“Em Cloé, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se imaginam mil coisas umas das outras, os encontros que poderiam verificar-se entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas. Mas ninguém dirige uma saudação a ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois afastam-se, procurando novos olhares, não param”.
Italo Calvino, em Cidades Invisíveis.
Cidades Invisíveis é uma joia rara. O próprio autor, Italo Calvino, um cubano que se tornou um dos mais importantes escritores italianos do século passado, se refere a este livro como a sua obra mais completa, síntese mais que perfeita de suas “reflexões, experiências e conjecturas”.
A trama, para quem ainda não teve a oportunidade de ler este livro, trata da busca por uma cidade ideal nos tempos medievais de Marco Polo. O lendário navegador veneziano descreve ao imperador Kublai Khan, neto do grande Genghis Khan, as cidades que teria visitado em suas viagens. O propósito é propiciar ao Khan elementos para a construção tanto um modelo positivo a ser perseguido quanto o vislumbre das possibilidades negativas a serem evitadas, de acordo com seus objetivos.
O mais interessante nesta história é que Marco Polo não apresenta as cidades a partir das vantagens competitivas oferecidas por suas posições geográficas, condição climática ou riquezas naturais. O que o navegador ressalta é a experiência humana de cada uma delas; as relações sociais dominantes em decorrência da proposta de convivência que organiza os encontros e a convivência entre as pessoas e edifica a cidade, levando a eventuais contradições, problemas e angústias típicos das grandes cidades atuais. Cidades Invisíveis é uma grande metáfora.
Entre as 55 cidades (todas elas com nomes femininos) citadas por Marco Polo está Cloé, onde a velocidade não permite que as pessoas se conheçam, que o diálogo entre os indivíduos se estabeleça e que as fantasias e intenções de uns em relação aos outros se realizem no plano factual.
Em Cloé, o espaço urbano só existe sob a forma de um turbilhão humano onde há proximidade física, mas não acontecem aqueles momentos de imobilidade necessários à conversação e ao diálogo, ao olho no olho, ao flerte e à sedução.
Portanto, não há, em Cloé, a produção do afeto como sentimento fundante de relações que tornam possíveis as memórias e os sentimentos de pertença e identidade. Neste sentido, Cloe é um “não lugar”, ou, em outras palavras, é apenas um lugar de passagem para um bando de transeuntes apressados que podem até formar uma multidão (ou uma turba) mas, jamais, constituirão um grupo social. Menos ainda mais uma civitas!
Ora, nós, seres humanos, somos “animais sociais”. Isso significa que somos propensos, isto é, geneticamente programados para vivermos em comunidade e, não por outro motivo, em Cloé, ao se enxergarem, as pessoas imaginam como seriam “as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas”. A interação acontece, ainda que nos sonhos.
Na vida real, a quantidade e a qualidade das interações que estabelecemos são decididas pelas características da estrutura urbana que nos coloca em contato uns com os outros. Em outras palavras e simplificando a equação, a estrutura oferecida por uma via de trânsito rápido não permite as mesmas oportunidades de interação que podem ser encontradas em uma praça, por exemplo.
A primeira, muito típica das grandes metrópoles atuais, aponta para a fragilidade e solidão das pessoas imersas na multidão indistinta, onde cada um e cada uma são apenas passantes facilmente esquecíveis. A segunda, fala de encontros, partilhamento de experiências e sentidos, da produção de memórias e, enfim, de vida comunitária.
Atualmente, em Contagem, estas duas concepções e possibilidades de cidade encontram-se em discussão e passam por uma espécie de escrutínio. Evidência deste debate são os comentários do tipo “gasta com shows mas a saúde tá um caos” ou “praça não é prioridade”, que podem ser encontrados nas redes sociais da prefeita (1). Ainda que legítimas, opiniões deste tipo cometem o pecado de perceberem o governo como um mero prestador de serviços on demand, ou seja, conforme as necessidades do reclamante que, invariavelmente, é individualizado, imediatista e “não está nem ai” para o conjunto de variáveis influentes na oferta dos serviços públicos e, mais que isso, para o planejamento dessa oferta, ou seja, para o futuro desses serviços, seu financiamento e sustentabilidade vis a vis a projeção da demanda coletiva.
As palavras-chave neste problema são futuro e coletivo. Por definição, uma cidade é o lugar onde as pessoas, por mais antagonistas que sejam, podem imaginar um futuro comum feliz e isso não é possível se não tiverem a chance de compartilharem seus sonhos, de negociarem soluções para os conflitos que têm que entre si e de pactuarem compromissos de realização solidária e corresponsável.
Não obstante, a história humana demostra — com abundância de exemplos — que o desenvolvimento natural, ou espontâneo, das sociedades reflete o resultado dos jogos de competição e cooperação entre os atores sociais, com seus ganhadores e perdedores. Por consequência, o desenvolvimento das sociedades humanas, tal como ocorre livremente, é um desenvolvimento excludente, segregador e produtor de pobres e ricos, de privilegiados e oprimidos.
É um desenvolvimento no qual o futuro pode até ser comum, mas só é feliz para alguns. É ai que entra a política.
O papel da política é interferir nesta disputa de modo a equilibrar a competição e propiciar uma distribuição mais equânime dos quinhões de felicidade. Como observou Aristóteles
“toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhe parece um bem; se todas as comunidades visam algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras, tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade politica” (2).
A sabedoria da prefeita Marília Campos consiste em haver recuperado as noções aristotélicas de cidade e de política como meios para a produção do bem comum. A politica, de fato, nada mais deve ser que um instrumento para aproximar o que a vida social afasta e produzir vida coletiva sob a forma de cidade. Além disso, a prefeita compreendeu que os processos de aproximação são mais produtivos, e têm efeitos mais profundos na alma humana, em situações não instrumentais, nas quais não há conflito de interesses e podem ocorrer trocas simbólicas. Dai a importância do lúdico e da cultura como meios para o distensionamento do cotidiano e desenvolvimento da urbanidade.
A urbanidade, bem entendido, emerge do modo como produzimos as condições para o encontro entre os diferentes e está na base do desejo de um futuro comum.
É este o sentido mais profundo da cidade “mariliana” e sua aposta na oferta de generosas oportunidades para o encontro, para a convivência e a interação entre as pessoas. É este o sentido das praças, do shows, das academias de ginástica ao ar livre, das corridas, dos parques etc. São políticas púbicas públicas destinadas a prover os meios necessários a uma sociabilidade cotidianamente construída, gerando consciência, reivindicações e ações.
Ivanir Corgosinho é sociólogo.
(1) A prefeita mantém aberto o espaço para comentários em suas redes sócias e, com frequência, os responde pessoalmente. Suas redes são, por esta razão, um poderoso fórum de debates e construção de opinião.
(2) ARISTÓTELES Política. Brasília: UnB,1988.