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André Luan: Darcy Ribeiro, um brasileiro de combate

“Calo nas mãos, bola nos pés. Banzo ou não, diz quem tu és?
Paixões e contradições mil… um povo que tem seu maior bem gritar gol.
Do Oiapoque ao Chuí é isso que eu sou, mistura de Tupi com sangue de Nagô.
Brasil é isso aí, em todo canto… por onde vou, por onde vou.”
— Emicida

É com este trecho de Emicida que iniciamos nossa singela homenagem a um dos maiores pensadores brasileiros do século XX. Darcy Ribeiro foi um homem que não apenas pensou, mas agiu em defesa do Brasil que sonhava inventar.

É raro encontrar essa combinação: o intelectual que reflete e, ao mesmo tempo, age em defesa do país. Darcy teve a companhia de Florestan Fernandes, Maria da Conceição Tavares, Lélia Gonzalez, Paulo Freire, Josué de Castro, Alberto Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento — para citar apenas alguns dos que compõem essa prateleira de intelectuais que construíram mais do que um pensamento: como o próprio Darcy costumava dizer, “uma teoria do Brasil”.

Darcy Ribeiro deve ser autor de cabeceira de toda liderança política do país, à direita e à esquerda. Sua interpretação sobre o Brasil nos ajuda a compreender nossas raízes históricas, culturais, políticas e sociais.

A obra de Darcy mostra como o povo brasileiro se forjou ao longo do tempo e se transformou em uma civilização nova. Composta por matrizes étnicas vindas das populações originárias da Nossa América e de outros continentes, essa civilização produziu uma riqueza cultural única e singular. Ela é reconhecida por outros países, principalmente aqueles que viveram, até os anos 1980, a chaga do apartheid racial como política deliberada de Estado — como os Estados Unidos e a África do Sul.

Não há como negar: produzimos um caldeirão cultural mestiço, uma anarquia criadora própria, tomando emprestado um termo de Roberto Unger. Ou, nos dizeres do próprio Darcy Ribeiro, a possibilidade de construirmos uma civilização do encontro de culturas, “uma Nova Roma”. Entretanto, a mestiçagem aqui produzida também tem suas tragédias, fruto da nossa herança escravocrata.

O racismo brasileiro insiste em nos dividir e destruir nossos laços de solidariedade, visíveis nos rincões mais pobres e nas periferias das grandes cidades. É um racismo negacionista — aquele que tenta negar que praticamos discriminação racial pela cor da pele, uma vez que nosso apartheid deliberado foi extinto bem antes dos EUA e da África do Sul. Os que vociferam a ideologia de uma “democracia racial” desconhecem a dor da discriminação cotidiana. Não sabem o que é ser visto como a babá do próprio filho só porque sua pele é mais clara.

O Brasil de Darcy Ribeiro é uma sociedade violentamente mestiça. Um país que convive com um povo ao mesmo tempo solidário e brutalmente violento consigo mesmo. Um país que carrega as marcas autoritárias de uma classe dirigente que herda seus privilégios da escravidão. E, além disso, uma classe dominante que opera como um satélite das ideias das elites da Europa e dos Estados Unidos.

Como bem disse Darcy Ribeiro, nossas elites — especialmente aquelas ligadas ao sistema financeiro — atuam como “proletários externos” das classes dominantes dos países centrais do capitalismo. Fazem o que são mandadas fazer. Se são ordenadas a manter o Brasil como um grande fazendão de soja ou um canteiro de mineração predatória que destrói serras e comunidades inteiras, assim o fazem sem titubear.

Não querem que nosso país se torne uma potência tecnológica capaz, por exemplo, de ter seu próprio “Vale do Silício”. E, se tivéssemos um, ele deveria servir para a preservação da natureza, não para sua destruição irreversível. Afinal, devemos mesmo investir em um modelo de inteligência artificial que consome 21 bilhões de litros de água para resfriar seus chips? Não poderíamos, em vez disso, desenvolver uma IA que produza mais natureza?

Darcy Ribeiro nos ensinou a importância de sonhar e inventar o Brasil que queremos. No nosso caso, a Contagem que queremos: uma cidade ecodesenvolvimentista, que promova e defenda uma industrialização verde.
Por que não sonhamos com uma Contagem que atraia as indústrias mais avançadas em desenvolvimento sustentável? Por que não podemos gerar mais empregos em indústrias que plantem árvores em vez de devastá-las? O que falta para sermos a cidade mais arborizada do Brasil?

O governo da prefeita Marília nos faz sonhar nesse sentido. A revisão e aprovação de um Plano Diretor Ecodesenvolvimentista foi fundamental para mitigar os danos socioambientais. Esse governo teve uma importância histórica ao barrar o “sonho” do “proletariado externo” — ou seja, da elite vinculada à mineração predatória — que defendia a passagem do Rodoanel justamente sobre as águas da bacia de Vargem das Flores.

O sonho de Darcy Ribeiro por um Brasil moderno e socialmente justo permanece vivo em nossa cidade, graças à frente ampla combativa de Contagem, que tem como horizonte um Estado voltado para o social e para as maiorias populares.

Darcy Ribeiro defendia um Brasil moderno, que respeitasse a natureza e suas populações originárias. Esse é o desenho que ele nos traz em sua obra Utopia Brasil: um país “sem males”, onde as aldeias indígenas desenvolvem sua própria tecnologia avançada e contam com escolas de excelência para suas crianças.

Como ele e Leonel Brizola sempre defenderam: “os direitos devem ser iguais para todos. Privilégios, só para as crianças.”

Esse também é um dos sonhos da prefeita Marília: escolas bem equipadas, de tempo integral, com professores concursados e valorizados. Mas, para isso, precisamos de recursos. Por isso, nos somamos à luta da prefeita pela revisão do ICMS da Educação, que hoje funciona como um ampliador das desigualdades sociais. A democratização dos recursos para a educação é o caminho para a democratização da própria sociedade.

Por fim, Darcy Ribeiro foi um democrata visceral. Como ministro-chefe da Casa Civil do governo João Goulart, usou todas as suas forças para evitar o golpe de Estado que mergulhou o Brasil em 21 anos de ditadura. Mesmo exilado e acometido por um câncer, encontrou um jeito de retornar clandestinamente ao país para participar das manifestações contra a ditadura em 1968.

Darcy Ribeiro foi um lutador contra as forças autoritárias. Jamais foi um intelectual de gabinete. Pelo contrário: na redemocratização, foi às ruas, deu a cara a tapa e buscou os votos da população. Foi o “Sancho” de Brizola no Rio de Janeiro. Como vice-governador, implementou os CIEPs, um modelo educacional que ainda inspira corações e mentes.

No fim da vida, ocupou uma cadeira no Senado. Seu último grande feito foi articular a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei 9.394/96, um marco que garantiu direitos básicos para professores e funcionários da educação brasileira.

São por esses e tantos outros motivos que relembramos Darcy Ribeiro no aniversário de sua partida. Seu exemplo continua sendo uma força de inspiração para todos aqueles que lutam por um Brasil democrático e moderno, onde as crianças tenham prioridade e a justiça social seja uma realidade.

Obrigado, Darcy!

Sugestões de leitura do autor:

Utopia Brasil: um conjunto de textos selecionados de Darcy Ribeiro, ficcionais e não ficcionais.

O Povo Brasileiro: sua obra prima. Trata-se de uma grande narrativa que concretiza sua teoria de Brasil.

O Processo Civilizatório: trabalho audacioso de Darcy Ribeiro, que procura realizar nessa obra uma teoria histórico-antropológica das civilizações mundiais.

A Universidade Necessária: essa, em nossa opinião, uma “obra perdida” em meio a tantas do autor. Pouco falada no ambiente intelectual, esse levantamento reflete sobre a dependência do conhecimento e como as universidades latino-americanas reproduzem uma lógica de subserviência aos grandes centros intelectuais, situados nos paises centrais do capitalismo.

André Luan Nunes Macedo é Professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais

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