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Ivanir Corgosinho: Urbanidade, valores progressistas e voto: uma aproximação

O propósito deste artigo é provocar uma reflexão sobre os efeitos de uma vida urbana dinâmica e inclusiva sobre a cidadania e, consequentemente, no fomento de valores progressistas, de esquerda e, até mesmo, socialistas.

Esta provocação é inspirada na produção intelectual de outros autores que, em pesquisas sobre resultados eleitorais na Europa, nos EUA e, mais recentemente no Brasil, têm observado uma relação entre o voto em partidos mais à esquerda do espectro político e o eleitor dos maiores centros urbanos, concomitantemente a uma maior incidência de votos nos partidos mais conservadores e à direita do espectro político nos municípios menores e de caraterísticas rurais.

Esta parece ser é uma tendência muito nitida nos EUA, especialmente a partir do governo Trump; bastante desenvolvida em eleições mais recentes em vários países da Europa (França, Suíça, Áustria, Reino Unido, Tchéquia, Polônia) e já poderia ser percebida na América do Sul e no Brasil, conforme estes estudos.

Cito, como exemplo, um levantamento realizado por professores do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo sobre as eleições presidenciais brasileiras deste ano:

“As maiores diferenças a favor de Lula ocorrem no Amazonas e no interior da região Nordeste, mas também há áreas com mais votos em Lula no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. Nas áreas rurais de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás, o voto bolsonarista tem uma vantagem menor sobre o voto em Lula. Bolsonaro tem vantagem mais ampla na chamada fronteira agrícola (norte de Mato Grosso e Rondônia) e também nos estados de Roraima e no litoral de Santa Catarina”, diz o artigo (1).

Os esforços para oferecer uma explicação política e sociológica para este fenômeno têm trabalhado com o pressuposto que, nos grandes centros urbanos, o individuo é levado a coexistir e a se relacionar com o seu outro diferente com mais frequência; possui à sua disposição um conjunto maior de recursos (constatação que vale inclusive para os mais pobres), tem mais acesso à informação e vê ampliada a sua liberdade de escolha.

O grande centro urbano se distingue, neste sentido, do microcosmo interiorano e rural com seu ritmo lento, tendencialmente avesso a mudanças; onde todos se conhecem (e se vigiam) e onde a formação de opinião é mais fortemente condicionada pela tradição e pelo costume. É também uma característica dessas regiões que o voto seja mais orientado pelas relações de compadrio e clientela.

A cidade grande se opõe, por definição, à uniformidade de pensamento e se abre natural e forçosamente para uma efervescência que cria um ambiente de sociabilidade em tudo favorável à formação de indivíduos mais propensos a aceitar e a conviver com o diferente e com mudanças comportamentais, morais e dos costumes.

A professora de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia, Barbara Walter, autora do badalado “Como as guerras civis começam – e como impedi-las”, aduz que a clássica separação urbano-rural tem ficado mais profunda nesta era de globalização e inovação tecnológica à “medida que as indústrias mais lucrativas e dinâmicas — nos setores de finanças, tecnologia e entretenimento — se concentram cada vez mais nas cidades”. Ela acredita que, com o abandono do interior pelos jovens, os remanescentes das comunidades rurais serão cada vez mais velhos, menos instruídos e mais ressentidos com as elites urbanas (2).

Neste sentido, vale resgatar a observação do historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant sobre as origens da filosofia grega e do racionalismo na velha Atenas. Para Vernant, estas criações só foram possíveis com a reinvenção da polis, a partir da revolução popular liderada por Clístenes em 508 a.C.

De forma inédita, o governo de Clístenes reformulou a constituição ateniense assegurando a todos os cidadãos (independentemente do critério de renda), o direito de participar da Eclésia (Assembleia Popular) e de ocupar cargos públicos, possibilidades antes restritas aos membros da aristocracia (3). Ao mesmo tempo, as antigas quatro tribos (4) que, desde sempre, comandavam a cidade, foram desmontadas e reorganizadas em 100 demos distribuídos em três territórios interdependentes que passaram a ser a base do sistema de governo.

Era o fim da organização gentílica do poder. Os vínculos de consanguinidade foram substituídos por relações de pertença geográfica e uma nova cidade, mais popular, mais democrática e mais diversa, nasceu.

Jean-Pierre Vernant argumenta que estas transformações no espaço da polis, em oposição às divisões, facções e clientelas rivais que enfraqueciam a cidade, levaram a uma transformação “completa das categorias mentais do homem grego”. Por isso, afirma Vernant, o advento da razão e da filosofia é um produto da vida urbana: a filosofia é “filha da cidade”, sustenta. (5).

Estendendo este raciocínio, pode-se dizer que não é por coincidência que o PT é um filho das grandes cidades. De fato, o partido se constituiu como força política e eleitoral a partir dos grandes centros. As eleições de 2022 confirmam este perfil que não foi alterado sequer nas eleições de 2018, quando apesar de Haddad perder em todas as capitais, o partido obteve suas maiores votações nos grandes centros.

Por suposto, como uma proposta de investigação e insumo teórico para a ação política, esta tese precisa ser matizada. Obviamente, o fato de viver num grande centro não torna o indivíduo, automaticamente, um cidadão de esquerda, assim como o fato de morar no campo não leva, necessariamente, uma pessoa a ser de direita. De mais a mais, basta lembrar que na região Sudeste, onde o Lula levou a melhor, Bolsonaro venceu em três das quatro capitais: Belo Horizonte, com 54,25%; Rio de Janeiro, com 52,66%; e Vitória, com 54,70%. Em São Paulo, Lula levou a vantagem com 53,54%.

Esses resultados, aparentemente contraditórios, precisam ser explicados à luz das ações e as escolhas dos atores no curso da disputa concreta em cada centro urbano, e por fenômenos como, entre outros, a emergência e consolidação do nacionalismo cristão, que se mostrou eficiente na cooptação dos segmentos mais pobres nas periferias das maiores cidades.

Todavia, aceitando-se como hipótese que a vida urbana oferece maior resistência ao conservadorismo, trata-se de impulsionar — desde os movimentos sociais até os gestores de políticas públicas — iniciativas que promovam a ampliação da coexistência entre os diferentes, a ocupação e o engajamento das pessoas no espaço urbano.

Noutras palavras, trata-se de incentivar a urbanidade como fator de fomento da cidadania.

O termo urbanidade traduz a convivência tolerante, afetiva e solidária entre as pessoas em público. Neste sentido, remete a uma vida coletiva na qual os conflitos do cotidiano são tratados de modo educado, civilizado e têm suas soluções pactuadas em processos de negociação entre as partes com base em critérios mutuamente aceitos como justos. A urbanidade é, assim, uma função que pode fazer muita diferença na educação e na formação do ser social e, também, do ser político.

Ao marcar presença no espaço público, oferecendo à população oportunidades de lazer, esporte, entretenimento, cultura e também (por que não?) de espaços para a participação política e de decisão sobre os rumos da cidade, como fez Clístenes, o Poder Público está incentivando a urbanidade e, portanto, contribuindo para o desenvolvimento de valores que importam à democracia e à cidadania.

Esta é uma ação especialmente necessária nos tempos atuais quando a urbanidade se encontra em crise; os espaços públicos são, quase sempre, associados a situações de perigo e a política vem sendo contaminada pelo desprezo aos direitos humanos e sociais.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

NOTAS

(1) Mapas eleitorais mostram vitórias de Lula e Bolsonaro, mas escondem disputas, Por Pedro Rezende, Aluízio Marino, Pedro Lima e Raquel Rolnik, http://www.labcidade.fau.usp.br/mapas-eleitorais-mostram-vitorias-mas-escondem-disputas.

(2) WALTER, Barbara F. Como as guerras civis começam – e como impedi-las. Trad.: Berilo Vargas. São Paulo: Zahar Editora, 2022.

(3) Sempre bom registrar que o conceito de cidadão em Atenas estava restrito aos homens maiores de 21 anos, filhos de pai e mãe atenienses. Mulheres, estrangeiros e escravos estavam excluídos.

(4) Dóricos, Aqueus, Jônicos e Eólicos.

(5) VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. 3. ed. São Paulo: Difel, 1981.

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