Comissão parlamentar sobre ataques de 8 de janeiro pode se tornar novo palco de bolsonaristas
REVISTA PIAUI, EDIÇÃO 200, MAIO 2023
Como dos casamentos e dos jogos do São Paulo, das comissões parlamentares de inquérito (cpis) também se diz que a gente sabe como começam, mas não sabe como terminam. Também é verdade que não costumam acabar bem, como os casamentos e os jogos… Deixemos as comparações para lá. As circunstâncias que envolvem a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito criada nos últimos dias de abril são únicas. A começar por seu objeto, que não diz respeito a eventuais malfeitos do governo em curso, como costuma ocorrer, mas a uma tentativa de golpe de Estado perpetrada por apoiadores do governo anterior, financiados e catequizados em acampamentos ilegais protegidos pelo Exército por meses a fio. Foram, na verdade, anos de realejo, se lembrarmos da insistência quase ininterrupta com que Jair Bolsonaro girou a manivela golpista, com palavras e gestos, durante todo o seu mandato. O inventário dos crimes que cometeu no exercício da Presidência não caberia neste artigo. Mais importante é frisar que a impunidade que o ex-presidente desfruta até hoje diz muito sobre a saúde, ou a debilidade, das instituições do país. Augusto Aras e Arthur Lira, esses grandes prevaricadores da República, entendem do assunto. Lira volta a ser personagem decisivo para arbitrar os rumos da cpi. Fortalecido pelo bloco que formou em torno de si, com nove partidos e mais de 170 deputados, o presidente da Câmara tem o poder de definir o perfil da comissão parlamentar – se mais amigável ou se mais hostil aos interesses do governo. Além da ascendência sobre as nomeações de pelo menos 5 dos 16 parlamentares da comissão, Lira, como ninguém mais, pode facilitar ou dificultar a tramitação da pauta econômica no Congresso – do novo regime fiscal à reforma tributária -, o que lhe confere hoje amplos poderes (além de uma paleta de cores bastante rica para que possa exercitar suas artes).
É dramático que a aquarela de Lula 3 dependa nesse nível do pincel de um artista como Arthur Lira. A todo instante, paira no ar a ameaça de que sua mão pesada (ou leve demais) venha danificar de forma indelével a paisagem. Mas Lira é um pintor que gosta de trabalhar sob encomenda. Cobra caro, e sabe de quem cobrar. Sua proeminência humilha a cidadania, mas ele está longe de ser o pior dos problemas no momento.
L ogo depois do 8 de janeiro, o cientista social Marcos Nobre, autor do livro Limites da Democracia: De Junho de 2013 ao Governo Bolsonaro, disse à Folha de S.Paulo que o país tinha uma chance histórica de isolar politicamente a extrema direita. Vale citar: “Há uma oportunidade sem igual para o sistema político, especialmente para o governo Lula, enfrentar e isolar essa extrema direita que quer o golpe já. É possível partir para uma defesa da democracia muito mais robusta do que a que foi feita até agora.” Menos de quatro meses depois, tem-se a sensação nítida de que essa oportunidade foi desperdiçada. Por várias razões.
É verdade que num primeiro momento os Poderes encenaram o teatro da institucionalidade, como manda o figurino.
Lula reuniu os governadores; o Congresso e o Supremo desempenharam seus papéis – e esse mínimo foi importante para demarcar o terreno. Logo, no entanto, a “defesa mais robusta da democracia” cedeu espaço às acomodações de praxe.
Lula esvaziou a criação de uma cpi no calor dos acontecimentos, quando havia se formado na opinião pública um sentimento quase unânime de repúdio aos vândalos. Se fosse instalada em fevereiro, na abertura do ano legislativo, num ambiente ainda aquecido, a comissão seria um instrumento eficaz contra o golpismo. Haveria como transformá-la num desdobramento da frente ampla pela democracia.
Lula também evitou contrariar os militares, muitos deles àquela altura comprometidos até o pescoço com a sabotagem do novo governo. Exonerou com duas semanas de atraso o comandante do Exército que havia impedido a prisão dos manifestantes na noite do 8 de janeiro, contrariando uma determinação do ministro da Justiça, Flávio Dino. Manteve, contudo, à frente da Defesa um conservador pusilânime como José Múcio, escolhido a dedo justamente para não melindrar os fardados. E praticamente não mexeu no Gabinete de Segurança Institucional (gsi), que havia se transformado pelas mãos do general Augusto Heleno, golpista contumaz, num serpentário bolsonarista.
A reação temperada do governo tinha justificativas razoáveis. Lula quis evitar que o golpe bolsonarista viesse ocupar o centro da pauta política, ameaçando paralisar a gestão que então se iniciava. Havia escombros demais acumulados ao longo dos últimos quatro anos, além daqueles produzidos em poucas horas pela malta verde-amarela.
As prisões em massa, os indiciamentos, o encarceramento de Anderson Torres, elo civil mais evidente entre Bolsonaro e os delinquentes, tudo isso pareceu ser resposta suficiente ao golpe por alguns meses. À falta de uma “defesa mais robusta da democracia”, o temperamento intempestivo de Alexandre de Moraes, no Supremo Tribunal Federal, e a firmeza atuante de Flávio Dino, um orador de talento incomum, satisfizeram durante certo tempo a demanda por justiça, reparação, punição dos criminosos. Essa fase acabou.
A criação da cpi mista, na esteira das imagens que flagraram o general Gonçalves Dias, então chefe do gsi de Lula, perambulando atônito pelo Palácio do Planalto, sem oferecer nenhuma resistência aos invasores, representa evidente revés para o governo. A família Bolsonaro terá seu microfone. Damares Alves, Magno Malta, esses digníssimos representantes do povo, terão voz, plateia e holofotes para dizer que menina veste rosa, menino veste azul, que é Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, que a culpa é do pt, que Lula é ladrão.
Criar tumulto no país e fabricar material fantasioso para alimentar seus seguidores pelas redes sociais – eis dois objetivos bastante palpáveis para a extrema direita na cpi. As conversas razoáveis sobre assuntos sérios, as discussões sobre políticas públicas, o arcabouço fiscal, as emergências sociais – tudo agora terá que disputar espaço com a artilharia dos jagunços do capitão no Congresso.
A cpi do Golpe é o retorno do recalcado. A vitória eleitoral de Lula não é igual à vitória política da democracia. Essa disputa ainda não acabou, e a extrema direita, que estava acuada na retranca, acaba de marcar um gol de contra-ataque. Entre as tantas urgências brasileiras, derrotar politicamente o obscurantismo talvez seja a principal delas. Sem isso, não haverá Amazônia viva, não haverá menos armas e mais livros, não haverá redução da desigualdade.
Sabemos que a viabilidade do governo depende de algum sucesso na economia, sem o que o resto tende a desmoronar.
Mas o sentido histórico deste mandato é outro. Ao contrário do que supõem os senhores da imprensa, que se comovem mais com a autonomia do Banco Central do que com o 8 de janeiro, a questão ainda é a democracia.
Fernando de Barros e Silva é jornalista