Na sexta-feira, véspera de carnaval, comecei a sentir um mal estar. Foi o primeiro sinal de que o final de semana prolongado não ia ser de descanso. Estava certo. A coisa piorou. Nos quatro dias seguintes tive uma febre que não cessava, chegando aos 39 graus. O que levou a mente a uma série de delírios, nos quais a mesma história se repetia em interminável folia, brigando horas a fio com o sono e o cansaço. No domingo veio o diagnóstico: dengue. Acompanhada de pneumonia, apontada por supostas manchas brancas nos pulmões.
Pois bem. Em uma dessas noites de agonia fui visitado por uma tal Wilma. Ela veio trazida por alguém que dizia saber que eu estava escrevendo um livro sobre a historia a cidade. Queria compartilhar seus conhecimentos sobre fatos e personagens de Contagem, da década de 1980. Não me lembro de nenhuma pessoa com esse nome. Mas ela se apresentou como contato publicitário. Conheci algumas do tipo. Moças de pouca instrução, nem feias nem bonitas, que se propunham a vender anúncios de jornal, em geral para os comerciantes da avenida João César de Oliveira, que tinha sido duplicada pelo projeto de Complementação Urbana de Recuperação Acelerada (Cura) em meados de 1976, atraindo a construção de novas edificações, no coração do Eldorado.
Em um destes prédios novos, pai instalou a sua Vidraçaria Santa Rita Ltda. Na época ter um comércio do tipo em um ponto comercial tão promissor não era considerado estranho. Até porque ao lado tinha um depósito de materiais de construção, o Ipê. Do outro lado, na esquina oposta da rua Bélgica, era imponente a Livraria e Papelaria Ímpar, ladeada por uma lanchonete cujo charme era servir pão de queijo quentinho, feito na hora.
Em cima da Santa Rita tinha um conjunto de lojas. O acesso era lateral e após um lance de escada, no final do coredor, se chegava à redação, administração e afins da Gazeta de Contagem. No espaço exíguo, em cima de duas mesas com gavetas, ficavam as máquinas de escrever. Em uma delas tinha a presença obrigatória do aparelho de telefone de linha fixa. Duas prateleiras faziam o papel de divisória do ambiente, separando um espaço que servia de copa. Um banheiro minúsculo completava o conjunto.
A Gazeta era comandada por Nilson de Castro, baiano de Brumado, terra de Newton Cardoso. Teriam vindo para a cidade na mesma época. Entre 1973 a 1976, ele cumpriu um único mandato de vereador, na 8ª Legislatura, tendo sido um dos 15 eleitos em 15 de novembro de 1972. No mesmo período, Cardoso cumpriu seu primeiro mandato de prefeito. Castro tinha um talento especial para vendas. Era capaz de vender geladeira para esquimó, para servir como armário. Tinha perdido um irmão mais novo que era meu homônimo e, também por isso, criou por mim afeição especial e me tratava como filho.
Pai, que era dado a arroubos empreendedoristas, nunca bem sucedidos, decidiu abrir uma lanchonete, dividindo os vidros com os comes e bebes. Passei a atendente e a conviver com a turma do jornal. Gente que descia para o café e tinha o hábito de pendurar a conta. Além de Castro, a fauna jornalística era formada pelo Celso Cabral, miúdo e de cabelos escassos e brancos. E Eduardo Barbosa, espécie de faz tudo, e que, inclusive, com o pseudônimo de M. Sanjay fazia o horóscopo, maltratando a máquina com apenas um dos dedos que usava para catar as letras. Aluizio Alberto, de cara chupada e óculos de grau, outro veterano, editor de revista na área de transporte, aparecia com menor frequência. Em comum tinham o mesmo gosto etílico. Consumiam cachaça na mesma quantidade da média de café com leite.
Aos 14 anos comecei a fazer jornal na escola, ainda no ensino fundamental. Já era fascinado por comunicação, em especial pelos impressos. Conviver com aquela gente, ouvir as suas histórias e logo ter uma coluna na Gazeta, foram os meus primeiros contatos com aquele mundo mágico. Ainda não sabia, mas era a porta de entrada pra a profissão que iria se tornar meu ganha pão ao longo da vida.
A Gazeta, de duração efêmera, passou por diferentes formatos e fases. Era um autêntico de vez enquandário. Sem periodicidade fixa, aderia na política a quem o bancasse financeiramente. Foi assim que se colou à candidatura do empresário Sebastião Drummond e virou um panfleto partidário a serviço da propaganda do novo sócio. O dono da fábrica Radial, que produzia o jeans Flamers, se lançou candidato em 1982 pelo Partido Democrático Social -PDS, sucessor da antiga Arena, agremiação que dava suporte à ditadura militar. Levou uma surra nas urnas. As eleições eram em turno único e deram a Newton Cardoso, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, seu segundo mandato à frente da Prefeitura de Contagem.
Aquela foi a primeira vez que o Partido dos Trabalhadores disputou as eleições, que foram gerais. Votava-se de senador a vereador e tinha que ser chapa completa, pois o voto era coligado, uma invenção dos milicos. Castro, que era brizolista roxo, embarcou na aventura de Drummond. Pai, que era fã de Newton Cardoso, acabaria terceiro suplente na chapa do PMDB. Aos 15 anos de idade, abracei as candidaturas do engenheiro Marcelo Brito a prefeito e a do professor Ciris Silva Teixeira, que foi o mais votado do PT, mas não se tornou vereador porque o Partido não atingiu o quociente eleitoral. Aos 18 anos me filiei e desde então tenho sido petista. De carteirinha.
Com a transformação da Gazeta em panfleto, aceitei o convite do publicitário Wiler Moreira, um negro alto, elegante e de fala mansa, que tinha fundado o Jornal Contagem em 1979. Junto com Nilberto Batista e Tito Guimarães, pessoas de confiança de Newton Cardoso. Passei a publicar minhas crônicas e eventuais reportagens no prestigioso semanário, que anos depois seria herdado por Cleuza Maria Batista, que o mantém circulando, mesmo com as dificuldades impostas pela era digital, que tem soterrado publicações outrora gloriosas, em todas as partes do mundo.
Durante os anos seguintes mantive o contato com Castro. Foi ele quem conseguiu para mim o primeiro emprego, quando me tornei pai do Diogo, aos 18 anos de idade. Foi na Editora ABN, do pedetista Barbosa Neto, empresário e radialista que publicava a revista Caderno de Moda. Depois, Castro me levou para a Associação Mineira das Indústrias de Confecções – Amicon, que era presidida por Sebastião Drummond. Além do trabalho, ele me cedeu o barracão onde morava, no Eldorado, e alugou outro próximo, de onde saíamos juntos para a labuta em BH, ele dirigindo um Fiat 147, azul claro.
Depois a vida me levou por outros caminhos. Para outras escolhas profissionais, sempre à esquerda. Passei por assessorias de sindicatos, por gabinetes parlamentares e por jornais populares. Perdi o contato com Castro. Nunca soube como terminou seus dias. Quando me lembro de tudo que fez por mim, sinto remorso, por não ter retribuído à altura. Me consolo ajudando as pessoas, como ele fez comigo um dia. Ainda guardo os exemplares da Gazeta de Contagem e de vez em quando releio aquelas páginas amareladas. São parte da minha história. Foram tempos bons aqueles, de aprendizado, de perda da inocência, de crença em coisas que hoje não existem mais.
Hamilton Reis é jornalista e advogado.