Ivanir Corgosinho
Em artigo recente, Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia durante os governos de Evo Morales, entre 2006 e 2019, e um dos intelectuais mais interessantes do atual campo progressista latino-americano, afirma que a “moderação está fazendo mal à esquerda”. De acordo com ele, a esquerda teria perdido sua capacidade disruptiva, estaria cansada demais, tímida demais e mais calculista. A esquerda, diz Linera, faz “concessões com mais facilidade”, é apaziguada “com maior rapidez” e quer “preservar o que já existe em vez de conquistar coisas novas” devido à “falta de força” de seus líderes e da “ausência do povo nas ruas”.[1]
Há uns 40 anos — eu era, então, um “rapaz moço encantado com 20 anos de amor” — jamais passaria por minha cabeça que, um dia, daria meu apoio convicto a um governo que barganhasse recursos públicos em troca de apoio político. Naquele época, eu militava numa organização de esquerda clandestina, o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP), grupo dedicado à luta por liberdade contra a ditadura militar ainda vigente no país. O que pretendíamos, por mais igênua que possa parecer a ideia, era desencadear um movimento social tão impetuoso que derrubaria o regime autoritário, levando de “de roldão”, o Estado burguês e instaurasse, simultaneamente, o socialismo no Brasil – primeira fase para o advento do comunismo.
Olhando para trás com os olhos de hoje, me parece que o melhor da utopia socialista que alimentávamos é que ela não nos soava uma utopia. Ao contrário, em nossa imaginação, era uma meta factível à medida que, achávamos, tínhamos todos os recursos necessários para a sua realização.
Em primeiro lugar, tínhamos uma explicação lógica (científica até), para a necessidade e inevitabilidade histórica da revolução social. A luta de classes era o motor da história e o conflito entre as forças produtivas e o modo de produção levaria, fatalmente, à inviabilização do sistema capitalista abrindo a oportunidade para a proposição de uma outra ordem de coisas. O marxismo era o nosso guia e norte.
Em segundo lugar, tínhamos uma meta generosa, civilizatória e humanista. Aprecio, especialmente, duas passagens de Marx que retratam o sentido moral da sociedade para a qual marchávamos, a sociedade comunista:
“Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.” (grifo meu) [2]
“Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico”. [3]
Tínhamos o sujeito histórico-social que deslancharia esse levante, liderando todo o povo pobre e oprimido. Afinal, o capitalismo havia reduzido a luta de classes a uma oposição simples e definitiva entre, de um lado, o proletariado, a classe explorada e, de outro, a burguesia, a classe exploradora.
Tínhamos a ferramenta necessária para organizar e apoiar o proletariado nesta empreitada: o partido operário de novo tipo, criação de Lênin, o genial líder revolucionário russo, fundador do primeiro estado socialista da história, cujo centenário de morte celebramos há poucos dias.
Finalmente, tínhamos todos os experimentos concretos de poder socialista em andamento no mundo e nos quais poderíamos nos referenciar na construção de nossa experiência nacional. O socialismo era uma realidade na Rússia, na China, em Cuba, na Polônia, na Alemanha Oriental, na Bulgária, na Hungria, na Iugoslávia, na Albânia e, enfim, em boa parte do mundo naqueles tempos de Guerra Fria.
Não era, portanto, apenas o sonho. Era um projeto racional que nos guiava rumo a um futuro esperançoso, convictos que não havia alternativa: ou socialismo, ou barbárie, conforme a celebre frase de Rosa Luxemburgo no Folheto Junius. [4]
Esta convicção, entretanto, vinha sendo minada desde o início da segunda metade do século XX por eventos como a invasão da Hungria pelo Exército Vermelho soviético em 1956; a invasão de Praga e da Tchecoslováquia, também pelo Exército Vermelho em 1968; as atrocidades cometidas pelo Khmer Vermelho de Pol Pot, reveladas nos anos 1970; o levante operário contra o governo comunista da Polônia, ainda na década de 1970 e que levou à criação do Solidarność, a dura repressão pelo Exército de Libertação Popular aos manifestantes da Praça da Paz Celestial em 1989, as crescentes denúncias de repressão a dissidentes, etc. Seriam tais eventos compatíveis com o projeto socialista?
Finalmente, por volta do final dos anos 1980 do século XX, tudo ruiu. As contradições internas ao Bloco Soviético não puderam mais ser contidas e vieram à luz do dia em escala mundial via os meios de comunicação, já globais. Em 9 de novembro de 1989, uma multidão pôs abaixo o Muro de Berlim e, com ele, a chamada Cortina de Ferro. Em 26 de dezembro de 1991, um dia após a renúncia de Mikhail Gorbachev, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi declarada extinta, por incapaz de resistir aos movimentos de autodeterminação que eclodiam em todo o seu território.
Não é propósito deste artigo fazer algum balanço deste percurso. Pesquisadores muito mais dedicados ainda levarão séculos para elaborar uma explicação isenta de contraditório e capaz de lançar alguma luz eficaz sobras as causas do fim do chamado “socialismo real”.
Aqui, trata-se apenas de registrar que o lado progressista das sociedades ocidentais (inclusive o campo de esquerda) está, há décadas, carente de uma proposta confiável sobre o que poderia ser um futuro não capitalista. Nas palavras de François Dosse, “o que desapareceu no século 20 foi o futuro, o horizonte de expectativa, o projeto” [5] Sem um futuro para onde rumar, resta o que? Administrar o presente, da melhor forma possível?
A guinada conservadora que nos fustiga desde os anos 1980, com as ideologias do neoliberalismo, da globalização e do pensamento único, precisa ser explicada também pelo viés da derrota da esquerda e de sua incapacidade de oferecer uma alternativa viável e confiável ao capitalismo na sua fase totalitária, iliberal e antidemocrática.
De onde virá tal projeto? Difícil dizer. “As bases sociais, econômicas, políticas, teóricas, culturais de um projeto que pretendeu ultrapassar o capitalismo, e foi por ele absorvido, não se sustentam mais e não podem mais sustentar uma proposta alternativa radical”, no balanço taxativo de Daniel Aarão Reis [6], com o qual concordo. Uma nova utopia, por consequência, parafraseando Álvaro Linera “deve ter a coragem de assumir seus novos desafios, sem melancolia e sem nostalgia. Com respeito pela história, mas com audácia e criatividade suficientes para empreender a transformação do presente em direção a um futuro (…)”.[7]
Por mais complexa e desafiadora que seja esta tarefa, é importante ter em mente que o socialismo sempre foi, e sempre será, um movimento civilizador e humanista: um esforço para criar as condições necessárias à criação de uma sociedade “verdadeiramente humana”. Este é o cerne da filosofia marxiana: apenas pela superação dos problemas humanos relativos à sobrevivência material será possível promover o aprimoramento individual, a criatividade e até mesmo a espiritualidade, deixando para trás a realidade de frustrações de sonhos irrealizados.
Por outro lado, e com carradas de razão, Marx estava absolutamente convencido que a superação do reino da necessidade seria resultado da luta dos necessitados. Para isso seria imperativo trasnformar a consciência dada, opor à alienação do indivíduo isolado o esclarecimento que viria da ação, da organização e da mobilização coletiva. “Proletários de todos os países, uni-vos!”, eis a grande convocação do Manifesto Comunista de 1848.[8]
Este é o sentido da coisa. A luta pela igualdade, pela inclusão, o cuidado com as questões do espírito, o incentivo à auto-organização da sociedade civil, etc., estão na própria base de sustentação moral da utopia que precisamos desenvolver.
Para finalizar, estou convencido que o projeto de governo implementado pela prefeita Marília Campos em Contagem dialoga profundamente com esta dimensão da luta política na atualidade. Nele é possível ver o que se pode chamar de “sementes da construção do futuro”. Como o ambientalista Keith Richard Brauer Sales escreveu em artigo neste blog: “Contagem não é pautada pela sobrevivência, mas pela profundidade”.[9]
Ivanir Corgosinho é sociólogo
NOTAS
[1] Linera, Álvaro García. Linera: moderação está fazendo mal à esquerda. Blog do Zé Prata e Ivanir, 20/01/2021 – Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/linera-moderacao-esta-fazendo-mal-a-esquerda
[2] MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
[3] Marx, K.; & Engels, F. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo, 2007.
[4] Luxemburgo, Rosa. Folheto Junius (1916). In Juarez R. Guimarães. Rosa, a vermelha. Vida e obra da mulher que marcou a história da revolução no século XX. São Paulo: Buscavida, 1987.
[5] Dosse, François. Refazer utopias, tarefa do intelectual no século XXI. OUTRASPALAVRAS, 18/01/2024. Disponível em https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/refazer-utopias-tarefa-do-intelectual-no-seculo-xxi
[6] AARÃO REIS, Daniel, “O declínio das utopias capitalistas no século XX, uma crise terminal?” in História e utopias, textos apresentados no XVII Simpósio Nacional de História, org.John Monteiro e Ilana Blay, São Paulo, Anpuh, 1996.
[7] Linera, Álvaro García, op.cit.
[8] Marx, K; Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1990.
[9] Sales, Keith Richard Brauer. Contagem com Marília: um Epílogo Diferente para Policarpo Quaresma. Blog do Zé Prata e Ivanir, 20/01/2021 – Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/keith-richard-brauer-sales-contagem-com-marilia-um-epilogo-diferente-para-policarpo-quaresma