Políticas públicas Censo Demográfico aponta aumento de domicílios vagos para 11,4 milhões, quase o dobro da falta de moradias do país
VALOR ECONÔMICO, 12/07/2023
O Brasil tinha, em 2022, quase 12 milhões de domicílios vazios, o dobro da quantidade observada em 2010 e também o dobro do déficit habitacional mais recente calculado para o Brasil, segundo dados do Censo Demográfico e da Fundação João Pinheiro. A magnitude do número e a distância entre o total de imóveis desocupados e a necessidade de moradia da população brasileira renovam o debate sobre a política habitacional no Brasil.
Especialistas apontam a crise econômica que se agravou com a pandemia – com queda da renda, devolução de imóveis comprados e dificuldade de acesso a residências – como uma das razões por trás desse aumento do estoque de imóveis vazios, além de melhor contagem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do número de domicílios.
Ainda que não haja uma solução simples para o problema da moradia – nem seria possível simplesmente resolver o déficit ao ocupar esses espaços vazios -, demógrafos e urbanistas defendem que há alternativas na legislação para estimular a ocupação de propriedades vagas, como o IPTU progressivo (aumento da alíquota para imóveis sem uso), que poderiam ser adotadas junto a políticas para reduzir o tamanho do déficit.
Os números mostram que a questão deve ir muito além da construção de novas moradias, apontam estudiosos. Ainda há necessidade de programas como o novo Minha Casa, Minha Vida, que acaba de ser apresentado pelo governo federal, dizem, mas este processo deve ser cada mais seletivo, lançando mão de outras estratégias, como o aluguel social, melhoria de unidades existentes ou transformação do uso de imóveis comerciais, por exemplo.
“Alguma taxa de vacância de imóveis é natural, é parte do mercado. Há imóveis para vender, imóveis para alugar, imóveis em inventário…. Mas é razoável pensar que pelo menos metade desses domicílios vagos poderiam ser aproveitados como moradias”, afirma o urbanista Adauto Lucio Cardoso, coordenador do Grupo Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles, ligado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ele destaca que, desde a Constituição de 1988, existem instrumentos para forçar o uso de imóveis vazios e aumentar a oferta no mercado, como IPTU progressivo ao longo do tempo, mas que não são usados, “principalmente por questões políticas”.
“Não é natural que seja mais lucrativo para um proprietário Cardoso, do Observatório das Metrópoles: IPTU progressivo é alternativa deixar um imóvel fechado que colocar no mercado”, diz a militante da União Nacional por Moradia Popular, Evaniza Rodrigues, que faz parte do grupo de trabalho do Ministério das Cidades que trata do novo Minha Casa, Minha Vida.
Pelos dados do Censo Demográfico 2022, que acabam de ser divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de domicílios vagos no país é de 11,4 milhões, o que representa um aumento de 87% frente a 2010, quando eram 6,097 milhões de residências nesta situação. Pela metodologia do IBGE, não estão incluídos nesta conta os chamados domicílios de uso ocasional, como são classificados os imóveis usados para aluguel por temporada, como pelo Airbnb, por exemplo. A categoria de imóveis vagos ajudou a puxar o crescimento de 34% do número de domicílios em igual período, um dos destaques da primeira divulgação da pesquisa.
A soma de imóveis particulares vagos também é o dobro da marca do déficit de 5,964 milhões de domicílios calculado pela Fundação João Pinheiro, órgão de estatísticas do governo de Minas Gerais que é reconhecido pelos estudos na área.
“Os domicílios vagos aumentam e ainda temos déficit habitacional, é algo complexo de entender. Isso mostra como as cidades foram historicamente concebidas: há um conjunto grande de domicílios desocupados, que não são usados para a população de baixa renda”, afirma o demógrafo Roberto Luiz do Carmo, que é professor da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo/Unicamp).
Nesse aumento dos domicílios vagos entre 2010 e 2022, o também demógrafo e professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) José Eustáquio Diniz Alves vê efeito da crise econômica do país, que gerou empobrecimento da população e maior dificuldade para comprar ou alugar imóveis. “Não é só especulação imobiliária, a população ficou mais pobre, a renda per capita está menor que em 2013”, diz ele, que lembra também a melhor contagem dos domicílios no Censo mais recente.
Alves destaca ainda que o crescimento dos imóveis particulares vazios foi um fenômeno generalizado, segundo o Censo 2022: houve aumento nas regiões mais ricas e nas mais pobres, nas regiões com menor ou maior crescimento populacional e nas regiões de emigração e de imigração.
O dado do déficit é o mais recente, referente a 2019, mas deve mudar, segundo o coordenador geral do estudo, o pesquisador Frederico Poley, com a atualização das informações a partir do Censo Demográfico 2022. Isso só deve ocorrer, no entanto, após a liberação dos microdados pelo IBGE, o que se espera que ocorra apenas no início de 2024.
Para Poley, as novas informações sobre domicílios vagos indicam a necessidade de revisão das políticas habitacionais, para que o foco não seja apenas em novas construções. O déficit habitacional, explica, mede o acesso das pessoas a domicílios adequados e reflete a desigualdade do país.
“Uma parte do déficit habitacional tem a ver com adequação com domicílio e poderia ser tratada com melhorias de infraestrutura, como a questão do saneamento. No caso dos domicílios vagos, há uma questão de mercado. Muitas vezes o proprietário não quer alugar ou vender por preço baixo, então é preciso pensar em incentivos, mudanças na legislação…. Não existe solução fácil para problema complicado”, afirma Poley.
Dos 5.570 municípios brasileiros, 78% (4.353) têm mais de 10% de seus domicílios vagos segundo o Censo 2022, destaca Roberto Luiz do Carmo. O aumento do número de domicílios vagos deve ser avaliado, segundo ele, junto com a tendência de desaceleração do crescimento da população também observado no Censo, além do esvaziamento das áreas centrais das cidades.
“Esses dados do Censo permitem que se olhe a cidade de outra maneira. É preciso pensar em políticas públicas para moradias que sejam de interesse social. Isso já foi feito em cidades europeias e americanas, mas o Brasil tem avançado pouco”, diz o demógrafo.
Vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Rafael Passos afirma que a entidade vem defendendo “há tempos” que a política habitacional do país não pode se restringir à construção de novas moradias. Ele aponta que, embora no Brasil a cultura do direito à habitação esteja ligada principalmente ao imóvel próprio, o aluguel social é um caminho adotado por muitos países.
“O novo dado do Censo aponta uma discrepância e uma oportunidade de trabalhar esses imóveis vagos para garantir o direito à habitação. E há instrumentos na legislação para evitar esses vazios urbanos, como o IPTU progressivo. […] As políticas precisam vir associadas. E muito mais do que produzir novas unidades, e mais barato inclusive, é investir na qualificação das unidades existentes”, nota.
Evaniza Rodrigues pondera que iniciativas para o uso de imóveis vagos são projetos de menor escala, que exigem mais dedicação e projetos customizados e menos industrializados que os grandes lançamentos de incorporadoras para moradia popular. “Ainda é preciso produzir moradia, mas com certeza não é a única alternativa de garantir moradia digna para a baixa renda”, afirma.