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Lucas Fidelis: Direito à memória e à verdade

“Nesta vida a senda é estreita. Pisou fora, morreu.” (Norberto Nehring)

Nos últimos dias, me deparei com a notícia de que o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face de 42 ex-agentes da ditadura, incluindo, os já falecidos, ex-coronel do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, e, ex-delegado, Sérgio Paranhos Fleury, além de ex-integrantes do DOI-CODI, para responsabilização das atrocidades cometidas nos “anos de chumbo” e a consequente condenação a ressarcimento de indenização aos familiares das vítimas e danos morais.

A notícia, alinha-se, ao que foi decidido, em 2018, na Corte Interamericana de Direitos Humanos- CIDH- no caso Vladimir Herzog vs Brasil em que se apurava a responsabilidade do Estado brasileiro pela falta de investigação, de julgamento, e de punição, dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vlado. O Tribunal Interamericano deliberou por responsabilizar o país pelas questões mencionadas e, também, pela violação dos direitos a conhecer a verdade e à integridade pessoal dos familiares do jornalista Vladimir Herzog.

Decerto que são fatos de recrudescimento da dita “Justiça de Transição”, um conceito que dispõe sobre mecanismos políticos e/ou judiciais para reparar violações de direitos humanos e, por conseguinte, a reconciliação, a restauração da Justiça, e a manutenção da paz. Ademais, contribui pelo resgate da Memória, Verdade e Justiça no país.

(Acervo Pessoal. Buenos Aires, 2023)

Muito embora seja sabido que o Estado brasileiro não realizou um mea-culpa de maneira eficiente e necessária, já que, dentre seus vizinhos de continente, foi a nação que menos julgou e puniu os crimes de lesa-humanidade da ditadura civil-militar.

Ainda há muitas feridas abertas por parte do Brasil. E os curativos feitos, ainda, são remendas em que as cicatrizes não atingiram sua fase de virada de página e que permitissem fortalecimentos democráticos e institucionais, bem como recomeços.

Os processos em que cada país enfrentou os crimes cometidos pelo Estado influenciaram de maneira fundamental, sendo que, as reverberações, dessas decisões, repercutem até os dias atuais.

A Argentina, a título de exemplo, foi um dos poucos torrões em que se fez a revogação da lei de anistia em que os militares estabeleceram antes de deixar o bastão.

Sublinha-se que, o presidente argentino, Raul Alfonsín, ao tomar posse, em 1983, criou a Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (CONADEP), que desempenhava a função de investigar os eventos do regime, que perfizeram os anos de 1976 a 1983.

Não nos olvidemos da força do movimento das abuelas da Plaza de Mayo. Sempre demonstrando um acentuado simbolismo em suas buscas incessantes aos netos que foram sequestrados e tomados cruelmente pela ditadura.
O país argentino condenou e encarcerou seus principais agentes da época de chumbo, incluindo o sanguinário general Jorge Rafael Videla. Sem falar que até 2022 o Estado já havia proferido 273 sentenças, resultando na condenação de 1.058 pessoas.

As Forças Armadas argentinas saíram de cena com uma contundente derrota da ditadura; incluindo a desastrosa Guerra das Malvinas, o que corroborou e fortaleceu a transição democrática.

De fato, um país que buscou encarar e revisar um passado um tanto quanto sombrio.

Lembro-me bem do excelente documentário “Memórias do Chumbo, o Futebol nos Tempos do Condor” em que uma das sobreviventes da Escuela Mecánica de la Armada- ESMA, Graciela Daleo, relata acerca do contraste de estar acometida ao padecimento em um Centro de Tortura (ESMA) a poucos metros do Monumental de Nuñez, estádio do River Plate, em que o povo argentino comemorava a Copa do Mundo de 1978 pela vitória da Albiceleste por 3-1 sobre a Laranja Mecânica quem ainda carregava os resquícios do revolucionário Carrossel Holandês de 1974. Evidencia-se que o então presidente da FIFA, João Havelange, mantinha relações estreitas com o general Videla e com tantos outros ditadores.

Com relação ao Uruguai e Chile, embora tenham utilizado de mecanismos limitados de investigação e justiça, e mesmo que tardiamente, também buscaram trazer a lume as barbáries realizadas na ditadura.

No Chile, por exemplo, final do ano passado, ocorreu um movimento alcunhado de “Nunca más”, em que milhares de mulheres vestidas de preto, com velas na mão, se reuniram ao redor do Palácio de La Moneda para que jamais se fizesse esquecer-se dos 50 anos do bombardeio no palácio em que Augusto Pinochet depôs Salvador Allende.
Em uma demonstração mais recente de mentalidades distintas sobre os tempos de chumbo, o presidente conservador chileno da época, Sebastián Piñera, repreendeu o então mandatário brasileiro que declarou apreço pelo mencionado ditador chileno.

Recorda-se, ainda, que, Michelle Bachelet, primeira mulher presidente da República na história do Chile, inaugurou, em 2010, o Museu de Memória e Direitos Humanos. A ex-presidente chilena, ainda, declarou acerca de críticas do antagonismo: “Nunca deixa de me surpreender a atitude dos que reagem negativamente a algo tão essencial: preservar a memória de um país particular quando parte dessa memória produziu tanta dor e se espera que não se passe nunca mais. Justamente porque não queremos reviver a dor, é tão essencial conhecer. E conhecer de uma maneira gráfica, não só pelo que outros contam. Encontrar fotografias, filmes, artigos, pessoas, com caras que reflitam o que lhes passou. O museu traz uma mensagem permanente de como devemos cuidar da vida de nossos cidadãos”.

Relativamente ao Brasil, num sentido de progressão, houve a implantação da Comissão Nacional da Verdade no governo de Dilma Rousseff. No entanto, o acerto com o passado ditatorial deixou muito a desejar. A transição é lenta e gradual. Uma transição realizada com muitos acordos e poucos acertos de conta. Uma Lei de Anistia insatisfatória e deletéria em que serviu para arrastar os fetiches da caserna com a política. Embora também tenha trazido exilados para o campo político, o que contribuiu para uma reestruturação para a democracia, há de se dizer.

Esse reflexo dos tempos ditatoriais nos acontecimentos recentes é patente. Os fatos dizem por si só. Instabilidade democrática e tendências ao golpismo como ocorreu no mais recente impeachment. Ademais, a eleição de Jair Bolsonaro e sua militarização do governo, corroborando com a sua elevada estima aos vieses da ditadura militar; e com as tentativas de golpe devidamente demonstradas de forma sorrateira ao final do mandato. Devemos, ainda, rememorar os sobressaltos de 08 de janeiro do ano passado.

O governo federal, atualmente, tem diligenciado de forma pragmática com as questões acerca das Forças Armadas. O que é compreensível- embora não se justifique- a curto e médio prazo, tendo em vista o histórico de oportunismos e conveniências dos militares; além de uma transição de governo conturbada, com vários resquícios autoritários e de vários cargos que estava sendo ocupado pelo setor castrense, o que poderia ocasionar melindres e prejudicar as relações e a governabilidade.

Aproveitando o ensejo do pragmatismo, ressalta-se que as relações têm progredido para um resgate institucional. Bastante superficial, a bem da verdade. Podemos aferir tal situação na declaração recente do presidente do Superior Tribunal Militar- STM, tenente-brigadeiro, Joseli Parente Camelo: “Ser presidente do STM é um desafio que exigirá equilíbrio e serenidade diante da conjuntura pela qual passa o nosso país, pois tenho plena convicção de que se faz necessário ao nosso país uma firme reafirmação de nossa democracia. É uma batalha a ser vencida não por um, mas por todos nós brasileiros onde nos incluirmos, ministros, juízes federais militares e todos os servidores da Justiça Militar da União”. Diferentemente do presidente do STM, do governo Bolsonaro, general Luís Carlos Gomes Mattos, que ironizou, áudios disponibilizados de grávidas sendo torturadas, dizendo: “Não estragou a Páscoa de ninguém”.

Importante mencionar que o atual presidente do STM ainda dirigiu-se a Lula como “nosso presidente” e “chefe supremo das Forças Armadas”, o que demonstra avanços sutis em uma relação de reconhecer qual é o real papel constitucional do Poder Civil e da caserna.

No entanto, em algum momento, que seja o mais breve, diga-se, imprescindível encarar essas questões passadas ao presente; com a profundidade necessária, para que não fique pedra sobre pedra. E não bastam apenas punições, que acabam sendo mais simbólicas do que eficazes; embora extremamente importantes para um desfecho. Mais do que isso é necessário relembrar, enfaticamente, com várias ações, para que haja, de fato, uma compreensão gradual da sociedade, o que foi a quartelada, e, da importância das competências constitucionais estabelecidas para que cada setor desempenhe seu devido múnus.

Meu grande medo é que todos nós estejamos sofrendo de amnésia”, refletiria o saudoso uruguaio Eduardo Galeano.

Enunciação esta que se assenta como uma luva ao nosso contexto. A tão conhecida cultura tupiniquim de querer omitir as agruras e máculas do passado. De esconder a sujeira para debaixo do tapete. Decretar como assunto proibido as condutas dissimuladas e atrozes pelas mesas e rodas de conversa. De guardar os mais recônditos segredos impronunciáveis. Deixar as pontas soltas sem o devido acerto de contas. E danem-se os traumas e as úlceras expostas. Quem sofre calado que se aguente para não sucumbir.

Portanto, com todas essas dilacerações, carregadas com as marcas do tempo, acordos e reconciliações não são suficientes; devemos trazer ao presente os acontecimentos daqueles tempos soturnos. Dos porões do DOI-CODI. Pela devida justiça de transição. Pela memória de Frei Tito, Norberto Nehring, Vladimir Herzog, Edson Luís, Stuart Angel, Iara Iavelberg, Lamarca, Marighella e tantos outros.

Relembrar o passado para não repetir as bestialidades no porvir.

São 60 anos do golpe civil-militar.

Seis décadas de uma noite sombria e interminável de 21 anos.

Lucas Corrêa Fidelis é advogado e servidor público.

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