Nas pesquisas de Esther Solano, Michelle e Tarcísio aparecem como potenciais sucessores do ex-presidente
UIRÁ MACHADO, FOLHA DE SÃO PAULO /03/04/2023
A socióloga Esther Solano entrevista bolsonaristas desde 2017. Ela procura decifrar seus valores, sentimentos e tendências. Tenta entender as razões de seu voto no passado e antecipar como devem se comportar em eleições futuras.
Ela está convencida de que o bolsonarismo não é apenas o apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nem se limita a uma visão antipolítica e anti-PT: “Ele também representa uma forma de entender o mundo”, diz.
“Para mim, a chave é esta: o bolsonarismo é representativo”, afirma Solano. “Ele é muito mais profundo e muito mais estruturante da sociedade brasileira. Se a gente não entender isso, a gente não entendeu nada do que é o bolsonarismo.”
De acordo com ela, embora Bolsonaro tenha perdido para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o bolsonarismo foi muito vitorioso, porque a derrota foi muito apertada apesar “de todo o desastre que foi o governo”.
Agora, porém, com o 8 de janeiro e depois de três meses em que Bolsonaro permaneceu nos EUA, o bolsonarismo se desmobilizou. Com isso, e considerando a possibilidade de o ex-presidente ser declarado inelegível pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), abrem-se discussões sobre um possível sucessor –ou sucessora.
Nas pesquisas de Solano, apenas dois nomes aparecem com bastante potencial: o da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o de Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo.
Folha de São Paulo: Como a volta de Bolsonaro impacta o campo da oposição?
Esther Solano: Fizemos pesquisas sobre isso. Há uma sensação de muita confusão. Inclusive entre os radicais, eles não conseguem tecer uma narrativa sobre por que o Bolsonaro saiu do Brasil, por que voltou. Então há expectativa de compreensão do que está acontecendo.
Mas, fora isso, percebemos três consequências, basicamente. Bolsonaro pode ter um papel de reorganizar e reenergizar a base radical, que no momento está muito desmobilizada.
Por outro lado, os bolsonaristas moderados se descolaram dos mais radicais. A gente fala num efeito sanfona entre eles: durante as eleições, há uma aproximação, mas depois, quando Bolsonaro decidiu não passar a faixa presidencial e saiu do Brasil, há momentos de afastamento.
Então é interessante observar se a volta de Bolsonaro, coincidindo com esse período complexo do governo Lula em termos de comunicação, vai conseguir uma reaproximação entre a base moderada e a radical.
Por último, as pessoas estão à espera da reorganização do campo bolsonarista institucional. Há uma expectativa de que, se Bolsonaro não for o líder desse campo, que ao menos a volta dele defina os novos personagens.
Se ele demonstrar que não tem capacidade de dinamizar o campo, ou se os problemas na Justiça o levarem ao ostracismo político, isso deixa a porta aberta para outras lideranças, inclusive fora do campo bolsonarista. Se uma eventual queda do Bolsonaro não contaminar o campo inteiro, aí outras figuras bolsonaristas podem ocupar essa liderança.
Folha de São Paulo: Michelle e Tarcísio têm sido apontados como possíveis sucessores nesse campo. Qual a capacidade que eles têm de mobilizar o bolsonarismo?
Esther Solano: Michelle tem grande capacidade de fazer a mobilização das guerras culturais, das pautas morais. Ela se comunica muito bem com o público feminino religioso conservador.
Esse público se espelha muito na Michelle pelo que ela representa: uma mulher de valores, conservadora, do lar, da família, mas também uma mulher que ganha o espaço público. Além disso, uma mulher que tem um marido violento, agressivo –e muita mulher brasileira tem esse modelo de casamento.
Mas, ao mesmo tempo, ela é vista como excessivamente radical, quando o brasileiro está precisando de maior moderação, de um estilo mais pacificador. Então, se ela moderar esse estilo radicalizado, e se ela conseguir se afastar do potencial tóxico dos processos judiciais, ela consegue um lugar de destaque.
Folha de São Paulo: A sra. poderia dar exemplos dessa radicalização da Michelle?
Esther Solano: As mulheres veem que ela é naturalmente religiosa, mas ela também tem uma radicalidade, porque coloca de forma muito simples essa dicotomia do bem contra o mal, em que Lula, o PT e a esquerda são malignos. Toda essa retórica da satanização do Brasil com o PT saiu muito da boca dela. E isso foi considerado excessivo.
Folha de São Paulo: E quanto a Tarcísio?
Esther Solano: Tem um enorme potencial. Ele tem vários elementos que são muito interessantes para o público majoritário do bolsonarismo, que são os moderados. Tarcísio representa valores fundantes do bolsonarismo: ele é militar, representa a ideia de ordem, hierarquia, disciplina; também representa os valores religiosos, mas sem ter a radicalidade da Michelle.
E ele tem uma coisa muito importante que é a ideia de que consegue transitar por diferentes espectros políticos. Então é uma imagem do sujeito conservador, mas moderado, dialogante, e que ao mesmo tempo é um sujeito que faz, que é eficiente.
Folha de São Paulo: Eles seriam competitivos mesmo na eventual ausência do Bolsonaro?
Esther Solano: Vai depender de como eles entenderem os respectivos papéis. Se a Michelle ocupar o lugar do bolsonarismo mais radicalizado, ela tem todas as cartas para perder a aposta, porque a gente viu nos últimos tempos que tem um cansaço, um esgotamento do radicalismo.
Mas tem um cenário em que eles entendem que podem ganhar expressão política migrando para uma centro-direita –levando em consideração que a centro-direita implodiu no Brasil. Eu consigo ver o Tarcísio simbolizando esse próximo líder da centro-direita, ou direita mais moderada, e a Michelle assumindo outro papel, como candidata a governadora de Brasília, por exemplo, em que ela também faça a disputa simbólica nas redes, nas igrejas.
Folha de São Paulo: Nas suas pesquisas, aparece algum outro nome com o potencial desses dois? Nada. Quais seriam os possíveis outros nomes?
Esther Solano: Tem os filhos do Bolsonaro, mas eles têm enorme potencial negativo; nem o bolsonarismo mais radical aceita os filhos do Bolsonaro. Eles são considerados meninos mimados, crianças, playboyzinhos etc.
A ex-ministra Damares [Alves] é potente no campo simbólico, mas ela não tem capacidade expressiva para além desse campo do fundamentalismo religioso.
Tem outro personagem no qual eu fico muito de olho, que é o Nikolas Ferreira, [deputado federal pelo PL-MG]. Ele é muito expressivo no campo da representação popular online, por exemplo, mas ainda está muito restrito a esse bolsonarismo mais radical. Eu acho que ele vai cumprir um papel de dinamizador das pautas morais.
Folha de São Paulo: Muitas análises sobre a vitória de Bolsonaro em 2018 consideraram a prisão do Lula e a facada como fatores decisivos para o resultado da eleição. No livro “The Bolsonaro Paradox”, a sra., Camila Rocha [colunista da Folha] e Jonas Medeiros descartam essa interpretação. Por quê?
Esther Solano: Porque é excessivamente simplificadora. A facada e a prisão do Lula foram aceleradores. Mas o bolsonarismo é muito mais profundo e muito mais estruturante da sociedade brasileira. Se a gente não entender isso, a gente não entendeu nada do que é o bolsonarismo.
Para mim, a chave é esta: o bolsonarismo é representativo. Durante muito tempo, o campo da esquerda entendeu o bolsonarismo como a síntese da negação: antissistema, antipolítica, antiesquerda, antipetista. Claro que é tudo isso, e a negação já é profundamente representativa.
Mas ele também representa uma forma de entender o mundo. Sem entender o valor da ordem, do fundamentalismo religioso, da rejeição à pauta identitária, o valor de toda uma lógica do patriarcado branco masculino de classe, sem entender tudo isso, a gente não vai entender essa raiz profunda do bolsonarismo.
E outro ponto importante: o elemento do ódio. Se a gente não entender como o Brasil também se constrói no ódio como elemento fundante da política, a gente não vai entender o potencial do bolsonarismo.
Folha de São Paulo: Na eleição de 2022, sem facada e com Lula fora da prisão, Bolsonaro perdeu. Isso não joga contra o seu argumento?
Esther Solano: Não. Sem facada, com Lula e depois de todo o desastre que foi o governo Bolsonaro… A própria base bolsonarista moderada reconheceu que Bolsonaro foi profundamente desumano na gestão da pandemia, que a política econômica do Paulo Guedes foi um desastre e que a Lava Jato foi desidratada. Mesmo assim, ele só perdeu por 2 milhões de votos.
Isso significa que ele de fato representa valores profundos que estão muito enraizados não só nas classes altas, mas em grande parte da base popular brasileira, das novas classes médias. E ele foi muito importante na personificação da política do ódio e da negação. Então ele perdeu a eleição, mas o bolsonarismo foi muito vitorioso.
Folha de São Paulo: É possível saber o tamanho do bolsonarismo agora na oposição?
Esther Solano: Não sei se a gente pode chegar a quantificar exatamente. O bolsonarismo se nutre de elementos que são visíveis na esfera pública, como a frustração com a política, a lógica antissistêmica. Mas tem outros elementos que estiveram latentes até que o bolsonarismo os empoderou.
Todo esse componente fascista, toda essa lógica do ódio é fundante da sociabilidade brasileira. Mas a gente não tinha uma expressão política que conseguisse capitalizar o ódio em termos eleitorais como Bolsonaro fez. E é muito complicado mensurar numa pesquisa quantitativa esses elementos latentes.
Mas a gente tem uma metodologia específica para capturar tendências. Nossa metodologia é o minigrupo focal etnográfico. Basicamente, são entrevistas em profundidade, até de três horas, com pequenos grupos. A gente consegue capturar o que denominamos “histórias profundas”, a base estruturante afetivo-simbólica dos indivíduos.
E o que pode acontecer daqui a um tempo? Essa estrutura que foi empoderada com o bolsonarismo pode voltar de novo ao estado de latência, ou pode voltar a ser mobilizada por personagens do bolsonarismo.
Folha de São Paulo: Independentemente do que aconteça com o Bolsonaro daqui para a frente, dá para dizer qual é o lugar dele na história da direita no Brasil?
Esther Solano: Ele tem um lugar na história da extrema direita mundial. No Brasil, ele ocupa um lugar importantíssimo pela reorganização do panorama político. Tem um deslocamento do eixo da polarização clássica PT-PSDB para uma polarização PT-extrema direita, PT-bolsonarismo. Isso por si só já é fundamental.
Mas ele também passará para a história como protagonista de fenômenos potentíssimos, como a digitalização da política. Toda essa política do fascismo online, dessa extrema direita online, isso é um salto qualitativo na política brasileira e mundial.
E o ponto magistral do bolsonarismo –não falo Bolsonaro, porque é o Bolsonaro e muita gente por trás dele— foi ser capaz de radiografar, de ler as estruturas latentes da sociedade brasileira e entender como eleitoralizar tudo isso. Não é trivial. Tanto que essa estrutura estava lá, mas outros personagens não conseguiram capitalizar antes.
Folha de São Paulo: No livro, entre os fatores que colaboraram para a ascensão do bolsonarismo, vocês citam avanços progressistas. Ou seja, nessa leitura, aos avanços progressistas corresponde uma reação conservadora do tamanho do bolsonarismo. Como escapar dessa armadilha?
Esther Solano: Essa talvez seja a calibragem mais difícil que a política brasileira tem nas mãos. Eu e a Camila [Rocha] há muito tempo tentamos que as nossas pesquisas sejam úteis para o caminho do diálogo.
Se a gente quiser avançar em políticas públicas em prol do brasileiro –e a gente fala em política para as mulheres, para a população mais pobre, negra, LGBT etc.–, a gente tem que tentar fazer isso com um mínimo de consenso populacional.
Entrar em consenso significa abrir mão de algumas questões, prioridades, pautas, vocabulários em prol de tentar fazer com que esses avanços sejam mais sólidos, mais abrangentes. O maior desafio que o próximo governo progressista tem, numa área que é basicamente a dos direitos humanos, é partir do consenso e não do dissenso.
Os mobilizadores das guerras culturais do bolsonarismo, como a Michelle e o Nikolas, estão encarregados de tentar dinamitar qualquer iniciativa de consenso. Então o campo progressista, o campo democrático, tem que ser muito mais inteligente.
Esther Solano é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp.