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“Se me ferirem, viro fera”. A radicalidade universalista de Marília Campos

“Existe, no entanto, um limite no qual a tolerância deixa de ser uma virtude”

Edmund Burke

Há alguns dias, a prefeita Marília Campos foi a publico num desabafo e criticou duramente o governos federal e estadual, o Congresso, a Assembleia legislativa de Minas Gerais e seu próprio partido, o PT. O motivo da queixa foi a falta de sintonia entre algumas decisões deliberadas nas esferas nacional e estadual que resultam em importantes efeitos negativos para as municipalidades, sem que existam canais de conversação com os governos locais ou entendimentos prévios. Quando os prefeitos chiam, a empatia é mínima, ou nenhuma.

O tom duro da prefeita causou estranheza em algumas pessoas. “Não é esse o estilo de Marília”, me disse um integrante de nosso governo.

A estranheza tem alguma razão de ser. Marília é uma liderança conhecida por seus modos alegres, pela gentileza no trato e pela amplitude nas relações políticas que coleciona. Assertiva, a prefeita dificilmente aposta na institucionalização do conflito como via para a solução dos problemas que surgem na (e da) atividade gestora, optando, preferencialmente, pela formação de consensos e pela busca de soluções negociadas. A paciência e a tolerância, e não o destempero, são, desta forma, algumas de suas principais características. Por isso, quando Marília muda o tom é sinal que sua paciência está no limite.

Essa dimensão da práxis da prefeita de Contagem (pela terceira vez), precisa, entretanto, ser compreendida a partir de uma perspectiva filosófica mais abrangente. Do contrário, há o risco de se interpretar seu eventual mau humor com parceiros e aliados como uma mera questão de idiossincrasia, capricho ou outras veleidades pessoais. Não é.

Como militante calejada e psicóloga formada, Marília compreende que não se pode viver sem sofrer frustrações pessoais. Este postulado é ainda mais saliente na esfera política onde, pelo menos nos regimes democráticos, não há como impor uma vontade unilateral sobre as inúmeras vontades que participam dos processos de decisão.

No passado, houve quem, como Hobbes, considerasse inimaginável que a liberdade de ação e de opinião pudessem ser um direito legítimo de todo e qualquer um dos membros da comunidade. Para o autor de “Leviatã”, apenas o soberano poderia se pronunciar sobre as questões públicas e, portanto, políticas, e apenas a ele caberia autorizar as ações, quaisquer que fossem, de seus súditos. Neste caso, frente à autoridade do soberano não poderia haver dissenso legítimo. As ordens deveriam encontrar obediência pronta e a frustração na esfera política seria uma impossibilidade. [1]

Hobbes escreveu em tempos difíceis, marcados por sucessivas e duradouras guerras pelo poder na velha Europa. Tais conflitos lhe sugeriram uma visão pessimista sobre a natureza humana, tida como essencialmente destrutiva, fazendo-o acreditar que a paz entre os homens só seria possível se todos concordassem em se submeter a um poder central absoluto: o rei, “Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa”.

Não vivemos mais naqueles tempos. Uma das mais importantes conquistas das revoluções liberais do oitocentos foi a percepção pública que o poder político não é um presente de Deus ou um direito de sangue e, portanto, pode ser cobiçado e disputado.

Desde então, o campo da política passou a ser compreendido como, por definição, território de conflitos. Pensamos e agimos em colaboração uns com os outros, mas também pensamos e agimos em competição uns contra os outros, pois temos interesses, valores e visões de mundo distintos, conforme o lugar que ocupamos no mundo. “A cabeça pensa onde os pés pisam”, conforme a lição atribuída a Paulo Freire.

Nesse sentido, governar significa promover um esforço deliberado para encontrar soluções que compatibilizem nossas diferenças. Mas, isso não as elimina. Em seu livro “O Futuro da democracia“, Norberto Bobbio enfatiza que a democracia é incompatível com o consentimento unânime que o totalitarismo exige, mas que os pactos, acordos e consensos tão necessários ao jogo democrático implicam, necessariamente, em algum nível de insatisfação e na formação de minorias dissidentes. Apenas onde a discordância e o diálogo são livres é que se pode falar em real consenso e, apenas onde o consenso é real, pode um sistema ser chamado de democrático.[2]

A amplitude política, portanto, não representa, necessariamente, qualquer diluição da vontade, nem a tolerância sinaliza para a falta de opiniões firmes ou o embotamento da determinação, ao passo que paciência está longe de significar resignação. Ao contrário. A tolerância e a paciência são (ou deveriam ser) princípios morais que motivam o governante e orientam sua intervenção nas interações sociais tendo em vista a viabilização de um propósito previamente estabelecido que, do contrário, será frustrado.

Nesse sentido, podemos falar em uma paciência e uma tolerância “ativas”, em contraposição à resignação de quem, passivamente, espera por algum milagre.

No caso da prefeita Marília, o propósito previamente estabelecido que ela cultiva e que a sustenta no esforço para compor pactos e construir consensos é o bem comum. Marília tem um compromisso taxativo e inarredável, atestado por sua biografia, com um projeto humano universal e com a inclusão social como meios para a promoção do desenvolvimento e do bem-estar coletivo.

Este compromisso está filosoficamente incrustado na base de sua visão de mundo, nas relações que estabelece com os moradores da cidade, na sua luta contra privilégios e é, ademais, o que orienta o programa de governo desenvolvimentista e inclusivo que propõe para a comunidade.

Trata-se de um compromisso que guarda laços profundos com a identidade que a prefeita mantém com a cidade e seus moradores, assim como manteve, no passado, com outras comunidades.

Aqui, é possível evocar o que o filósofo contemporâneo canadense, Charles Taylor, chamou de “ética da autenticidade”, referindo-se à busca por um autêntico que não se pretende original ou inédito, mas, isto sim, se assume como verdade socialmente produzida e legitimada pela influência da vida comunitária e das relações interpessoais na formação da identidade pessoal. [3] Um autêntico que, portanto, se pretende expressão fiel da vida como ela é, e não um simulacro produzido pelas convenções sociais ou pela política profissionalizada.

Na visão de Taylor, a identidade pessoal é produzida num determinado contexto social, cultural e moral e nossa compreensão de nós mesmos está associada ao modo como compreendemos, aceitamos e incorporamos essa narrativa em nossas vidas. Segue, como consequência, que viver de forma autêntica é conciliar os próprios interesses, valores e desejos com o reconhecimento do papel das tradições, normas e instituições da comunidade em nossa vida particular. Neste sentido, a busca por um lugar singular no mundo jamais será uma aventura solitária, à lá Robinson Crusoé, mas sim uma luta pelo reconhecimento da comunidade à qual se diz pertencer. Isso exige engajamento, diálogo, responsabilidade e compromisso com os outros.

Neste ponto, é inevitável lembrar a famosa carta do professor Etevaldo Britto Dias apresentando Marília com uma mulher comum da classe média, sensível e incomodada com as injustiças sociais, sempre requisitada por grupos de cidadãos comuns que enxergam nela uma digna representante. Ou, da passagem de “Política” onde Aristóteles afirma que o título “Rei” foi criado pelos antigos para homenagear aquele que, dentre os membros da comunidade, mais se destacasse na defesa dos interesses comuns do povo.[4]

Em suma, não há nada de monárquico, messiânico, redentor, artificial, publicitário e, enfim, unilateral, na liderança de Marília. As lutas de seu povo são suas lutas e as lutas que, por ventura, ela propõe ao povo, visam o melhor interesse da comunidade. Além disso, Marília tem a consciência que seu “trono” é passível de crítica e concorrência. Por essa razão, ela não teme, nem se sente desconfortável, com o conflito. Ao contrário, até o incentiva. Marília não hesita em apontar publicamente falhas de seu próprio governo e estimula a auto-organização da população para que reivindique suas demandas junto à administração – atitude que, por vezes, pode exasperar seus auxiliares.

A partir dessas considerações, acredito que alguns problemas que nossa prefeita tem enfrentado nesta jornada – e que, eventualmente, a fazem perder a paciência – derivam do conflito entre seu modo de ser e a reconfiguração dos parâmetros do agir político a que temos assistido nas últimas décadas. Todo céu produz o próprio inferno.

Não é de hoje, o universalismo e a ideia de comunidade estão sob forte ataque, ao mesmo tempo que ocorre um extenso processo de fragmentação competitiva das relações sociais. Estes fenômenos são decorrentes do advento da chamada globalização, aliada ao neoliberalismo como política econômica.

A globalização encurtou distâncias, diluiu fronteiras simbólicas e geográficas, dissolveu velhas identidades e deu margem à expansão da diversidade e do multiculturalismo numa escala jamais imaginada pelas revoluções liberais, às quais devemos o início desta abertura. Ao mesmo tempo, o neoliberalismo impôs um acirramento impiedoso da concorrência entre os agentes econômicos na luta pelo aumento de suas margens de ganhos e de sua participação na repartição da riqueza socialmente produzida. Em consequência, em lugar de perspectivas ampliadas e ecumênicas nos relacionamentos, de forma a potencializar as possibilidades criadoras da pluralidade dos modos de ser, passamos a conviver com o acirramento da hostilidade entre os grupos numa dinâmica que tem levado à percepção do “outro diferente de mim” como um inimigo perigoso, e não como mero adversário, competidor ou, quem sabe, um parceiro.

Evidência deste fenômeno é a radicalização da preferência das pessoas por se relacionarem apenas quem pensa da mesma forma, encapsulando-se em “bolhas de opinião confirmativas”. O grande problema é que o “espírito de confraria”, o “paroquialismo” e o “corporativismo” que, fatalmente, emergem desse tipo de comportamento, passaram a ser incensados como um tipo de “tribalismo” ou “identitarismo” válidos na disputa por direitos e prerrogativas. Assim, cada vez mais, indivíduos e grupos se veem como portadores de identidades claramente definidas e só se identificam com quem seja da mesma tribo, declarando-se hostis aos demais.

Ora, este é o fim do universalismo humanista.

O humanismo é uma das mais generosas correntes filosóficas já inventadas. Coloca a dignidade do ser humano no centro de suas preocupações, realçando a igualdade dos indivíduos uns perante os outros, e rechaça, por esta mesma razão, toda forma de obscurantismo, autoritarismo e opressão, defendendo a tese pela qual as hierarquias, como construções humanas, podem ser mudadas e até eliminadas. Já o universalismo é uma ideia fundamental para a promoção da justiça social ao afirmar que ninguém deve ficar às margens do progresso, pouco importam suas origens de classe, seu sexo, etnia, credo, etc. Ambos, o universalismo e o humanismo, são princípios éticos que informam as noções de bem e de justo, sem as quais não é possível um programa de ação que promova a busca da felicidade por todos e por cada um.

A derrocada do universalismo e do humanismo como horizonte filosófico e político tem consequências dramáticas para o cotidiano da vida social. É deste caudal que se alimentam o individualismo egoísta, a dificuldade para compor alianças sustentáveis de longo prazo, a indiferença ante o sofrimento alheio; a falta de solidariedade e de empatia; a indisposição e, por consequência, com o tempo, a incapacidade para persistir nos esforços de inclusão e, por fim, a assunção do privado e do particularismo à condição de fatores determinantes nas decisões sobre os negócios públicos.

Ora, em um cenário que acentua, polariza e eterniza as diferenças grupais e individuais como meio para justificar e facilitar a liberdade de ação dos mais fortes, inclusive via a criação de lendas e pela mentira, um perfil como o de Marília torna-se imprescindível. Ela é o tipo de pessoa que possibilita o diálogo no interior do dissenso e viabiliza a comunicação em meio à tempestade dos conflitos já que seu foco é encontrar o denominador comum que permite avançar junto. Marília é uma pacificadora e uma dirigente de pessoas.

Lamentavelmente, l’esprit du temps sopra noutra direção e, para muitos, ela é apenas mais uma rival e uma ameaça. Isso irrita.

Longe de mim a pretensão de imaginar que possa sentir o que Marília sente quando é insultada por quem deveria ser seu parceiro; quando tem sua mensagem distorcida por quem deveria ser um intérprete; quando recebe desinteresse e má vontade de quem deveria mostrar empenho e dedicação; quando é menosprezada por quem deveria valorizá-la; quando não recebe o opoio que lhe parecia obvio e natural e, enfim, quando é injustiçada – logo ela, que tem na busca por justiça um propósito de vida. Sei, entretanto, que isso pode irritar, suponho que machuque e, como diz Marília, “quando me ferem, viro fera”.  Quem, em são consciência, pode dizer que ela está errada?

Não há escapatória para a humanidade. Somente uma ética de alcance universal, fundamentada nos princípios iluministas de liberdade, igualdade e solidariedade construídos no decorrer de séculos que remontam aos velhos gregos e ao cristianismo primitivo, poderá fazer convergir a multiplicidade humana numa mesma “casa comum”.[5] Nesta caminhada, é inevitável, lideranças como Marília continuarão a ser escolhidas por seus pares para liderar a grande batalha. “Ave Caesar, morituri te salutant”. [6]

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

Notas

[1] HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1984.

[2] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.

[3] TAYLOR, Charles. As fontes do self: A construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

[4] Aristóteles. Politica. Martin Claret Editora Ltda. 2001. São Paulo, SP.

[5] Ver “Laudato si”, encíclica do Papa Francisco, publicada oficialmente em 18 de junho de 2015, Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

[6] Em tradução literal, “Ave, César, aqueles que vão morrer o saúdam”, conforme a Wikipédia.

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