Olhando ao redor, reparamos que somos mais diferentes do que iguais. As dessemelhanças se manifestam na hora de assistir a um filme juntos, em família, por exemplo. Enquanto um prefere aventura, outro opta pelo terror. Os apaixonados tendem a optar pelas produções românticas “O amor é lindo!” Terão aqueles que optarão por uma comédia daquelas torturantes, que a gente não solta risadas do filme, mas da possibilidade humana de fazer besteira, como “As Branquelas (eta filme chato!)”. No fim a querela é resolvida por quem tem posse do controle ou pelo mais insistente. Viu? Somos discrepantes. Sim, tem gente que até gosta das Branquelas… A questão é que algumas diferenças nós suportamos, outras nós queremos esquecer que existem. Hoje em dia as cidades, ao invés de nos lembrar das positividades de conviver com as diferenças, tendem a reforçar as distâncias.
Pesquisando por empreendimentos em Contagem, me deparei com a propaganda de uma empresa grande e respeitável no mercado imobiliário, sobre um projeto específico com a atraente frase: “Com localização privilegiada, o empreendimento conta com tudo que você precisa ao seu alcance.” O empreendimento é chamativo, oferta uma ampla área de lazer, parque para crianças brincarem, área de vivência para moradores, academia, pista de caminhada, local para churrasco em um espaço milimetricamente calculado para caber tudo. Como se tudo o que você precisasse estivesse alí dentro evitando que as pessoas tivessem que sair pela cidade. Eis, o mercado imobiliário explorando a cultura do medo. Detalhe: todas as imagens estão muito bem feitas, destacando os muros grossos e paredes altas. Ou seja: “Tudo o que você precisa” para não ter que sair de casa e lidar com o diferente, com o outro, com o desconhecido e, por isso, indesejável. Viva os nossos mundinhos onde desfrutamos a ilusão da plenitude no caminho inverso do Mito da Caverna de Platão.
Vivemos entre as escolhas de tensões: estamos em busca de respostas sobre as grandes questões da humanidade ou se daremos conta de acordar a tempo de pegar o ônibus para não chegarmos atrasados no trabalho no dia seguinte; queremos saber o que realmente existe após a morte ou se conseguiremos voltar para casa com o celular comprado em 10 vezes com muitos juros disfarçados; a curiosidade sobre o que havia antes do Big Bang é grande, mas o que cortar na lista de comprar para compensar o aumento do ônibus é urgente. Na música “Eu Também Vou Reclamar”, Raul Seixas resume bem a história: “Dois problemas se misturam/ A verdade do universo/ A prestação que vai vencer”. Ou seja, o sujeito vive entre grandes debates ideológicos e preocupações práticas que podem comprometer sua vida, seu conforto e suas relações no dia a dia. Zygmunt Bauman afirma que “Nossos medos são capazes de se manter e se reforçar sozinhos. Já têm vida própria.” Em tempos atuais o medo virou um negócio, uma isca para demagogos motivacionais e o principal ingrediente para políticos de má fé.
Neste sentido, podemos identificar dois tipos de políticos: aqueles que estão dispostos a apontar alternativas ao medo e aqueles que se sustentam sobre os medos, sem apontar alternativas para as raízes dos problemas que existem em qualquer grande cidade do mundo. “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, resume bem Chico Buarque o sentimento que persiste nas cidades e que serve de justificativa para tanta covardia e tantos perversos de plantão chegarem ao poder.
Para explicar seu ambiente e sua origem, devemos recordar, antes de mais nada, que as cidades, nas quais vive atualmente mais da metade do gênero humano, são de certa maneira os depósitos onde se descarregam os problemas criados e não resolvidos no espaço global. São depósitos sob muitos aspectos. Existe, por exemplo, o fenômeno global de poluição do ar e da água, e a administração municipal de qualquer cidade deve suportar suas conseqüências, deve lutar apenas com os recursos locais para limpar as águas, purificar o ar, conter as marés. O hospital do bairro onde vocês moram pode estar em crise, e essa crise reflete tais problemas, as preocupações financeiras; reflete o desconhecido e remoto conflito em curso entre os colossos farmacêuticos, que têm se batido pelos chamados “direitos de propriedade intelectual”, que colocam no mercado determinados fármacos e tratam logo de aumentar os preços, de tal modo que o seu hospital não consegue mais cuidar dos pacientes.
Ou seja, os problemas de uma cidade são muito mais complexos do que um apontar de dedos leviano. São, na maioria das vezes, o resultado de algo maior que, inclusive, excede os limites dos municípios. É necessário diálogo entre as esferas municipais, estaduais e federais, sem partidarismo ou ódio. É necessário buscar exemplos de boas práticas e ter ao lado profissionais que conheçam as peculiaridades das dinâmicas urbanas e que tenham consciência que estão, antes de tudo, lidando com pessoas e isso requer sabedoria. Quem não dialoga, não governa. Quem não conhece a realidade não dialoga e quem tem ódio não pode, jamais, estar na administração pública. Lembrando Guimarães Rosa na genial obra “Grande Sertão: Veredas”: “A gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é.”
No Livro “Identidade’ Bauman, escritor polonês mas que, dada a sua história de exílio e adaptações, assume uma identidade Europeia, chama a atenção para que o que causa maior medo nas pessoas hoje em dia não é ser desempregado, mas a exclusão total do sistema, se tornar um ser a parte, sem vínculos, mais uma dessas pessoas que enquadram cenas tristes todos os dias pelas ruas de qualquer metrópole pelo mundo. “Os empreendimentos que contêm tudo o que você precisa”, fundamentalmente, contém estruturas que mantêm esses “indesejáveis” fora do nosso campo de visão. Mas sabemos que eles estão la. Queremos eles longe pelo perigo que podem nos oferecer, mas também pelo efeito psicológico que causa ficarmos frente a frente com um agressor ou o que pode ser feito de nós a qualquer momento por uma dívida que cresce no banco ou por uma repentina falta de condição de trabalhar.
Surgiu um “Capital do Medo” que pode ser transformado substrato para a comercialização de bens imóveis mas, principalmente, para estratégias políticas perversas. “Diken e Laustsen chegam a sugerir que o milenar “vínculo entre civilização e barbárie se inverteu. A vida nas cidades está se convertendo em um estado de natureza caracterizado pela regra do terror e pelo medo onipresente que a acompanha”.[1]
“Por esse motivo, os espaços públicos são locais em que atração rejeição se desafiam (suas proporções são variáveis, sujeitas a mudanças rápidas, incessantes). Trata-se, portanto, de locais vulneráveis, expostos a ataques maníaco-depressivos ou esquizofrênicos, mas são também os únicos lugares em que a atração tem alguma possibilidade de superar ou neutralizar a rejeição. Trata-se, em outras palavras, de locais onde se descobrem, se aprendem e sobretudo se praticam os costumes e as maneiras de uma vida urbana satisfatória. Os locais públicos são os pontos cruciais nos quais o futuro da vida urbana é decidido neste exato momento. Uma vez que a maioria da população planetária é formada de moradores de cidades, ela é também o futuro da coabitação planetária.”[2]
Então reparem nos políticos que só vêm à mídia para comemorar o quanto pior melhor sem, em momento algum, oferecer uma solução clara sobre os problemas que existem. Mentindo, promovendo teatros com Projetos de Lei inconstitucionais e difusão do ódio. Por outro lado, temos que destacar o oposto: Marília Campos, aquela não não governa com base no medo; mas em propostas claras, diálogo com todas e todos, debatendo os problemas e apontando soluções para a cidade. Ela constrói alternativas junto à população e nos momentos de dificuldade não se afasta do povo.
Se aproveitar do medo ou oferecer soluções ao medo? Qual é a melhor alternativa?
Chico Samarino é formado em história pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais. Hoje está como Assessor na Secretaria de Cultura de Contagem.
NOTAS
[1] Diken B. e C.B. Laustsen, “Zone of Indistinction: Security, Terror and Bare Life”, Space and Culture , vol.5, n.3, ago 2002, p.290-307. Cit. in:BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Tradução Eliana Aguiar. Zahar. Rio de Janeiro. 2012.p.18.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Tradução Eliana Aguiar. Zahar. Rio de Janeiro. 2012.p.18.