo da banda. A senhora entoa gritos que levam a plateia ao delírio. Ela pega uma guitarra elétrica e começa a tocar em um estilo parecido com Chuck Berry, Elvis Presley e Jerry Lee Lews. O ano era 1966. A senhora é a Sister Rosetta Tharpe (Irmã Rosetta Tharpe). A música que ela cantava era Didn’t Rain (Não choveu?), que faz referência ao dilúvio e a Noé, um dos acontecimentos e um dos personagens mais conhecidos do bíblia.

Se é difícil atribuir a um talento negro o trono de rei do Rock ou de qualquer outro ritmo, imaginemos atribuir a uma mulher, negra, evangélica qualquer referência à sua importância na formação de um ritmo ou estilo que é universal. Não se diz da Irmã Rosetta Tharpe (1915-1973), que nos sites de busca a classificam como mãe e criadora do Rock’ n Roll. Ela foi uma guitarrista, cantora e compositora estadunidense, casada com um pastor evangélico. A irmã Rosetta pode não ser tão conhecida como os que se tornaram reis, pais ou criadores do Rock. Mas Elvis, por exemplo, sempre a referenciou como sua maior influenciadora. Basta ouvir com atenção os solos de guitarra e o estilo de tocar dela e de Chuck Berry e a semelhança logo é percebida. É inegável: Irmã Rosetta Tharpe é a mãe do Rock e ela assim se fez tocando e cantando música gospel e para o público evangélico.

O título do texto é, na verdade, uma provocação. Primeiro para mim mesmo. Remontar, nesse caso, funciona como trazer para o presente um exemplo pretérito, reparar em algo que aconteceu e que mudou a história, para pensarmos o presente. O exemplo de uma mulher negra, evangélica que revolucionou a música é para chamar atenção para o que pode representar o movimento gospel no Brasil em termos de linguagem, cultura, mercado, entretenimento, economia. Falei o que pode, mas corrijo, pois já representa, mas que não possuiu ainda o devido reconhecimento.

Quem nunca passou pela porta de uma igreja evangélica em horário de culto, ou mesmo foi participar de um culto, e não ouviu timbres de vozes, viradas de bateria, solos de guitarra que não ficam nem um pouco para traz do que fazem artistas paradas de sucesso, nos canais de televisão, das rádios comerciais. Digo isso não nas grandes igrejas, mas naquelas pequenas que dispomos de uma em cada esquina, principalmente nas periferias. Pois bem.

Precisamos compreender o movimento evangélico como um movimento que possuiu linguagem, arte, mercado, enfim, identidade. E que não é mais uma minoria, registra-se. E faço essa provocação e trago esse tema dessa forma, primeiro, porque acompanho o olhar cuidadoso com o qual a Prefeita Marília Campos tem para com os cristãos evangélicos e Contagem. E percebi isso já na campanha eleitoral de 2020, quando eu andava no carro de som e vinham duas orientações dela e que eram condições para ser porta-voz da sua campanha: 1) não fazer discurso, mas dialogar com as pessoas no carro de som (como é o estilo dela); 2) citar e fazer referência às lideranças religiosas. No governo, são muitas as ações de reconhecimento e respeito aos evangélicos. Cito alguns: a construção da Marcha para Jesus, a inclusão de artistas gospel na programação cultural de Contagem, a inclusão do segmento religioso (com reserva aos evangélicos) nos Conselhos Regionais, o tratamento dado à reserva destinada à cultura gospel nos editais da Secretaria Municipal de Cultura. E o mais importante é a postura de Marília ao evitar temas que são caros ao segmento cristão evangélico.

O Brasil será um país de maioria evangélica provavelmente na próxima década. O Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveu uma metodologia de levantamento de dados sobre o crescimento das igrejas evangélicas no Brasil de 1920 a 2019. A pesquisa, que utiliza como fonte primária o Cadastro de Pessoas Jurídicas. O estudo, publicado em maio de 2023, mostra o enorme crescimento dos estabelecimentos (109.560 mil inscritos; abertura de 17 novos templos por dia em 2019) evangélicos nos últimos anos, principalmente nos grandes centros urbanos, em locais de concentração de negros e pobres.

Utilizando a mesma metodologia da USP, apuramos que em Contagem são 3021 igrejas evangélicas abertas (Nacional – 310; Eldorado – 423; Industrial – 250; Petrolândia – 59; Riacho – 610; Ressaca – 161; Vargem das Flores – 670; Sede – 538). As forças progressistas e de esquerda enfrentam dificuldade em dialogar com esse público. A Prefeita Marília Campos, pela sua ação direta e pelas políticas públicas, tem apontado caminhos. Contagem pode ser, se já não é, referência e ensinar muito sobre como dialogar mais e melhor, valorizando a cultura e o empreendedorismo gospel – esse pode ser um bom debate para o próximo período. A cidade que tem a Filmes de Plástico, Isa Murta, Érica Januza pode ter uma Irmã Rosetta Tharpe em algum lugar. As políticas públicas desenvolvidas pelo governo Marília apontam caminhos para descobrir e incentivar.

Fagner Sena é dirigente do PCdoB de Contagem, assessor na Secretária de Defesa Social em Contagem, bacharel e licenciado em letras.

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