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Fernando Abrucio: Como sair do dilema do emendismo

A hora é de pensar como articular as verbas do orçamento com os programas e políticas públicas

VALOR ECONÕMICO, 29/09/2023

Uma das maiores qualidades na política é encontrar interesses comuns onde há impasses e divergências. Em termos intertemporais, é muito difícil manter-se no poder em sociedades complexas sem buscar negociação e cooperação, sem que isso signifique perder a autonomia relativa de seu grupo político ou Poder institucional. Esse preâmbulo conceitual tem uma só finalidade: pensar em como sair do dilema central das relações entre o Executivo e o Congresso Nacional, referente à ampliação das emendas parlamentares.

O aumento da capacidade de gastar mais com emendas parlamentares é um fenômeno que começou em meados da década passada, com reformas legais e a partir, primeiramente, da liderança de Eduardo Cunha. Depois esse processo foi aprofundado principalmente pela ação de Arthur Lira, culminando na criação daquilo que foi chamado de Orçamento Secreto. Mesmo com a decisão do STF considerando inconstitucional esse último formato, o valor que os deputados e senadores terão direito com emendas será, no mínimo, de R$ 40 bilhões em 2024 – e, registre-se, grande parte desse dinheiro é transferido ainda com pouca transparência.

Há muitas críticas ao emendismo, especialmente de duas ordens. Em primeiro lugar, esse tipo de gasto aumenta a fragmentação das ações governamentais, enfraquecendo a organicidade das políticas públicas. Despesas com muitas coisas diferentes e geralmente descoladas dos programas estruturais de cada setor geram maior ineficiência. A qualidade do gasto público pode ser, ainda, atingida pela menor transparência e malversação do uso dessas emendas. Vários casos recentes revelam fortes indícios de corrupção nesse processo, algo que atinge a imagem do Congresso Nacional, cada vez mais mal avaliado pelo eleitorado, conforme mostrou a última pesquisa do Datafolha.

Sem ignorar esses problemas, é preciso apontar que o modelo anterior de enorme concentração de poderes orçamentários no Executivo não era imune a defeitos. Primeiro porque enfraquecia a autonomia congressual e tornava a liberação de verbas uma via-crúcis de deputados e senadores com pires nas mãos pelos ministérios. Esse comportamento empobrece a representação parlamentar e, pior, também favorece o clientelismo e o fisiologismo tanto quanto o emendismo – só que neste caso dominado pelo Executivo. Muitos casos de mal uso dos recursos públicos e mesmo corrupção também surgiam dessa relação espúria de forte subordinação parlamentar ao governo.

Um Congresso mais autônomo é necessário para se ter um presidencialismo mais equilibrado. Evidente que o modelo desenhado para o emendismo atual está longe do ideal, seja por conta da pulverização de gastos por fora ou até em oposição às políticas públicas sistêmicas, seja em razão de sua opacidade e pouca responsabilização dos parlamentares. De toda maneira, uma leitura minimamente realista da conjuntura política, para além de uma concepção normativa, revela que esse desejo de independência dos congressistas veio para ficar e será preciso fazer do limão uma limonada, isto é, aproveitar que querem ter agenda própria e casar isso com um projeto político mais orgânico.

Se tem sido possível, mesmo com muito trabalho de negociação, construir uma agenda econômica com o Congresso como está fazendo com paciência budista o ministro Fernando Haddad, também há chances de se montar uma agenda de melhoria da qualidade do gasto público na qual as emendas parlamentares sejam um elemento central. Em vez de ficar apenas na postura de criticar o emendismo, o que só gera trincheiras poderosas, a hora é de pensar como articular as verbas daí derivadas com os principais programas e políticas públicas.

Antes de discutir uma estratégia de articulação em torno da melhoria do emendismo, é fundamental dizer o que perderão o Congresso e o Executivo se se mantiverem numa conversa de surdos. Caso os congressistas insistam em fazer emendas apenas no padrão pulverizador e descolado dos programas federais sistêmicos, com ramificação no plano subnacional, duas consequências negativas têm boas chances de ocorrer.

A primeira já é muito temida por deputados e senadores: como esse gasto fica muito solto e sem controle, vão pulular denúncias de corrupção, e muitas delas terão muito mais consequências jurídicas e políticas do que no período Bolsonaro. Trata-se de uma bomba-relógio que poderá explodir individualmente no colo de alguns parlamentares, mas também terá efeitos coletivos. Imagine o final da gestão de Lira na Câmara com um cenário como esse. O resultado seria um enfraquecimento enorme da instituição e, especialmente, do seu grupo político majoritário. E ao contrário do que pensam alguns analistas, enfraquecer o Congresso e o Centrão somente acirraria o clima polarizador que enfraquece a democracia brasileira.

Outro cenário pouco discutido até agora é que o efeito eleitoral das emendas terá de competir com um governo orientado por políticas públicas com grande ramificação subnacional. Esse modelo mais sistêmico começou a ser construído pelo presidente Fernando Henrique e foi aprofundado nas gestões petistas. Suas características são programas com larga escala, ancorados na articulação com prefeitos e (em menor medida) governadores, com marcas fáceis de se identificar e que têm basicamente nos pobres seu principal público-alvo. Tal paradigma está voltando e é bem diferente do governo Bolsonaro, mais vinculado à guerra dos valores do que a disputa por políticas públicas.

Numa situação com várias políticas públicas sistêmicas de grande incidência local e junto aos mais pobres, é possível que os votos que vieram das emendas na eleição passada tenham de competir com candidatos vinculados a programas federais nas áreas de educação, saúde, assistência, infraestrutura, habitação, para ficar nos mais evidentes. Seria muito mais interessante, do ponto de vista da eficiência eleitoral, os deputados e senadores casarem seu emendismo com tais ações governamentais mais estruturantes.

Só que a transformação precisa ocorrer igualmente no lado do Executivo. É preciso criar um diálogo institucionalizado entre os gestores da Esplanada e os líderes do Congresso Nacional para pensar num modelo de emendas que se articule com as principais políticas públicas e seus programas. Para isso, o governo tem também de ouvir os congressistas para incorporar, na medida do possível, as propostas de gastos contidas nas emendas. Muitas das ações propostas no período bolsonarista, como o kit robótica na educação, eram absurdas, porém não se pode simplesmente jogar fora o conhecimento que deputados e senadores têm das bases locais. Nesta conversa entre os Poderes, pode haver um aprendizado mútuo e um ajuste de preferências, mantendo a autonomia presente no emendismo.

Vale frisar que, quanto mais se chegar a uma cesta de tipos de emendas que se casem o máximo possível com os programas federais estruturantes, mais fácil será para implementar com eficiência, transparência e qualidade o orçamento federal. Isso reduziria os riscos que os congressistas correm com o atual modelo, ao mesmo tempo que o Executivo poderia utilizar melhor uma dotação orçamentária enorme, num momento em que o governo terá de ser ainda mais efetivo em suas ações porque o país precisa de boas políticas para combater as mazelas do bolsonarismo e o dinheiro à disposição não será tão generoso como gostariam os ministros.

A agenda de reconstrução do modelo emendista é um jogo de soma positiva, no qual ambos os lados ganham. Aferrar-se na preservação da estrutura fragmentada atual ou defender o paradigma mais centralizado anterior é, nas duas hipóteses, uma forma de manter as disfunções e manter o impasse. E não resolver esse dilema é gerar um jogo de soma negativa, no qual perdem, no curto ou no longo prazo, os congressistas, o governo e, sobretudo, a sociedade brasileira.

Arthur Lira deveria abraçar essa agenda reformista das emendas parlamentares, que é muito mais importante para a qualidade do gasto público e para o fortalecimento da legitimidade do Congresso Nacional do que o péssimo projeto de reforma administrativa que está hoje na Câmara federal. Sair por cima com essa mudança estrutural não é apenas uma forma de garantir poder para além de sua gestão, que acaba no início de 2025. Mais do que isso, seria uma reforma para ficar na história, como a tributária, o que alçaria Lira a um outro patamar. Em poucas palavras, ele sairia da presidência da Câmara maior do que entrou.

O Executivo é também um ator central nessa reforma. É preciso parar com esse modelo de só chamar congressistas do Centrão ou equivalente para fechar buracos no Ministério e garantir, provisoriamente, maiorias congressuais. Mudar o país estruturalmente passa pelo casamento das demandas parlamentares e do governo no campo do orçamento, sem tirar a autonomia dos Poderes. Não é uma tarefa fácil, mas é da envergadura do Plano Real ou do Bolsa Família. Poderia ser uma excelente contribuição do período Lula 3 ao Brasil, gerando um novo padrão de relacionamento entre os poderes.

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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