Em 1966, Maria e José deixaram a pequena Biquinhas, na Mesorregião Central Mineira, perto de Abaeté e migraram da roça para a cidade grande, como era comum naqueles dias. O destino escolhido foi Contagem, município próximo da capital e que era, desde o início da década de 1940, o coração da incipiente indústria que pretendia modernizar a economia do estado.
Com eles trouxeram um casal de filhos e a esperança de dias melhores. Apesar da promessa de farta oferta de trabalho, o outrora lavrador não teve sucesso em sua peregrinação pelas fábricas. Com o sustento da família em risco, teve que optar pela única porta que se abriu e ingressar na Polícia Militar. Começou como soldado e, por 11 anos, vestiu a farda. Chegou a terceiro sargento. A experiência que o salvou de voltar para o cabo da enxada mostrou-se traumática. Aos filhos pediria, anos mais tarde, que escolhessem qualquer profissão, menos aquela que tem como patrono o alferes Tiradentes.
O que economizava do soldo de cada mês, José juntava com o que obtia fazendo bicos diversos. Não tinha medo de serviço. A mulher lavava roupa para fora. Em alguns anos conseguiram o suficiente para comprar um lote no Cidade Jardim Eldorado, lançado em 1954 pela Compax Importação e Exportação S/A, e cuja avenida principal foi batizada com o nome de João César de Oliveira, pai de Juscelino Kubitscheck, que era governador do estado. A rua que escolheram, Flamboyant, era formada por um conjunto de lotes vagos. Os vizinhos eram poucos e dispersos. Localizada na parte mais alta do bairro, a via era circular e ocupava um quarteirão amplo, o que era uma das características do traçado original do loteamento. Desde 2013, ela passou a ter como referência a Unidade de Pronto Atendimento – UPA JK, ao lado do velho prédio da escola estadual Francisco Firmo de Matos, construída na década de 1960.
Em janeiro de 1967, grávida do terceiro filho, Maria decidiu viajar de volta a suas origens. Desconfiada de médicos, quis que o parto fosse natural, como os anteriores. Em um lugar chamando de Mamote, que significa, segundo os dicionários, “filhote crescido que ainda mama”, deu à luz ao rebento, que veio ao mundo pelas mãos da avó, também Maria. O avô Eurico, que tinha ido buscar a parteira, não chegou a tempo de ver o neto chorar pela primeira vez, iluminado pelos candieiros. Seus irmãos e irmãs – ao todo foram sete crias – doravante nasceriam em hospitais de BH. Somente em 2013, com a inauguração da maternidade municipal, as mães contagenses passaram a ter direito de parir seus filhos e filhas na cidade.
Concebido em Contagem, o então caçula voltou para ser registrado no cartório Nogueira, que funcionava na Avenida Amazonas, na Cidade Industrial. A mesma região que registrou a histórica greve de trabalhadores de 1968, que ousaram, ao lado de seus compatriotas de Osasco, em São Paulo, enfrentar a política econômica de arrocho salarial imposta pela ditadura militar que assolava o país. Aos três anos de idade, no início da década de 1970, ele e a família deixavam o aluguel e passavam a morar nos primeiros cômodos da casa que o pai construiu com as suas próprias mãos, penosamente, trabalhando nos finais de semana e à noite. A vida não era fácil para a classe trabalhadora, que ainda assim, longe de ir ao paraíso prometido pelo capitalismo, viu a seleção brasileira de futebol sagrar-se tricampeã no México em imagens de TV já coloridas.
Após a explosão da Cidade Industrial Juventino Dias, foi preciso expandir as áreas para receber empresas. Em 1971, é criado o Centro das Indústrias de Contagem – Cinco, que passa a abrigar enormes instalações, principalmente de multinacionais. Para facilitar o escoamento da produção e interligar de forma mais rápida a Cidade Industrial com o centro histórico da cidade, a Avenida João César é duplicada, com recursos do projeto Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada (Cura), programa do extinto Banco Nacional de Habitação (BNH) de financiamento de obras de urbanização e construção de equipamentos urbanos. É quando se instala no Eldorado a sede da Companhia Urbanizadora de Contagem – Cuco. E começam a surgir as primeiras edificações para abrigar mais e mais lojas, transformando em poucos anos as margens da avenida duplicada no principal centro comercial do município.
Foi naquela parte nobre do bairro, que José instalou com orgulho a sua Vidraçaria Santa Rita Ltda, que tinha na recepção um quadro com a imagem da religiosa. É inusitado pensar agora em uma loja de vidros na região. Mas ela cabia naqueles dias pioneiros. Funcionava na esquina com a rua Bélgica e em frente a Ímpar Livraria e Papelaria, do Alexandre Ivo dos Santos, que seria um dos primeiros presidentes do Clube de Diretores Lojistas, o CDL Contagem. Criada em dezembro de 1981, a entidade foi renomeada posteriormente como Câmara de Dirigentes Lojistas.
Nos primeiros meses de funcionamento do estabelecimento da família, em meados de 1976, os filhos se revezavam para levar marmita para o pai. Pegava-se o ônibus na altura de onde hoje é a UPA JK para descer três pontos adiante. O pagamento era feita com uma ficha. Ainda não existia a passagem impressa, que apareceria depois e podia ser comprada antecipadamente na empresa em blocos. Mas, na maioria das vezes, a meninada subia a pé e usava o dinheiro para comprar picolé e bala na venda do seu Valdir, onde se vendia mantimentos no quilo e se podia anotar o fiado na caderneta.
Criado para ser um lugar cheio de riquezas, tendo como referência a lenda do El Eldorado, o bairro distanciou-se e muito de suas origens. A lagoa que existia onde hoje é o campo do Frigoarnaldo e a faculdade Senac, foi soterrada, sem nunca ter abrigado o clube aquático anunciado nos folhetos de divulgação do loteamento. Levou com ela muitas almas, sugadas por águas barrentas. A especulação imobiliária levou o bairro a um crescimento vertiginoso. A fábrica de biscoitos virou um galpão abandonado durante anos. Até virar o shopping Oi. Bem antes, o campo que era do Grêmio, time de futebol amador, deu lugar ao Big Shopping, erguido em 1994. Com ele chegou ao fim da Feira da Paz, que alegrava as noites de jovens e adolescentes e se foram para sempre os parques de diversão que se revezam no local durante todo o ano.
Este ano Contagem completa 112 anos de emancipação política e mais de 300 anos desde o surgimento das primeiras referências ao povoado que cresceria em torno da capela em homenagem a São Gonçalo do Amarante, protetor dos viajantes. Parte mais recente dessa história, o Eldorado chega aos seus 69 anos cheio de vida, imerso nas contradições criadas por um espaço urbano ainda em expansão. Seu crescimento diz muito do que é ser contagense. Da janela da casa de Maria, que continua se abrindo na altura do número 557, é possível ver o mundo. Um mundo que ficou mais triste com a partida de José, na nova UPA JK, que assistiu a sua última batalha contra o câncer. Mas um mundo que renasce na alegria dos netos e netas, que agora enchem a casa e dão sentido e continuidade a essa história que nunca termina.
Hamilton Reis é jornalista e advogado.