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Valor Econômico: Emenda parlamentar cresce e afeta controle sobre o Orçamento

Participação de deputados e senadores na definição das despesas discricionárias saltou de 4% para 16,7% em dez anos, aponta Ibre

Valor Econômico, 24/04/2024

As emendas parlamentares no Orçamento federal se avolumaram na última década. O total de emendas autorizadas para 2024 soma RS 44,67 bilhões, quase sete vezes os R$ 6,4 bilhões empenhados em 2014, em valores nominais. A fatia de emendas parlamentares no total de despesas discricionárias empenhadas saltou de 4% em 2014 para 16,7% em 2023.

Em meio ao debate do ajuste fiscal, o quadro tornou cada vez mais relevante a necessidade de o governo negociar com o Congresso a destinação de recursos das emendas para cumprir regras orçamentárias, legais e constitucionais, levantando a preocupação sobre governabilidade. A volta a um passado com poucas emendas no qual o Executivo controlava a execução, num modelo que permitiu o chamado presidencialismo de coalizão, porém, não é algo realista, avaliam Manoel Pires, coordenador do Centro de Orçamento e Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), e Carolina Resende, pesquisadora do mesmo centro.

“É muito difícil voltar ao que era. A experiência de democracias mais avançadas, com processos orçamentários fortalecidos, mostra papel muito mais relevante do Poder Legislativo em coordenar políticas públicas com o Executivo do que o que vemos aqui”, compara Pires. “O interesse do Legislativo em avançar no orçamento é compreensível, faz parte da democracia. A questão é a forma. É mais construtivo entender que o Congresso quer participar e definir mais claramente seu papel na gestão orçamentária do que tentar voltar ao passado.”

Para Pires, é válida a crítica de que o grande volume de emendas gera descoordenação na ação pública porque os gastos não são alocados em programas estruturados. Isso, explica, se insere no contexto de rigidez orçamentária cada vez maior, com aumento de despesas obrigatórias. “À medida que a despesa discricionária cai, o Legislativo quer se proteger buscando elevar o nível de obrigatoriedade das emendas.” Por outro lado, diz, também é papel do Congresso definir prioridades orçamentárias, o que confere legitimidade política ao orçamento público. É preciso, diz, achar um ponto de equilíbrio.

Para Pires, o parlamentar hoje tem visão “itenizada”. “Num processo amadurecido, o Congresso participa da definição das políticas públicas, inclusive de metas e prioridades. No Brasil o parlamentar quer garantir o asfalto em um município. Discute-se o microcosmo.” Isso, reconhece, Pires, se reflete nas chamadas emendas paroquiais, com alocação de recursos para manter apoio de bases eleitorais.

Outro ponto, diz, é que existe uma visão distorcida do significado de impositividade orçamentária. “Num orçamento impositivo é no processo orçamentário que os “trade offs” são resolvidos, e as restrições, obedecidas. Quando o Orçamento é definido, cabe ao Executivo executá-lo. No Brasil o Orçamento é autorizativo, o que confere ao Executivo poder que não existe em processos convencionais. Cabe ao Executivo executar o Orçamento e definir políticas.”

Por isso, diz Pires, a impositividade virou garantia para o Congresso fazer determinadas despesas e se proteger dessa arbitrariedade. “Ficamos no pior dos mundos. Não se define as prioridades alocativas do Orçamento dentro das restrições existentes para conferir ao Executivo apenas o poder de executar. E as emendas criam rigidez cada vez maior. Essa visão de impositividade orçamentária precisa ser corrigida.”

O tamanho do problema já é grande, mostra levantamento de Pires e Resende. “Saímos de um modelo que custava R$ 6 bilhões em emendas em 2014 para o que está hoje, ao redor de R$ 35 bilhões a R$ 40 bilhões anuais”, diz Pires. Ele lembra que dos R$ 44,67 bilhões em emendas autorizadas para 2024, RS 5 bilhões foram vetados, embora seja esperada a derrubada do veto. Mas há também uma ineficiência de execução que deve levar o valor de 2024 para algo perto do observado nos últimos anos. Em 2023 foram RS 35,38 bilhões em emendas empenhadas.

“Com o processo de instabilidade e fragmentação democrática dos últimos anos observamos que houve elevação do piso de barganha no nosso presidencialismo de coalizão e as emendas parlamentares refletem isso”, diz Resende.

O aumento no volume de emendas vem de longo processo. Pires aponta a Resolução do Congresso Nacional 2/1995, que trouxe a concepção original das emendas. Elas, explica Rezende, estavam divididas em dois tipos: as individuais, que eram 20 por parlamentar, mas a execução dependia de negociação com o Executivo. Também havia as emendas coletivas: de bancada ou de comissão, com viés mais estruturante e volume de recursos maior. Havia limite de emendas, mas nessas também não tinha obrigatoriedade de execução. “Dada a natureza autorizativa do Orçamento, a execução ficava com o Executivo, o que deu origem ao presidencialismo de coalizão. A partir dessas emendas se estruturava apoio político aos projetos do Executivo.”

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), diz Pires, foi importante ao regular o contigenciamento de despesas. Até 2001 o Executivo decidia isso livremente. A LRF estabeleceu que só se pode contingenciar se a meta fiscal não for obedecida.

Disso, lembra Pires, resultou o “tax-and-spend”, ou “tributar para gastar”. “Basicamente nos anos 2000 a economia cresceu bastante e as receitas cresciam mais do que se esperava. O governo definia as metas fiscais, inflava a receita no Orçamento e fazia o regramento da meta a partir da execução.”

Naquele período, diz Pires, as metas fiscais foram cumpridas com facilidade e o Congresso conseguia o que queria em termos de valor de emendas. “Muitas vezes ele não precisava de emenda. Como o governo conseguia financiar a política pública, o Congresso se beneficiava indiretamente. A alta popularidade gerada pelas políticas do governo beneficiava o parlamentar que o apoiava.”

Mas o modelo se fragilizou desde 2011, com a desaceleração econômica, diz Pires “Governo e Congresso continuam inflando receitas e não resolvem o conflito distributivo no processo orçamentário. As receitas já não surpreendem para cima e durante a execução, para obedecer as metas, o governo começa a contingenciar muito.” Em 2011 e 2012, lembra, esses bloqueios atingem recordes.

“Os contingenciamentos começam a afetar emendas parlamentares de forma desproporcional em relação às demais despesas do Executivo. Quando isso fica evidente para os congressistas, surge um conflito distributivo muito maior”, observa Pires. Entre 2012 e 2015 são sucessivos contingenciamentos, principalmente de emendas.

 

 

 

 

 

Por volta de 2013/2014, lembra, o Congresso pressiona o governo para reduzir os bloqueios. Isso resulta na EC 86/2015 estabelecendo que 1,2% da Receita Corrente liquida (RCL) devia atender emendas individuais, já com certa impositividade: o governo só poderia contingenciá-las na proporção do bloqueio de despesas discricionárias. A emenda, diz Pires, veio no governo Dilma Rousseff. O Congresso se aproveitou da baixa popularidade do governo, que aceitou porque viu na negociação possibilidade de estabelecer novas bases de coordenação política.

A nova regra da EC 86/2015 foi aplicada a partir de 2016 e isso explica o novo patamar do volume de emendas parlamentares naquele ano e seguintes, até 2019. As emendas, que representaram 6,1% das despesas discricionárias em 2014, saltam para nível acima de 12% da RCL anuais de 2016 a 2019.

Em 2019, com a EC 100/2019, surgem as emendas de bancada, correspondentes a 1% da RCL e com impositividade. “Então as emendas saltaram de 1,2% da RCL para 2,2% da RCL, considerando as individuais e de bancada.” Ainda em 2019 surgiu a EC 105/2019, que criou as transferências especiais, conhecidas como “pix orçamentária”. Essas, diz Pires, não se vinculam à RCL, mas são decididas dentro do processo orçamentário.

Outra mudança, prossegue Pires, veio na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, que estabeleceu as emendas de comissão e de relator geral, no chamado orçamento secreto. Em 2020 e 2021 as emendas ficaram acima de 33% dos gastos discricionários anuais do governo federal. A multiplicidade de eventos do período, lembra Pires, aconteceu sob governo [de Jair] Bolsonaro. “Um governo que “terceirizou” a função política de coordenar base para determinadas figuras políticas, principalmente o presidente da Câmara.”

O governo atual, diz, Pires, rompe com isso. “O governo Lula [de Luiz Inácio Lula da Silva] tenta restabelecer o modo como as coisas sempre foram feitas, de tentar trazer parlamentares para base de apoio a partir de políticas públicas desenhadas pela União. Começa uma disputa mais nítida de poder e de barganha.”

Os vários episódios desde o período de transição do governo Bolsonaro para Lula, ao fim de 2022, mostram a intensificação da disputa. Ainda na transição, o Supremo Tribunal Federal (STF), lembra, declarou inconstitucional o orçamento secreto. O governo Lula, então, negociou pagar uma parte do orçamento secreto e aumentar as emendas individuais.

A chamada Emenda da Transição (EC 126/2022) aumentou as emendas individuais de 1,2% para 2% da RCL. “Esse 0,8 ponto percentual de diferença era muito próximo à metade do valor do orçamento secreto. A outra metade foi para a programação de despesa discricionária, para voltar a recompor base de política do governo.

“Nesse aumento de orçamento discricionário é que o governo tenta trazer apoio dos parlamentares. Mas na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2023 há aumento das emendas de comissão, o que reflete o Congresso tentando recuperar valor maior das emendas”, cita. “No Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentária (PLDO) de 2024 o governo acena com a necessidade de indicar beneficiário para maior controle das emendas e o Congresso vem com cronograma de pagamento para reduzir a discricionariedade do Executivo. A partir de 2022 temos dinâmica muito mais explícita em que o governo puxa o orçamento para ele e o Congresso também tenta obter isso de volta, com maior conflito.”

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) mostra também a intenção do governo de tentar usar o Orçamento público para montar a base de apoio parlamentar. Logo no lançamento do programa, diz Pires, o governo declarou desejo de que os parlamentares indiquem programações de emendas no PAC. Além disso há as chamadas “emendas cashback”. Os parlamentares que indicaram verbas para projetos no PAC vão ganhar direito à paternidade de uma segunda emenda.

“Dentro dessa confusão se conseguirmos migrar o processo orçamentário para que o Congresso consiga obedeceras restrições e estabelecer as prioridades, teremos processo orçamentário mais forte. Sem isso só conseguimos criar mais rigidez orçamentária”, diz Pires. Ele lembra que as pressões gerais de gastos no Congresso acabam colocando qualquer limite em questão, inclusive o das despesas discricionárias. A discussão atual sobre a PEC do quinquênio para o Judiciário e a da vinculação de gastos para garantir investimentos em defesa são exemplos. “As emendas integram um combo que pressiona o fiscal fortemente. A longo prazo é difícil saber o que pode acontecer.”

O estudo traz sugestões de medidas de curto prazo para amenizar o conflito político. A primeira seria capacitar o Congresso para melhorar sua estrutura técnica.

“Hoje ele tem pouca condição de fazer a definição das emendas de forma adequada”, afirma Pires.

A segunda proposta é realizar avaliação de retorno econômico social das emendas estabelecendo critérios mínimos para inclusão no Orçamento, num incentivo para melhorá-las. Outra sugestão é regulamentar a indicação de beneficiários nas emendas de comissão, o que não é feito hoje.

É preciso também pensar, defendem, numa solução mais estruturada em que o Congresso seja dotado de condições de acompanhamento de políticas de uma forma mais recorrente tanto na elaboração do orçamento quanto na sua execução. “Muito se fala em reforma orçamentária, mas discute-se muito as regras, como uma de avaliação de despesas ou para pagamento de restos a pagar. Regras já temos muitas. A discussão da reforma precisa trazer uma nova cultura orçamentária, na qual o Congresso saiba exatamente qual seu papel e tenha condições de exercê-lo. E o governo precisa aceitar ser fiscalizado pelo Congresso, de forma que essa interação feita de forma responsável consiga melhorar a qualidade da política pública.”

Resende defende uma mudança no tom do debate. “Temos certa visão de criminalização da política. Então se olha o Congresso como incapaz de assumir suas responsabilidades no processo orçamentário. Esse processo tradicional propõe um afastamento. O retorno ao passado é de certa forma o afastamento do Congresso do processo orçamentário.” O estudo de experiências internacionais, diz, mostra que o caminho é o contrário.

“Não é com discurso de afastamento, de infantilização e de desresponsabilização e de certa forma de despolitização social que teremos avanço. Temos problemas no Congresso, mas o Congresso reflete grande parcela da nossa sociedade”, avalia Resende.

Para Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, as discussões fazem parte da democracia. “O Congresso está se manifestando mais e há deficiências alocativas, há muitas emendas descosturadas uma das outras, mas houve avanço nesses últimos 30 anos. Esse mesmo Congresso aprovou a reforma da previdência, que foi uma mostra de democracia amadurecida.”

Para Bráulio Borges, pesquisador do Ibre e consultor da LCA, o Congresso poderia ter um assessoria no sentido de aprimorar toda sua estrutura em busca de maior discricionariedade, governança e monitoramento. “Há o modelo do CBO [Congressional Budget Office], que presta serviços ao Congresso dos EUA como um todo, no sentido de avaliar políticas não somente pelos impactos orçamentários, fiscais mas também pelos macroeconômicos. A decisão política obviamente cabe ao Congresso.” Também seria importante, diz, robustecer no caso brasileiro a própria CGU (Controladoria-Geral da União), que diminuiu muito de tamanho nos últimos anos e mal consegue fiscalizar 60 a 70 municípios a cada ciclo orçamentário.

“Temos certa visão decriminalização da política” Carolina Rezende

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