A democracia, como realidade empírica, está sujeita a múltiplas interpretações e a ser apropriada na sua objetivação institucional, conforme os interesses dos atores políticos em competição. Nesse sentido, a tão propalada crise da democracia, mais que revelar alguma eventual limitação estrutural de projeto, desnuda a duríssima disputa que, há algumas décadas, vem sendo travada, por meios legítimos e ilegítimos, em escala global, em torno dos termos do contrato que regula a convivência pacifica dos diferentes grupos, classes e segmentos sociais. No centro dessa disputa estão as instâncias de decisão sobre a destinação da riqueza coletivamente produzida. É, entre outros, o caso da luta pelo controle do Orçamento Público.
Como exemplo, no Brasil, o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff da Presidência da República em 2016, representou uma reviravolta conservadora na definição do destino dos recursos públicos via a adoção das chamadas “políticas de austeridade fiscal”. Naquele contexto, o financiamento da rede de proteção social que ampara a maioria da população, sofreu uma grave redução com a finalidade de viabilizar o aumento da cota-parte da riqueza pública a ser abocanhada por alguns setores já economicamente privilegiados. Um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) demonstra que a Emenda do Teto de Gastos (EC 95), aprovada após o impeachment, levou à redução das despesas primárias de 55% para 47% do orçamento federal em 2017, ao passo que os gastos com o setor financeiro subiram de 45% para 53% naquele mesmo ano (1).
Obviamente, a luta pelo poder de decidir a destinação aos recursos coletivos não se reduz à questão orçamentária, embora oriente e organize o conjunto da disputa. O sucesso da canalização preferencial de riqueza nacional para determinadas mãos, implica a criação de obstáculos a que os grupos subalternos e sub-representados possam se expressar e ampliar, por quaisquer meios, sua capacidade de influência junto às instâncias de decisão. Isso explica a feição autoritária do conservadorismo, expressa nos discursos de intolerância, no fechamento dos espaços de participação social, inclusive o Conselho das Cidades, na apologia à militarização da sociedade, nas fantasias das quarteladas anticomunistas e em toda sorte de reforço ao status quo dominante.
Conclui-se, por consequência, que a atual crise da democracia resulta de um ataque total desferido pelas forças de direita e extrema direita ao conjunto das conquistas obtidas pelo campo popular, socialista e democrático no curso de décadas de luta por direitos políticos, civis, econômicos e sociais. Por essa mesma razão, trata-se também, de uma crise civilizatória cuja faceta mais grotesca e assustadora é o retorno destemido à cena política de movimentos e plataformas claramente reacionários, totalitários e anti-humanistas como o nazismo, o fascismo e o nacionalismo cristão.
Assim, na contemporaneidade, falar em democracia numa perspectiva popular e progressista significa colocar em pauta um conjunto de ações complementares e articuladas que, apontando em sentido contrário ao retrocesso, sejam capazes de alcançar toda a magnitude da crise. Isso significa, em primeiro lugar, a distribuição mais equânime e justa da riqueza socialmente produzida, a começar pelo acesso aos bens e serviços públicos; a adoção de medidas políticas e administrativas para descentralizar o controle sobre os mecanismos legais que normatizam o compartilhamento dos recursos coletivos, entre eles, principalmente, o Orçamento Público. Além disso, trata-se de ampliar a democratização do Estado e da própria sociedade, via a criação de um ambiente civil favorável ao encontro, à convivência entre os diferentes e à livre expressão de preferências como via de fortalecimento de valores republicanos e humanistas. Finalmente, mas não menos importante, trata-se de promover formas sistemáticas de prestação de contas e transparência que tanto tornem as instâncias de decisão cada vez mais responsivas e passivas de controle externo quanto ajudem no combate aos mecanismos ilegais e extralegais de apropriação privada da riqueza social.
Fundamental para a democracia, a transparência é mais que uma vacina contra a corrupção. É o meio para a produção do comum e de acordos de corresponsabilidade indispensáveis a uma governança sustentável. “A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garantem-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”(2), escreveu a filósofa Hannah Arendt. Ideia reforçada por Norberto Bobbio quando afirma que a democracia é o governo do poder público exercício em público, ou seja, nem no privado e nem secretamente(3).
Um aspecto crucial deste debate é o modo como as diretrizes gerais que orientam a resistência ao retrocesso são traduzidas para o âmbito municipal. Isso porque é no nível local que a população experimenta, dia a dia, os efeitos das tensões que envolvem a luta política em escala global. O município é, neste sentido, o locus incontornável da luta contra-hegemônica em defesa de direitos e, em especial, pelo amplo amplo direito ao gozo de um espaço urbano em condições de acolher as pessoas e suas necessidades.
Em Contagem, sob a liderança da prefeita petista Marília Campos, o governo municipal aceitou este desafio e já na campanha eleitoral de 2020, a candidata do PT afirmava que a solução para a crise da democracia seria “mais democracia” e previa uma gestão mais próxima à vida dos moradores; de maior corresponsabilidade entre o Executivo e a sociedade civil na gestão da coisa pública; com fortes investimentos em políticas de transparência e prestação de contas e ampla oferta de espaços formais e informais de participação social, com o consequente aumento das chances de influência popular sobre os espaços de decisão.
De fato, nestes dois primeiros anos, o governo tem se apresentado como um agente decisivo na promoção de um ambiente democrático no município por meio de uma diversidade de ações que podem ser agrupadas em torno dos seguintes eixos estratégicos:
PRESENÇA: A PREFEITURA MAIS PRÓXIMA DOS MORADORES — Esta é principal via de combate à sensação de abandono que, comumente, os moradores e moradoras alegam ao avaliarem os governos, a política e os políticos. Na atual administração municipal, o Executivo Municipal é uma presença visível e mais facilmente acessível para a população por três caminhos distintos: a) via a distribuição mais equânime dos investimentos, obras e serviços para todas as regiões, sem exclusões ou privilégios. A prefeitura projeta um total de 1,2 bilhão em intervenções até 2024 em toda a cidade e praticamente todas as áreas mobilidade urbana, educação, saúde, áreas de risco, regularização fundiária, etc. Parte desse pacote de investimentos é decidido pela própria população, via os conselhos territoriais. Para o período 2023/2024, a Prefeitura executará 75 obras escolhidas por esses conselhos com um custo estimado em R$15 milhões. b) pelo fortalecimento das Administrações Regionais, descentralização do atendimento e ampliação da cartela de serviços oferecidos em cada território. Registros da Secretaria Municipal de governam estimam mais de 60 atendimentos presenciais nas oito regionais em 2022. Os atendimentos de pequenas intervenções, como tapa buraco, drenagem e outros, somam mais de 37 mil chamados; c) a manutenção de uma forte agenda de visita aos equipamentos públicos e obras, e de encontros com os moradores para apresentação de projetos ou prestação de contas, com destaque para a intensa agenda da própria prefeita;
AMPLA OFERTA DE CANAIS DE PARTICIPAÇÃO — Os exemplos vão desde o “Pacto pela vida”, convocado pelo governo no enfrentamento à Pandemia da COVID-19, e que envolveu a Câmara dos Vereadores, denominações religiosas, segmentos empresariais e a população de conjunto, até a reativação de conselhos municipais de políticas públicas que estavam inativos e criação de novos; a realização das conferências municipais de políticas públicas; as plenárias pra discussão do novo plano diretor; a criação dos Conselhos Regionais, eleição de seus conselheiros e estruturação do Sistema Municipal de Participação Popular de Contagem – SMPPC; a formação de comissões para acompanhamento e fiscalização de obras, as comissões de Praças, dentre outras iniciativas. Finalmente, é necessário destacar o desenvolvimento da plataforma digital DECIDE CONTAGEM, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), na qual o cidadão pode se informar, opinar e votar. São dois os principais ganhos da ampliação e do fortalecimento dos espaços de participação. O primeiro, é permitir que setores social, econômica e politicamente excluídos possam vocalizar suas preferências, subsidiando a adoção de políticas redistributivas. O segundo, diretamente relacionado ao primeiro, é a superação do clientelismo como lógica de ação do Estado e a adoção de praticas mais universais se repartição dos recursos públicos. Nos dois casos, temos um reforço do chamado “capital social” e um chamado à requalificação do “poder local”, normalmente tomado pela cultura da clientela e da troca de favores.
DIALOGO E PARCERIAS — Nos últimos dois anos, o governo municipal captou cerca de R$ 94.618.231,83 em emendas de deputados federais e estaduais para investimentos em Contagem. Ao mesmo tempo, as contrapartidas e medidas mitigadoras de empresas na cidade, somam mais de 53 milhões de reais e incluem o financiamento de reformas e manutenção de praças; escolas; unidades de saúde; equipamentos culturais e outros. Estes são alguns resultados da política de busca de parcerias e de corresponsabilização na gestão do município adotada pelo governo Marília Campos. Nesta perspectiva, são mantidos canais permanentes de diálogo abertos com os vereadores, empresários, segmentos religiosos, comunidades, representações sindicais dos servidores públicos, deputados federais e estaduais, etc. Além dos exemplos citados, os bons frutos desta aposta no diálogo podem ser observados na aprovação de 81 dos 85 projetos de lei enviados pelo Executivo à Câmara no biênio; nos acordos salariais negociados com o funcionalismo via a Comissão Permanente de Negociação Coletiva – COPENC e que levaram à elaboração de 17 projetos de lei que tratam das condições de trabalho dos servidores, dentre outras realizações.
INCLUSÃO DIGITAL — Para a administração pública, os investimentos em Tecnologia da Informação (TI) somente fazem sentido se impulsionarem os processos de mobilidade social via a redução da exclusão digital. Esta questão vem sendo enfrentada pelo governo municipal que tem fomentado o debate e a mobilização popular sobre as diretrizes e os principais investimentos em TI na cidade via o portal http://consultapublica.contagem.mg.gov.br. Por meio desta ferramenta a sociedade e as empresas pode participar da construção do projeto de modernização e desburocratização da administração municipal, que está em pleno andamento. O Programa de Investimentos em Modernização da Tecnologia da Informação (TI) de Contagem, baseado no Plano Diretor de TI, está orçado em cerca de 150 milhões de reais. Além da desburocratização de serviços e processos internos em todas as áreas, a grande meta e ampliar a inclusão digital aumentando o acesso público à internet e da rede Wi-Fi da cidade, por meio da implantação de internet de qualidade em praças e todas as escolas públicas municipais, facilitando o acesso a serviços digitais por meio de aplicativos e sites e reduzindo a necessidade das pessoas irem aos lugares para resolver questões.
APOSTA NA URBANIDADE — O governo tem investido na criação de um ambiente favorável à convivência pacifica, afetiva e solidária entre as pessoas em público. Isto explica os fortes investimentos na oferta de oportunidades para encontros com diversas finalidades. Além das reuniões, temos também projetos como a ginástica na praça, shows, festas, as corridas e outros eventos culturais que levam a um estado de permanente ocupação dos espaços públicos e permitem que indivíduos e grupos de indivíduos interajam e aprendam a lidar com suas diferenças de gostos, hábitos etc. A premissa é que um ambiente urbano dinâmico, efervescente e convidativo à distensão, ao relaxamento, à diversão e ao prazer é também mais favorável às mudanças e inovações à medida que produz confiança e reciprocidade. Neste sentido, é a urbanidade seria um potente fator de fomento à cidadania e de “otimização” do capital social.
POLITICAS DE COMUNICAÇÃO E TRANSPARÊNCIA — Na esfera governamental, a comunicação deve ser vista como um meio facilitador das relações entre o governo e seus diversos públicos. É, neste sentido, uma política voltada para a construção da cidadania que tanto informa os atos do governo quanto oferece ao cidadão a oportunidade de monitorar, avaliar e demandar. Ou seja, o cidadão e a cidadã não apenas recebem informações – eles também são ouvidos. A política de comunicação mantida pelo governo municipal inclui diversos produtos para a difusão de informações, adequados à realidade local (tais como jornal impresso, faixas, prospectos e carros de som) além de ferramentas cono o Portal da Transparência, a Ouvidoria Municipal com seus seus vários canais de comunicação com o usuário (e-mail, WhatsApp, telefone, o canal E-OUV e o E-SIC) e o Diário Oficial do Município. Como parte desta mesma politica, o governo aderiu a organismos internacionais de cooperação para a agenda de governo aberto, transparência e participação popular. São eles: Comunidade internacional para dados abertos (OGP); Rede DECIDIM (Barcelona, Oeiras) e Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP);
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é viável, nos limites deste artigo, fazer um balanço pormenorizado e exaustivo das realizações do governo Marília Campos no campo da defesa da democracia no município de Contagem. O objetivo aqui foi, tão somente, transmitir um quadro geral e apresentar alguns parâmetros teóricos capazes de fundamentar as praticas de nosso governo como respostas possíveis e viáveis à crise da democracia entendida como resultado de uma tensionante disputa pelo controle da riqueza socialmente produzida. Neste sentido, as políticas desenvolvidas pelo governo municipal além de corresponderem à luta para assegurar ao cidadão e à cidadã o direito à cidade, e o direito a participar da decisão sobre “qual cidade queremos?”, também estão inseridas num contexto mais amplo, de resistência aos retrocessos tentados pela direita ultraconservadora e reacionária. Nesse sentido, essas políticas, ainda que restritas ao âmbito local, fazem do Executivo Municipal uma referência de “governo de luta e de mobilização”.
NOTAS
(1) Ver: Orçamento 2017 prova: teto dos gastos achata despesas sociais e beneficia sistema financeiro. INESC. Disponível em https://www.inesc.org.br/orcamento-2017-prova-teto-dos-gastos-achata-despesas-sociais-e-beneficia-sistema-financeiro-3/?cn-reloaded=1
(2) ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
(3) BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo). Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. 171 p.