Por influência do marxismo, que a partir dos anos sessenta do século passado aumentou a sua influência sobre o movimento negro, as práticas culturais afro-brasileiras passaram a ser criticadas por não serem propriamente políticas e, aqueles que somente se dedicavam àquelas práticas eram chamados de culturalistas.
De acordo com os críticos, dentre eles Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg, essa tendência culturalista, quando desacompanhada de ações especificamente políticas, tais como, palestras e seminários para conscientização, elaboração de reivindicações e manifestações do tipo passeatas, atos públicos, boicotes, greves e afins – teria travado o avanço do movimento negro brasileiro.
Mais severamente, o cientista político afro-estadunidense Hanchard (2001), no clássico Orfeu e Poder: Movimento Negro no Rio e São Paulo, observa que entre as lideranças negras, principalmente das décadas de 1970 e 1980, preponderaram práticas as quais denomina de culturalistas. O autor afirma “que o problema fundamental do movimento tem sido esse olhar para trás, para uma África unitária e monolítica como base da identidade, ideologia e ações coletivas.” (HANCHARD, 2001, p. 193).
De modo que, esse olhar para essa África idílica, essa busca pela preservação de uma essência africana original, de tentar apresentar “os quilombos brasileiros, ou as comunidades dos bantos ou iorubás da África ocidental como formas de organização social intrinsecamente superiores à escravatura ou ao capitalismo brasileiro” (HANCHARD, 2001, p. 193) inibia a formação de uma consciência crítica.
De acordo com o autor,
O resultado final é uma preocupação não com a história, mas com partes da história que possam servir de apetrechos cosméticos para melhorar a autoimagem – heróis, batalhas vencidas, lebres humanas que vez por outra levam a melhor sobre as raposas, e assim por diante. A rebeldia e a vontade infatigável são apresentadas não como componentes da luta social, mas como expressões de um individualismo briguento e do pensamento aventureiro – em síntese, do voluntarianismo (HANCHARD, 2001, p. 195).
Segundo o autor, “nem a escravidão nem a resistência a ela, nem a organização sociopolítica e religiosa da África, antes e durante a primeira leva do imperialismo ocidental, três séculos atrás, fornecerão soluções fáceis de enxertar nos males societários do Brasil na década de 1990.” (HANCHARD, 2001, p. 196).
Dessa forma, uma nova concepção política implicaria não apenas novas formas de organização e de coordenação, mas também um reconhecimento mais amplo das forças globais que atuam na política contemporânea.
O presente em curso, e não um passado folclórico, precisa ser historiado, caso os intelectuais críticos negros e brancos pretendam revelar as disjunções raciais permanentes da sociedade brasileira. Para que o movimento evite o destino de Orfeu1, é preciso haver uma atividade crítica maior dentro dele, não apenas para acabar com os relatos auto-enaltecedores ou humilhantes de um passado afro-brasileiro, mas também, o que é mais importante, para historiar e, portanto, desfolclorizar o presente afro-brasileiro. Essa é a única maneira de o movimento livrar-se de seu culturalismo (HANCHARD, 2001, p. 196).
De Orfeu à Sankofa
O mito grego de Orfeu, citado acima por Hanchard, talvez não seja a melhor chave para a interpretação da resistência cultural afro-brasileira, uma vez que não se trata do olhar individual, como o de Orfeu, voltado para trás a fim de recuperar algo muito amado que se perdeu para sempre.
Melhor seria o de Sankofa, a ave mitológica africana que voa para frente, porém, com a face voltada ao passado, como se buscasse na sabedoria ancestral a fonte para a construção de um futuro melhor.
Com efeito, quando imergimos nas práticas culturais afro-brasileiras vamos absorvendo uma cosmovisão afrocentrada, que se recusa a separar o sagrado do profano, o intelecto da emoção, a espiritualidade do pensamento, o lazer do trabalho, a arte da política ou da religião.
De modo que, por essas vias culturais ainda preservadas, pela recuperação da memória ancestral, é possível concebermos uma crítica global a todo o sistema-mundo ocidental, para além de sua crítica meramente econômica. Por elas também é possível concretizarmos formas de resistência e de luta que são também políticas, uma vez que a política não se separa do resto da vida.
De Marx à Decolonialidade
Hanchard (2001) observou o movimento negro brasileiro sob a ótica do marxismo gramsciano que ele apreendeu a partir de sua própria experiência cultural e acadêmica estadunidense. Esse olhar, embora se refira às injustiças praticadas na esfera econômica e racial, apresenta soluções para esses dilemas dentro da lógica do próprio colonizador.
Pela lente de sua ideologia, Hanchard não conseguiu enxergar como um acontecimento político a existência de uma roda de capoeira, onde se aglomeram pessoas para assistir e se divertir com os jogos de corpos e a musicalidade, e na qual se presentifica, no momento ritual, uma concepção de vida, de corpo, de natureza, de sociedade afrocentradas.
Ele somente validaria tal ato como político, se aquele grupo de pessoas estivesse gritando palavras de ordem, empunhando bandeiras, organizando barricadas e se preparando para a revolução proletária e para o futuro comunista da humanidade.
O Triunfo do Culturalismo
O aumento da percepção de que as ideologias políticas ocidentais, inclusive as críticas, fazem parte de um grande pacote cultural do colonizador, colocam na ordem do dia para o movimento negro a necessidade da manutenção e do incentivo às chamadas práticas culturais afro-brasileiras.
Por elas, e quanto mais nos aprofundamos nelas, mais vamos acessando a toda uma cosmovisão afrocentrada, e, por meio dessa cosmovisão, vamos constituindo uma outra singularidade crítica ao sistema-mundo ocidental, bem como, vamos desenvolvendo outras sensibilidades para a compreensão da nossa própria resistência cultural e atualizando as antigas estratégias de luta.
Dimas Antonio de Souza é contramestre de Capoeira Angola e professor de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Twitter: @prof_Dimassouza
Instagram: @prof.dimasoficial
Referências
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
HANCHARD, Michael Georg. Orfeu e o poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: UERJ, 2001.
SOUZA, Dimas Antônio de. Campo de Mandinga: presentificação estética, ética e política na capoeira Angola. https://www.unilivrecoop.com.br/ebook/index.html?page=1