Contra a morte que nos espreita cada um tem seu jeito de lidar. Tem a crença que ajuda, a fé que não se abala. A súplica por vezes inútil. E quando a doença vem a batalha se torna diária, solitária. Cansa e não dá sossego. Não descansa no sofrer que causa no paciente e em quem o acompanha. A dor não alivia, não vai embora enquanto a vida não cessa.
Cada qual com a sua sina, ainda agora, tem alguém fechando o ciclo e fazendo as pazes com a danada, que suga lentamente as forças, drena as energias e com certa ironia deixa apenas um último suspiro. Pior que o leito do hospital com soro indo para as veias e flores repousando na jarra, é a cama vazia quando o corpo parte: partido, desfeito, descabelado, inerte.
Lembro quando me disseram para ir despedir de pai. Fui. Encontro inadiável para testemunhar o fim inevitável. Os olhos fechados não se abririam nunca mais. O tormento sedado, o câncer brincando dentro dele, serelepe ocupando cada espaço. As células perdendo batalhas, a guerra perdendo o sentido, naquela hora em que a alma se entrega e prepara as malas para seguir viagem. Aquele momento em que as despedidas são diferentes para quem fica e quem vai. Pequena é a dor da perda diante de quem a existência perde. O adeus foi mudo, sem lágrimas. Uma tristeza, muitas memórias, o legado.
Depois o velório, ritual patético que causa estranheza nas primeiras vezes e com o qual a gente se acostuma. Onde se conta casos, se reencontram parentes e amigos para atestar que a vida continua e o defunto é um ponto de inflexão. Uma pausa em conflitos para sermos, ainda que por breve tempo, cordiais.
A cada partida que testemunhamos, nos observa a ceifadora. Com sua ampulheta macabra conta o tempo que nos resta. Sua face escura, chamas no lugar dos olhos, desafia a imaginação. Enquanto distraídos lamentamos, a certeza que resta é que por alguma fresta ela estica os braços esquálidos, tira medidas, sussurra um espanto e ri da nossa cara.
Teimosos, nunca estamos prontos. Não dá para primeiro pagar as dívidas? Não dá para esperar a formatura da filha? Não dá para mais uma vez jogar sinuca com os irmãos? Não. Quando chega a hora não importam as pendências. Segredos vão deixar de ser revelados. Abraços serão retidos. Sentimentos vão virar pó. Ninguém vai tirar a poeira dos móveis. Outras histórias serão escritas.
Então o que nos resta é viver, sopra a voz daquela que vem do além. Ainda não é chegada a nossa hora, nos regozijemos. Que a existência seja uma benção. Que a gente possa deixar saudades do agora, quando somos passageiros da lembrança. Vamos deixar de lado as desavenças e bem viver. Viver bem. Porque a existência é breve.
Lembro com frequência de duas citações. A do ator e compositor Mário Lago, que disse: “Eu fiz um acordo com o tempo. Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Qualquer dia a gente se encontra e, dessa forma, vou vivendo intensamente cada momento.” E a de Salvatore Quasimodo, poeta italiano, que recebeu o Nobel de Literatura de 1959: “Cada um está só sobre o coração da terra trespassado por um raio de sol. E de repente é noite.”
Hamilton Reis é jornalista e advogado