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Breve história da conquista dos direitos trabalhistas no Brasil

*Extraído da cartilha da Reforma trabalhista da Deputada Marília Campos, páginas 5 a 17

Liberalismo foi uma continuidade do escravismo no Brasil. O liberalismo em termos econômicos e sociais não é uma coisa nova no Brasil. Em nosso país, a escravidão foi abolida oficialmente em 1888, mas daquela data até 1930, durante longos 42 anos, vigorou um férreo liberalismo econômico e um privatismo completo nas relações sociais. A propagada “liberdade de trabalho” encobria, na verdade, uma brutal exploração e o desrespeito de direitos humanos básicos. Os gastos públicos não chegavam a 10% do PIB e se destinavam  basicamente à manutenção de uma estrutura mínima do Estado e à garantia da segurança interna. Para Azis Simão, o liberalismo econômico no Brasil, sob certos aspectos, significou a continuidade do escravismo. Diz esse autor: “A primeira interferência do poder público nas relações de produção foi constituída pelos atos referentes à abolição do regime escravista. Nisto, porém, ficou a ação efetiva do Estado nesse plano da vida econômica, não mais tocando, de fato, por longo período, no direito privado de estabelecer regimes de trabalho. Do ponto de vista das gestões econômicas, a diferença entre o braço escravo e o livre representava apenas uma diferença na forma de investimento em mão-de-obra – nunca a negação do direito privado de determinar as condições de locação da força de trabalho. Tal privatismo não foi aqui, portanto, uma consequência da simples adoção de ideias do liberalismo econômico, criadas nas áreas europeias em que originou a sociedade capitalista. Ao contrário, ele apenas ajustou, no processo da vida política, formulações jurídicas do Estado liberal, às normas já elaboradas na experiência econômico-social do período escravista” (Azis Simão, Sindicato e Estado, 1966).

O fim da escravidão não levou a política de inclusão social do negro(a) na sociedade brasileira. A formação social brasileira resultou num peculiar modelo de sociedade multirracial e pluriétnica. O legado da presença estimada de cinco milhões de indígenas que habitavam o país no período inicial do colonialismo, o tráfico de cerca de quatro milhões de africanos nos três séculos e meio em que perdurou o escravismo e a grande imigração européia e asiática ao longo dos séculos XIX e XX fizeram do Brasil um mosaico de diversidades, portador de uma rica geografia de identidades étnicas, culturais, religiosas, éticas e estéticas. (…) O certo é que o fim da escravidão não levou a uma política de inclusão do negro na sociedade brasileira. O Brasil não realizou uma reforma agrária, que garantisse o acesso à terra às milhares de pessoas da raça negra libertas da escravidão. E mais: “Instituiu o regime de trabalho assalariado, sem, contudo, adotar quaisquer medidas que permitissem ao ex-escravo competir, em igualdades de condições com o imigrante, então eleito como mão de obra mais apropriada à fundação da ordem capitalista e à noção de progresso desejável ao jovem Estado Republicano” (Relatório, 2001)

Constituição liberal de 1891 proibia o Estado de legislar sobre trabalho. O privatismo na ordem social tinha bases constitucionais. A primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, vedava à União legislar sobre o direito do trabalho, previdência social e saúde. A alegação de nossas elites era de que isso era necessário para garantir a autonomia dos Estados. Na verdade, a chamada “política dos governadores” e suas teses autonomistas disfarçava a resistência da burguesia brasileira em estabelecer normas mínimas de proteção do trabalho. No período de 1888 a 1930, portanto, o que prevaleceu em nosso país foi uma total informalidade no mercado de trabalho. Inexistiam leis trabalhistas e contratos coletivos de trabalho reconhecidos pelo patronato. Nem mesmo o contrato de locação de serviços, previsto no Código Civil, era respeitado. A admissão, as condições de trabalho e a demissão eram acertadas oralmente, não tendo o trabalhador garantia no emprego, aviso prévio e nenhuma indenização mesmo que já tivesse muitos anos no emprego. Eram comuns os atrasos de salários e não se tinha nenhum instrumento legal que obrigasse o patrão a efetuar o pagamento. Uma das maiores reclamações presentes nas resoluções de todos os congressos operários era contra as multas que chegavam a significar até a metade do salário do operário. A jornada de trabalho atingia até 15 horas diárias, e as mulheres e crianças eram submetidas a condições de trabalho particularmente duras. Em praticamente todos os ramos econômicos não havia direito de férias e nem descanso semanal remunerado. Os acidentes de trabalho eram comuns em função das péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os operários. Como inexistia saúde e previdência públicas, a situação dos trabalhadores nos momentos mais delicados de suas vidas era desesperadora. Nos casos de doença, invalidez, velhice, maternidade e morte não contavam os trabalhadores com qualquer cobertura previdenciária e de saúde nem do Estado e nem das empresas. Nessas situações ou eles tinham algumas economias pessoais, ou, como acontecia na maioria das vezes, dependiam do apoio de familiares, eram internados em asilos ou simplesmente morriam por falta de atendimento.

Liberalismo tratava a questão social como “questão de polícia”. Portanto, o Estado, amplamente hegemonizado pela burguesia agrária, se omitiu na sua tarefa de criar regulamentos básicos nas relações de trabalho que pudessem impor limites ao privatismo reinante. A rigor, em todo o período de liberalismo econômico no Brasil, foram aprovadas cinco leis trabalhistas e previdenciárias que versavam sobre o trabalho dos menores, das mulheres, sobre acidentes de trabalho, previdência para os ferroviários e uma outra, sancionada somente em 1926, mandando conceder 15 dias de férias para uma parte dos trabalhadores. Essas leis tinham alcance limitado e viraram letra morta na medida que eram descumpridas amplamente pelos patrões. Para se ter uma ideia da resistência patronal à implementação das leis trabalhistas, basta dizer que, em 1930, uma figura representativa do empresariado paulista, José Ermírio de Morais, endereçou uma carta ao Ministro do Trabalho protestando contra a lei de férias de 15 dias. São suas palavras: “Estamos certos de que V.Exa. – com a sua notável capacidade de trabalho – já procedeu ao estudo meticuloso da chamada Lei das Férias. Terá chegado à convicção de que o Instituto, além de apresentar irremovíveis dificuldades materiais de execução na parte que atinge o operariado, ainda é nitidamente antisocial, pois faz com que o trabalhador adquira hábitos de ociosidade que ele hoje não tem” (Pinheiro e Hall, 1981). Como não existia nenhum organismo estatal para supervisionar a questão trabalhista, os conflitos trabalhistas caiam na jurisdição do Código Penal, ou seja, eram tratados como simples casos de polícia. Foi Washington Luiz que, em 1920, sintetizou e tornou célebre o tratamento liberal à questão social na chamada República Velha: “Ainda por muitos anos, e eu vos falo para o minuto de um quadriênio, entre nós, em São Paulo, pelo menos a agitação operária é uma questão que interessa mais à ordem pública do que à ordem social; representa ela o estado de espírito de alguns operários, mas não o estado de uma sociedade” (José Albertino Rodrigues, 1979). Traduzindo: para as elites liberais da República Velha, a questão social era uma questão de polícia.

Liberalismo: direito do trabalho no Código Civil como “locação de serviços”. No liberalismo da República Velha, a regulamentação do trabalho, quando existia, era um assunto do Código Civil, tratado como “locação de serviços”, um contrato individual entre o trabalhador e a empresa, sem qualquer ingerência do Estado e dos sindicatos. Os interesses da livre-empresa se sobrepunham aos interesses da sociedade e aos direitos humanos: “Persistia, na época, quase como um princípio sagrado, o conceito da ‘liberdade de trabalho’, que incluía a inviolabilidade do contrato individual de trabalho, mutuamente estabelecido entre patrão e empregado e a respeito do qual nenhum poder estranho deveria interferir. A aplicação do conceito liberal resultava pura e simplesmente na omissão do Estado diante das questões do trabalho: aos interesses gerais da sociedade e da pessoa humana sobrepunham-se os interesses da empresa, que só poderia operar no regime da livre-concorrência, inclusive no que diz respeito ao mercado de mão-de-obra” (José Albertino Rodrigues, 1979).

Conquistas custaram muito sangue, muita lágrima e muito sofrimento. Desde o final do século 19, e particularmente no início do século 20, os trabalhadores resistiram ao privatismo econômico e social e realizaram dezenas de mobilizações e greves. Foram greves por empresas, por categorias, estaduais e interestaduais. Tudo isso aconteceu numa conjuntura dificílima, em que eram negadas as mais elementares liberdades democráticas, sendo que os sindicatos eram constantemente invadidos e fechados e os dirigentes eram presos e deportados. Portanto, a conquista de uma legislação trabalhista e previdenciária no Brasil foi resultado de anos de lutas dos trabalhadores e de uma conjuntura nacional e internacional que forçou as elites burguesas dominantes a aceitarem a sua inclusão nos textos legais. Não é verdade, portanto, que a legislação social, em particular a trabalhista e a previdenciária, foi uma simples outorga do Estado brasileiro e de Getúlio Vargas.(…) Para quebrar a resistência dos empresários e conquistar algumas melhorias nas condições de trabalho, foi preciso muita luta e abnegação de milhares de trabalhadores e em particular de seus dirigentes. O historiador e militante das lutas sociais do início do século 20, Everardo Dias, relatou com precisão o quadro político daquela época: “Pode-se dizer sem receio de desmentido que de 1903 a 1930, não houve sindicato que tivesse vida regular e livre de intervenções policiais. As greves declaradas  – e houve muitas nesse atormentado período – se foram bem organizadas e conseguiram as diversas corporações proletárias sair vencedoras, deve-se isso à tática dos líderes de então e ao trabalho subterrâneo e gigantesco de um grupo de abnegados e temerários operários conscientes. Os cárceres policiais sempre estiveram cheios de trabalhadores, passando por terríveis padecimentos, martirizados sem qualquer espírito de respeito pelo ser humano, expulsos do País ou então mandados para lugares onde a morte os esperava irremissivelmente, deixando a família ao desamparo. (…) Hoje, o trabalhador tem leis que lhe garantem uma porção de direitos. E disso podemos orgulhar-nos, sem dúvida. Mas tais direitos, para serem reconhecidos, custou muito sangue, muita lágrima e muito sofrimento” (DIAS, 1977).

Mulheres foram quase metade do mercado de trabalho no início do século 20 e foram gradualmente substituídas pelo trabalho masculino. As mulheres representaram no início do século 20 contingente expressivo da mão-de-obra industrial e também da População Economicamente Ativa – PEA, sendo que, em 1900, o percentual era de 45,3%. Mas esta situação reverteu-se nos anos seguintes: “Apesar do elevado número de trabalhadoras presentes nos primeiros estabelecimentos fabris brasileiros, não se deve supor que elas foram progressivamente substituindo os homens e conquistando o mercado de trabalho fabril. Ao contrário, as mulheres vão sendo progressivamente expulsas das fábricas, na medida em que avançam a industrialização e a incorporação da força de trabalho masculina. As barreiras enfrentadas pelas mulheres para participar do mundo dos negócios eram sempre muito grandes, independentemente da classe social a que pertencessem. Da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual ao assédio sexual, elas tiveram sempre de lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens – como ‘naturalmente masculino’. Esses obstáculos não se limitavam ao processo de produção; começavam pela própria hostilidade com que o trabalho feminino fora do lar era tratado no interior da família”(RAGO, 1997, páginas 581 e 582). (…) É interessante notar a hipocrisia da burguesia e de sua ideologia, que advogava o retorno da mulher ao lar, que tornou-se hegemônica na sociedade. Essa mesma ideologia não foi empecilho para a utilização massiva do trabalho feminino, de forma profundamente precarizada, no início da industrialização brasileira. As mulheres foram exploradas brutalmente, com jornadas de trabalho de até 15 horas diárias e com remuneração mais baixa para trabalho igual ao dos homens.  As poucas leis de proteção ao trabalho feminino não possuíam abrangência nacional e eram, na maioria dos casos, descumpridas.(…) Quando acelerou-se a industrialização brasileira e quando as oportunidades de trabalho e de formação profissional cresceram, as mulheres foram sendo gradativamente afastadas do mercado de trabalho, substituídas que foram pela mão de obra masculina. Depois de representar quase metade do mercado de trabalho no início do século, na década de 1920, a participação do trabalho feminino na PEA tinha reduzido para pouco mais de 15%, mantendo-se nesta faixa até a década de 1960.

Para Aziz Simão, anarco-sindicalismo foi a radicalização do liberalismo. Foram os imigrantes que impulsionaram as primeiras lutas operárias no Brasil. No período de 1871 a 1920, entraram no país aproximadamente 3,3 milhões de imigrantes, em sua ampla maioria italianos, espanhóis e portugueses. Esses homens e mulheres trouxeram para o nosso país não somente a tradição de luta sindical de seus países de origem, bem como capacidade de contestação e rebeldia admiráveis. Esse comportamento dos imigrantes não era exatamente o que esperava a burguesia brasileira quando decidiu pelo recrutamento da mão-de-obra européia. Para José Albertino Rodrigues, os imigrantes, com a experiência política adquirida na Europa, colocaram, a seu modo, a questão social na agenda política do Brasil Republicano: “Eram homens antes de tudo práticos e objetivos. Vinham possuídos de um grande espírito de proselitismo e agitavam não só os meios operários mas, direta e indiretamente, os meios intelectuais de classe média, sobretudo jornalistas, estudantes, alguns setores do funcionalismo e mesmo dos meios militares. (…) O imigrante foi o grande dinamizador da sociedade do Brasil Republicano. Contribuiu para quebrar tabus, até então imunes às críticas e às descrenças: atingiu assim a propriedade privada, o Estado, o Parlamento, o Exército e a Igreja. Essas instituições, pela primeira vez no Brasil, foram olhadas com senso crítico fora dos meios intelectuais, desmascarando-as naquilo que elas tinham de inatacáveis até então” (RODRIGUES, 1979).

No Brasil, os imigrantes foram os principais protagonistas do anarco-sindicalismo. A primeira grande greve operária no Brasil teve início no dia 1º de maio de 1907, envolvendo diversas categorias operárias de São Paulo, Rio de Janeiro, Santos e Recife, cuja principal reivindicação era o estabelecimento da jornada de 8 horas. Dez anos depois, em 1917, aconteceu uma greve geral em São Paulo que se constituiu no mais importante movimento social das três primeiras décadas do século 20, que tinha como pontos centrais de sua pauta de reivindicações: o fim da repressão ao movimento dos trabalhadores, a abolição do trabalho infantil, o fim do trabalho noturno das mulheres, a jornada de 8 horas, aumento salarial e pagamento dos salários em dia. Ainda, em 1919, aconteceu mais uma greve geral em São Paulo que, além da reafirmação das reivindicações do movimento de 1917, incluía a defesa do repouso semanal remunerado, a fixação de um salário mínimo e redução dos preços dos alimentos e aluguéis. Além do mais, em todo o período contabilizaram-se dezenas de outras greves setoriais, manifestações de rua e outras formas de luta que expressavam o inconformismo dos trabalhadores.

O anarco-sindicalismo tinha como meta uma sociedade sem governos, sem Estado, sem propriedade privada, sem leis e auto-gerida pelas federações de trabalhadores. Coerente com estas finalidades, ele se opunha ao simples registro dos sindicatos em Cartórios e as conquistas coletivas transformadas em leis e contratos coletivos de trabalho, sob o argumento de que isso implicava a institucionalização da exploração do trabalho. Para Azis Simão, o anarco-sindicalismo, com sua ênfase nos direitos e liberdades individuais e sua concepção anti-estatista, representava uma extremação do próprio liberalismo: “O anarquismo – ideologia predominante na maior parte daquele período sindical – representa a extremação do liberalismo elaborado na luta contra o poder absoluto. Enquanto a burguesia dominante se restringiu a limitar as atribuições de governo, os anarquistas se propuseram extinguir de vez todo o sistema dominação, como imperativo do pleno gozo das liberdades individuais. Daí rejeitarem qualquer norma oficial para o sindicato, mesmo quando referente ao seu simples registro como sociedade civil”. (…) Os obstáculos antepostos à continuidade do anarco-sindicalismo não surgiram apenas das mudanças ocorrentes na estrutura industrial, ainda ligeiras no fim do período considerado. Resultaram também da difusão de concepções estatais da ordem sócio-econômica e do inicial alargamento do poder do Estado, mesmo em países subdesenvolvidos, abarcando o sindicato e alterando condições de existência da sociedade liberal, em que o anarquismo se firmava como posição ideológica extrema” (SIMÃO, 1966).

Elites “aceitaram” reformar o capitalismo: “ceder os anéis para não perder os dedos” ou “façamos a revolução antes que o povo a faça”. No começo do século 20, ocorreram dois episódios no mundo que marcaram profundamente a vida social brasileira. O primeiro foi a Revolução Russa, que propugnava por uma transformação radical na sociedade de caráter socialista, sendo que a influência deste processo em muitos países, inclusive no Brasil, foi enorme. O segundo episódio que influenciou muito a política brasileira foi o Tratado de Versalhes, em 1919, patrocinado pelos principais países capitalistas, quando o nosso país foi levado a subscrevê-lo, assumindo, assim, compromissos com uma maior regulamentação do trabalho e associando-se à recém criada Organização Internacional do Trabalho – OIT. Foi nesse clima que o Congresso Nacional brasileiro tornou-se mais sensível à discussão da questão social. Aumentaram significativamente os pronunciamentos e as iniciativas legislativas. Os pouquíssimos parlamentares comprometidos com os trabalhadores passaram a contar com uma maior audiência. Pressionada por tremendas agitações internas e por uma conjuntura internacional marcada por revoluções sociais, a burguesia brasileira, a contragosto, “aceitou” realizar algumas mudanças no liberalismo econômico então vigente. Em 1926, uma Emenda à Constituição de 1891 finalmente previu que ao Congresso Nacional competia “legislar sobre o trabalho e sobre licenças e aposentadorias”. Estava encerrada, pelo menos em termos jurídicos-legais, o longo período de liberalismo econômico puro, onde o trabalho, a saúde e a previdência social eram tratados como fatores de mercado quaisquer.

Portanto, a introdução da legislação social no Brasil não foi uma simples outorga do Estado como alguns afirmam, pois isso negaria mais de 30 anos de lutas sociais por sua conquista. Não foi somente uma conquista unilateral dos trabalhadores, pois sua aprovação dependeu da concordância do Poder Executivo e do Legislativo, onde era escassa a presença da esquerda, além da existência de um contexto internacional favorável. E não foi resultado também, como defendem certas teses economicistas, das meras exigências da industrialização, já que o capitalismo pode sim conviver com a ausência de direitos sociais. No Brasil, assim como em todo o mundo, as reformas tiveram um caráter contraditório: foram resultado da pressão dos trabalhadores, através de suas mobilizações e greves, e foram “aceitas” pelas elites burguesas, majoritárias no Parlamento e no Executivo, como forma de estabilizar a ordem capitalista. Representou a típica política de “ceder os anéis para não perder os dedos” ou “façamos a revolução antes que o povo a faça”.. Foi essa tese que justificou a introdução no Brasil da legislação previdenciária e trabalhista.

A implantação de uma ampla legislação trabalhista a partir da Revolução de 1930, que foi consolidada na CLT. A revolução de 1930 encerrou o período de liberalismo nas relações de trabalho no Brasil. No período entre 1930 e 1943, implementou-se no Brasil uma ampla legislação trabalhista. Dentre os principais pontos, podemos citar: a nacionalização do trabalho, através da exigência de dois terços de trabalhadores nacionais em cada estabelecimento; novas modalidades para a concessão de férias remuneradas; duração da jornada e quadro de horários de trabalho para diversos segmentos dos trabalhadores; duração da jornada de trabalho em quaisquer atividades privadas; condições de trabalho das mulheres e menores; carteira profissional; convenção coletiva de trabalho; direitos referentes a acidentes do trabalho; salário mínimo; remuneração aos convocados para o serviço militar; indenização nos casos de demissão sem justa causa; instalação de refeitórios nos estabelecimentos industriais; e adoção de diversas convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Como forma de institucionalizar a presença do Estado nas questões do mundo do trabalho, foram criados o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a Justiça do Trabalho. Segundo Azis Simão, muitas dessas leis beneficiaram inicialmente apenas algumas categorias e transcorreu algum tempo para que fossem estendidas a todos os trabalhadores. Também lapsos de tempo grandes se formaram, em muitos casos, entre uma lei, a sua regulamentação e efetiva implementação. Somente em 1943 foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, que compilou, reformou e ampliou a legislação aplicável a todo o trabalho urbano. Ficaram excluídos da legislação celetista os empregados domésticos, os funcionários públicos e os trabalhadores rurais. A CLT consolidou, portanto, o modelo trabalhista que vigorou até os dias atuais: uma ampla legislação trabalhista, que é um piso de direitos, complementado pela negociação coletiva para ampliar os direitos mínimos previstos na lei.

As conquistas trabalhistas pós-CLT. No intervalo democrático de 1945 a 1964, as principais conquistas trabalhistas foram: o descanso semanal remunerado; o descanso remunerado nos feriados; diversos aumentos expressivos do salário mínimo, que atingiu o seu maior valor em toda a história; a gratificação de natal (13º salário), que demandou muitos anos de luta; e com alguns anos de atraso foi aprovada uma legislação trabalhista mais completa e ampliada para os servidores públicos civis e para os trabalhadores rurais. A obra legislativa da ditadura militar foi a supressão da estabilidade no emprego e sua substituição pelo FGTS, o início de regulamentação do trabalho doméstico, a regulamentação das condições de trabalho de algumas categorias profissionais, a introdução do Fundo PIS-PASEP e do Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT. Nas décadas de 1970 e de 1980 retornaram as grandes greves operárias, emergiu um forte sindicalismo de classe média, reconstruiu-se o movimento dos aposentados e pensionistas, foi fundada a Central Única dos Trabalhadores – CUT, movimentos esses que deram um forte impulso a novas conquistas trabalhistas. No governo José Sarney foram implementados o seguro-desemprego e o vale-transporte. Na Constituição de 1988, foram promovidos avanços expressivos nos direitos trabalhistas: redução da jornada de trabalho para 44 horas semanais; jornada de 6 horas diárias nos turnos ininterruptos; licença-paternidade de cinco dias; horas extras passaram a ter acréscimo de 50%; um terço de acréscimo nas férias; aumento da licença gestante para 120 dias; aumento do período de prescrição dos direitos trabalhistas para cinco anos; aumento da multa na rescisão de contrato de trabalho para 40% do FGTS; estabilidade da gestante; equiparação dos trabalhadores rurais aos urbanos; extensão de diversos direitos trabalhistas aos servidores públicos e aos empregados domésticos; além de um conjunto de outros direitos que dependem de regulamentação. Nos governos Lula e Dilma, o projeto do fim da CLT foi arquivado; aconteceu uma revitalização do emprego de carteira assinada, com a abertura de 20 milhões de postos de trabalho formais; o fortalecimento das negociações coletivas e com os avanços nos acordos e convenções coletivas; os aumentos reais expressivos do salário mínimo; e a equiparação dos empregados domésticos aos demais trabalhadores.

A CLT adotou um sistema hibrido, que combina um modelo legislado às negociações coletivas. Há muito se repete que o ordenamento jurídico consagrado na CLT não teria passado de um decalque mal disfarçado do sistema fascista italiano de relações de trabalho. Ao atribuir à CLT uma identidade fixa e congelada em um dado momento da história, construiu-se todo um encadeamento de conceitos que confunde fascismo, corporativismo, legislação trabalhista e Justiça do Trabalho, imputando-lhes propriedades e significados políticos idênticos.(…) O “sistema brasileiro” de relações de trabalho foi elaborado a partir de um conjunto complexo de influências internacionais, com inspirações na Constituição da República de Weimar (1918-1919), nos princípios da Organização Internacional do Trabalho, OIT, (que desde sua constituição, em 1919, reconhece a assimetria das relações entre capital e trabalho), nos arranjos corporativistas e no catolicismo social (doutrina social da Igreja Católica, conforme as Encíclicas Rerum Novarum, 1891 e Quadragesimo Anno, 1931), no New Deal estadunidense (1933-1937)1 e no poder normativo das cortes trabalhistas australianas. Mas, acima de tudo, nosso modelo foi adquirindo contornos específicos com base nas tradições de lutas dos trabalhadores por direitos, que remontam às primeiras décadas do século XX. Tal conformação institucional sobreviveu a diferentes conjunturas políticas e foi apropriada e adaptada pelos trabalhadores para finalidades nem sempre idênticas àquelas para os quais foi criada. A judicialização dos conflitos, por exemplo, não eliminou a ação direta e a negociação coletiva com os empregadores. Ao mesmo tempo, tal judicialização influenciou a classe trabalhadora também no aspecto cultural e discursivo, constituindo um idioma de direitos políticos e sociais. Leis, direitos e justiça conformaram uma arena de conflitos e de representação de interesses, além de um espaço no qual a CLT foi sempre objeto de diferentes interpretações e apropriações.(…) Ao fim e ao cabo, a CLT adotou um sistema hibrido, que combina um modelo legislado às negociações coletivas, válidas desde que respeitadas as regras de proteção ao trabalho. É importante destacar que a dimensão legislada foi sendo adaptada aos diferentes contextos políticos que o Brasil atravessou desde a década de 1940 até ser finalmente constitucionalizada na Carta Cidadã de 1988. (CESIT)

Os argumentos atuais em nome da “reforma trabalhista” pretendem-se “novos” e “modernos”, mas deitam raízes em uma longa história. Não têm sido poucos os embates que a CLT tem enfrentado. Apesar deles e das transformações pelas quais tem passado, com muitos de seus dispositivos originais alterados e flexibilizados, ela resiste. E resiste porque densamente imbricada na tessitura social brasileira e em conexão com as necessidades sociais do tempo histórico em que foi elaborada e permanentemente reatualizada.(…) Os argumentos atuais em nome da “reforma trabalhista” pretendem-se “novos” e “modernos”, mas deitam raízes em uma longa história. Antes da “invenção” do direito do trabalho na segunda metade do século XIX e, portanto, antes do surgimento da maquinaria regulatória das relações de trabalho, o trabalho era tratado como mercadoria e fator de produção no interior do pensamento econômico liberal. Triunfou o que Robert Steinfeld (1991) chamou de “ideologia do trabalho livre”. O idioma do trabalho livre foi instrumentalizado para impedir qualquer intromissão do poder público nas relações de trabalho, em nome da vontade dos contratantes, supostamente livres e iguais para celebrarem acordos de caráter privado, sem mediações estatais. Desse modo, a relação entre empregado e empregador aparecia como uma troca voluntária entre sujeitos iguais, numa operação contratual inscrita na ordem privada. A “liberdade da pessoa” constituía a credencial para a liberdade de fixação de contratos individuais de trabalho, de acordo com o pressuposto do acesso ao mercado por meios não coercitivos. Postulava-se, assim, o primado da autonomia das vontades, sobre a qual se erigia a força obrigatória dos contratos privados. Na medida em que a “questão social” era formulada com base na concepção do acesso livre ao mercado, segundo a crença no mercado autorregulado como princípio fundante e organizador da sociedade, o trabalho e o trabalhador eram pensados a partir do direito civil, ou assistidos por meio da tutela, da filantropia e da beneficência privada. O social aparece, nessa perspectiva, definido pelo mercado e não pelo campo do político; as relações entre os homens são determinadas pela necessidade, pelo interesse e pelos valores mercantis. (CESIT)

O Direito do Trabalho passou a conferir caráter público às relações sociais desenvolvidas na esfera privada, colocando-se na contramão do contratualismo liberal ortodoxo. Segundo Polanyi (1980), a chave do sistema institucional na ordem liberal estava nas leis ditadas pelo mercado, definidas empiricamente como contratos reais entre vendedores e compradores sujeitos à oferta e à procura, sob a intermediação do preço. O solapamento dessa ordem repousou no reconhecimento de que o estabelecimento de um sistema de mercado auto regulável não passava de uma tentativa utópica e ilusória. Fundamentado em princípios forjados no campo das lutas sociais, o direito do trabalho emergiu como um ramo novo do Direito, promovendo mudanças no interior do campo jurídico e do pensamento social que levaram o Estado a intervir nas relações econômicas e sociais. Assim, a via legal e jurídica de regulação do trabalho teve início no final do século XIX em vários países europeus, com o objetivo de substituir o direito da força pela força do direito, em um processo que se completou no século XX. Partindo da compreensão da desigualdade como elemento fundante da relação capital e trabalho, o direito do trabalho buscou limitar o arbítrio privado patronal e “civilizar o capital”, instituindo normas de ordem públicas irrenunciáveis e inafastáveis pela vontade individual das partes visando, assim, a compensar minimamente essa desigualdade. Ao longo desse processo, a concepção mercantil e patrimonial do trabalho foi substituída pela percepção do trabalho como algo inseparável da pessoa do trabalhador, cravando nas relações contratuais privadas a força do estatuto público, a norma jurídica, seja na figura das leis, da jurisprudência ou dos costumes. Os acordos entre trabalhadores e patrões por meio da intermediação dos sindicatos e entes públicos passaram a constituir um contraponto ao papel jogado pelo contrato individual, em que, em regra, prevalece o arbítrio patronal. O trabalhador foi, assim, tornando-se sujeito de direitos trabalhistas, na medida em que as prerrogativas de representação e ação coletivas (formação de sindicatos, direito de greve e liberdade de contratação coletiva do trabalho) podiam ser conquistadas e asseguradas. Em suma, o Direito do Trabalho passou a conferir caráter público às relações sociais desenvolvidas na esfera privada, colocando-se na contramão do contratualismo liberal ortodoxo. No lugar de direitos e deveres definidos em termos individuais, a lei passou a definir salários e condições de trabalho. Reconhecia-se o trabalhador como parte integrante de um coletivo dotado de estatuto social a ultrapassar a dimensão individual do contrato de trabalho. Desse modo, o reconhecimento público de direitos, sob um conjunto de normas mais ou menos uniformes, contribuiu para forjar sentimentos de pertença a um grupo social. (CESIT)

No Brasil, a Constituição de 1988 elevou os direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais. No Brasil, o processo de instituição de uma regulação social protetora foi tardio. Com o dinamismo da economia nucleado pela expansão da acumulação cafeeira, as grandes fazendas monocultoras faziam uso da mão-de-obra escrava. Ao ser introduzido o trabalho “livre”, no processo de substituição do braço escravo pelo do colono imigrante, fez-se necessária uma “boa lei de locações” que, com suas “parcerias” e o envolvimento das famílias dos parceiros no processo produtivo, barateou o custo do trabalho. Consolidava-se, assim, a exploração da uma mão-de-obra barata, em uma sociedade cujo tecido era costurado com o signo da desigualdade. A Abolição livrou o país de seus inconvenientes, mas, quanto aos negros, não houve qualquer política pública que os integrasse à sociedade. Por outro lado, as políticas de imigração acirravam o problema da existência de uma massa marginal, com seu inegável potencial reprodutor de conflitos.(…) A industrialização capitalista recorreu historicamente a diversos arranjos institucionais para lidar com as relações de trabalho e os conflitos delas decorrentes. Ainda que antes de 1930 houvesse leis esparsas dirigidas ao trabalho, foi a partir de 1930 que, de forma sistemática, foram adotados no Brasil diversos mecanismos públicos de regulação e proteção social do trabalho que a Justiça do Trabalho, prevista na Constituição de 1934, criada em 1939, implantada em 1941 e integrante do Poder Judiciário a partir de 1946, passou a ter o dever de concretizar e dar eficácia. A regulação consolidada em 1943 pela CLT, publicada no dia 1º de maio de 1943 para viger a partir de novembro daquele ano, culminou com a Constituição de 1988, que elevou os direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais. (CESIT)

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