“o diálogo deveria ser o cimento do significado compartilhado, a cola que une as pessoas, ingrediente fundamental para uma cultura da paz”. David Bohm, cientista e físico (1917-1992).
Na atualidade existe um fértil campo de pesquisa que busca analisar e responder os efeitos dos atos humanos violentos que atentam contra a natureza e sistematicamente contra os princípios fundamentais de sua própria existência. Pensadores do período moderno abriram caminho à essa reflexão sistematizando as indagações que o tempo da razão posto foi traçando a respeito das ações e sentimentos do ato de ser e estar no mundo. As ciências humanas, com destaque aqui para a filosofia, e naturais permitiram expressar pelo veio científico, o que até então era sentido pela observação no terreno da especulação. O presente artigo busca abordar brevemente o itinerário da violência e seus efeitos no espaço escolar.
A violência é manifestação da busca de equilíbrio na afirmação do homo sapiens em sua construção biopsíquica e social, negada ou afirmada em sua historicidade. Longa foi sua travessia na afirmação enquanto espécie, diferenciando-se por sua característica teleológica, permitindo intervir sobre os limites que a natureza lhe apresentava na busca de satisfação de suas necessidades, transformando a natureza e a si mesmo, essa ação por sua vez nunca foi pacífica. Sobre esse ponto de vista Francisco Rafael, estudante de engenharia de software, em um papo de cozinha corrobora “sabe quanto tempo o primata em sua fase de transição para homo sapiens passou correndo na natureza hora defendendo-se e hora atacando? Isso de alguma maneira foi incorporado ao seu desenvolvimento psíquico”.
A violência está presente em todos os períodos históricos numa dinâmica de produção e reprodução da vida em sociedade, construindo e reconstruindo sua perspectiva no terreno da objetividade sociocultural. A saga do humano ter chegado até nossos dias tem sido descrita por autores variados: Thomas Hobbes (1588-1679), em seu livro o Leviatã, aponta o estado de guerra natural, indica sua superação através do Pacto Social com a instituição do soberano; Sigmund Freud (1856-1939) em neuroses de transferência trata das pulsões agressivas que surgem durante a fase do complexo de Édipo. Na linha de Freud, Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) trata como identificação narcísica, primeira individualização do sujeito; Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em seu Contrato Social, trata o humano como bom selvagem, que nasce íntegro e moralmente reto mas é corrompido pela sociedade; Immanuel Kant(1724-1804) atribuiu a origem do mal ao Livre Arbítrio de acordo com pretensões e vontades; Karl Marx(1818-1883) afirma ser a violência a parteira de toda história.
Nas veias do atual período histórico tornou-se visível ao alcance de todos os males gerados pela violência humana, que alimentam a instabilidade social e comprometem as perspetivas individuais e coletivas.As crianças e os jovens, em particular, são as principais vítimas desse cenário. A juventude por sua vez, ainda recebe os impactos dos encantos da solidão tecnológica, ao mesmo tempo em que enfrenta a negação de seus direitos fundamentais, tais como educação de qualidade, espaços adequados para a convivência social e oportunidades no mercado de trabalho. Em meio a isso é impulsionado pela incerteza sobre o futuro, cada vez mais complexo isolando-se da convivência social e política.
O avanço da tecnologia e de seu acesso, tem gestado uma legião de indivíduos conectados com um universo veloz e atrativo de informações. Crianças e adolescentes conectados sem orientação, sendo que no último período há uma pauta forte alimentada pelo discurso de ódio e bullying. Sobre esse assunto a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP, 2019) destaca, “o avanço da tecnologia apresenta benefícios, mas também riscos para a saúde. O uso excessivo de dispositivos eletrônicos por crianças e adolescentes pode prejudicar o desenvolvimento deles e afetar o sono, o aprendizado, o sistema hormonal, estimular o sedentarismo, entre outros problemas”.
A juventude tem sido a principal vítima desse quadro de intolerância e desprezo pela vida que atravessamos, predomina nas estatísticas de ceifamento desse desarranjo conduzido pela conduta moral da estrutura de classes da atual fase do capitalismo. Segundo o Boletim do Ministério Público de Goiás, 2021: “entre 2016 e 2020, foram identificadas pelo menos 1.070 mortes violentas de crianças de até 9 anos de idade. Em 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19, foram 213 crianças dessa faixa etária mortas de forma violenta”. No total de crianças de até 9 anos mortas de forma violenta, 56% eram negras; 33% das vítimas eram meninas; 40% morreram dentro de casa; 46% das mortes ocorreram pelo uso de arma de fogo; e 28% pelo uso de armas brancas ou por “agressão física”.
A violência entre muros: os desafios pedagógicos
Quando os 47,3 milhões de alunos adentram diariamente os muros das 178,5 mil escolas públicas e privadas carregam em suas mochilas a constituição da vivência social, a apresentam ao processo pedagógico numa dialética de aprimoramento pela via do oferecer, do fazer e do desenvolver. As regras e os valores ali encontrados os conduzem aos comportamentos vitais da dinâmica social coletiva. Os espaços escolares devem ser, assim, o lugar onde experimentem o inusitado, criem e recriem o conhecimento abstraído de seu tempo histórico-cultural, dando sentido à vida coletiva, como diz Cecília Meireles: “reinventando-a”, no experimento das contradições de suas expressões.
As escolas acolhem uma grande parcela de crianças e jovens assentadas em carências afetivas diversas, dentre elas a familiar, nesse contexto, o interior das escolas refletem os problemas da estrutura social. Por serem espaços coletivos, essas instituições tornam-se palco para manifestações de desafios, dificuldades de sobrevivência e afirmação, que por vezes se expressam em ações que contradizem as determinações da dinâmica pedagógica, dificultando as realizações e encantos pela vida que ali se busca cultivar. Especialistas ouvidos pela DW (Emissora Internacional de notícias e informações da Alemanha, com sede em Bonn e Berlim) foram unânimes em afirmar “que, num país desigual e com altos índices de violência, tanto na esfera pública quanto na privada, as escolas só espelham uma dinâmica que já existe na sociedade”.
Os fenômenos violentos que ocorrem no interior das escolas não são originários, a priori, de seu chão geográfico, mas adentram seus muros como parte da constituição dos sujeitos, expressam as anomalias de um país violento e desigual, por isso não devem ser tratados somente nos limites do processo didático-pedagógico, requer ampla reflexão de como a escola pode contribuir para o futuro de nossas crianças e jovens, para além das estatística do IDEB, pois são eles o fermento da sociedade das realizações humanas numa visão de seus desafios universais. A escola precisa desenvolver regularmente ações interdisciplinares, com envolvimento dos recursos internos e para além de seus muros, dentre eles, a participação da comunidade escolar, numa reflexão permanente sobre si e para além de si.
A violência no interior das escolas integra os desafios pedagógicos desde sua fundação, mas é difícil a compreensão da força que se manifesta pelos caminhos do século XXI. Expressa uma dificuldade objetiva de conviver com o outro, de compartilhar de valores universais que permitam tramitar pelos caminhos da existência de forma coletiva. No processo de transmissão da cultura herdada de forma sistematizada adequada as exigências dos tempos atuais, a escola deve atuar lapidar a interioridade humana para enfrentar os desafios de sua objetividade social, a isso Edgard Morin,2000, diz, “seria preciso ensinar princípios e estratégias que permitiriam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude das informações adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza.”
A máxima de ser a escola o lugar para educar, reduz o olhar para entendimento de ser ela o espaço para onde conflui a diversidade, da adequação permanente dinâmica pedagógica aos desafios da geração em curso, utilizando da evolução técnico-científica para desenvolver e afirmar os princípios da escola transformadora e emancipadora. Segundo a Psicopedagoga, especializada em educação parental, Ge Gasparini,2023 “o sistema educacional brasileiro ainda é muito focado em competição, enquanto as características cognitivas individuais e o aspecto emocional ficam em segundo plano. Ao negligenciar as próprias emoções e necessidades em nome de entregar aquilo que outros esperam deles, esses jovens acabam deprimidos e ansiosos”. Gasparine, defende uma abordagem pedagógica nas escolas que ajude esses jovens, desde a infância, a ter clareza sobre os próprios sentimentos e a lidar com eles de uma forma mais saudável.
A prevenção é o caminho mais eficaz, mas é construído pela lógica do persistir , do afirmar cotidianamente, fato esse que requer o envolvimento de atores capacitados em e que desenvolvam estratégias que alcance os fatores causadores e alimentadores da violência que por vezes apresentam-se de forma silenciosa, por vezes perceptível, na essência se constituem na incapacidade de olhar-se no outro, do repúdio ao pluralismo e as diferenças, nesse sentido o corpo pedagógico precisa intervir para reduzir seus efeitos no interior da escola, a UNESCO,2019 aponta que: “a violência escolar compromete a saúde e o bem-estar dos indivíduos. Ansiedade, depressão, estresse, irritabilidade e pensamentos suicidas são algumas das consequências associadas ao problema na literatura. A violência é apontada, também, como uma das causas do baixo desempenho e do fracasso escolar, da infrequência e da evasão”.
Nesta seara tem papel importante os Conselhos de Segurança Escolares (Consescs), com presença destacada da Guarda Civil Municipal, que atua através da Patrulha Escolar associado com o trabalho de inteligência. A Guarda Civil Municipal deve estar presente no dia a dia da escola, desempenhando papel ativo e próximo da comunidade escolar. Destacamos a importância dos fundamentos do Projeto Escola Viva, criado em Contagem pelo Decreto 4.335/2010, que abriga hoje o projeto Para Além dos Muros, também o Projeto Anjos da Escola criado em 2014 pelo Guarda Civil, que estabelece uma relação efetiva Comunidade Escolar/Guarda Civil para além da atuação em atos infracionais. O projeto propõe um agente de segurança amigo e protetor, cuja função principal é garantir a segurança atuando preventivamente por meio de suas prerrogativas constitucionais.
As ações de prevenção a violência não devem ser roteirizadas nos fenômenos midiáticos ou comoventes, é preciso admitir que ela existe, que se encontra ali, advinda de fora dos muros, das adversidades sociais de um país com alto índice de desigualdade e exclusão social. Assume fisionomias diversificadas no conjunto da comunidade escolar, fato que requer tratamento intersetorial, com envolvimento universal dos profissionais que atuam na escola, devidamente capacitados para identificar e atuar de forma preventiva, tendo na centralidade o diálogo duro e terno, que segundo o físico David Bohm, “deveria ser o cimento do significado compartilhado, a cola que une as pessoas, ingrediente fundamental para uma cultura da paz.”
Prevenir é a lógica do antecipar, lançar olhar crítico e fecundo sobre as lacunas que dificultam seguir em frente, abrigadas na historicidade do sujeito, que em muito dificultam uma abertura pra incorporar princípios universais, elementares da cultura de Paz, definida pela ONU,1999,“como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilo de vida baseados no respeito pleno à vida e na promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, propiciando o fomento da paz entre as pessoas, grupos e as nações”.
O fazer pedagógico, no contexto da escola, deve elaborar um programa de resolução do conflito, de natureza mediadora fornecendo ao conjunto as ferramentas para o exercício da cultura de paz, importante as práticas restaurativas afirmadas por NUNES (2018), do Conselho Nacional do Ministério Público, tendo como objetivos principais: “Auxiliar na segurança da comunidade escolar por meio de estratégias que visam à construção de relacionamentos; Capacitar os sujeitos da escola para assumirem a responsabilidade pelo bem- estar dos seus membros; Desenvolver competências e habilidades pró-sociais, fortalecendo a personalidade de cada um; Ajudar na tomada de decisões coletivas; Trabalhar valores humanos essenciais, tais como: participação, respeito, responsabilidade, honestidade, humildade, interconexão, empoderamento e solidariedade”.
Compreender o ser humano na historicidade de nosso tempo é de fundamental relevância para contribuir no processo educativo da geração em atual. Trata-se de uma tarefa coletiva, que exige o engajamento de todos para compreender as dinâmicas sociais e culturais que moldam o presente e orientam o futuro. Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido afirma “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediados pelo mundo, se libertam em comunhão”. A regência da dialética desse fazer pedagógico está nas mãos dos que tenham coragem de sonhar, de esperançar, de se interligar por meio das energias do abraço, da esperança coletiva, que mediatiza sonhos no curso da jornada social e política onde se realizam as aspirações humanas.
José Rodrigues da Silva é graduado em Filosofia, Sociologia e História. Pós-graduado em Segurança Pública e Direitos Humanos, Meio Ambiente e Sustentabilidade, Psicologia do Esporte e Gestão em Segurança Pública.