Cabe iniciar o presente texto com um pequeno “caso”, um testemunho, que servirá de base para começarmos uma discussão sobre o universo das religiões de matriz protestante no Brasil. Sem ter a arrogância de querer esgotar o tema, abordaremos algumas questões que servirão para refletirmos sobre algumas dificuldades que as esquerdas têm, tanto para compreender como para dialogar com os evangélicos que, como bem destaca o sociólogo Paulo Gracino, em entrevista cedida ao jornal Folha de São Paulo no dia 5 de novembro de 2022: (…) são atores sociais que viera para ficar. É preciso saber gerir essa pluralidade” (1)
Durante o processo eleitoral de 2018, no qual Jair Bolsonaro foi eleito presidente, sentei em frente a uma igreja protestante, em uma barraca para comer um pastel. Ao meu lado sentou um pastor com o mesmo objetivo. Notando que eu tinha adesivos do então candidato pelo Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, evitou conversas políticas mas não deixou de se posicionar como eleitor do Bolsonaro. Encerrou o assunto e de forma simpática, “puxou papo” sobre a rodada de futebol do fim de semana. Nesse meio passou uma jovem, ele me pediu licença e chamou a moça para conversar. Pegou na mão dela, com voz mansa e carinhosa disse:
“Olha, eu estou sabendo o que aconteceu com seu irmão. Muito triste! Sei também que você está desempregada. Não posso te prometer nada, mas passa aqui amanhã na parte da tarde. Traga seu irmão. Vamos ver se podemos fazer alguma coisa por vocês. E não fique envergonhada por não estar frequentando a igreja. É assim mesmo.”
De forma alguma estou julgando o caráter do pastor. Acredito que ele queria mesmo ajudar. Mas o rosto banhado em lágrimas da moça, sentenciava de quem seria o voto dela. Eu, naquela mesa tinha dados, tinha todos os argumentos “na ponta da língua” para discutir com quem fosse, sem a mínima modéstia, mas não tinha a capacidade de acolhimento. Neste dia, me veio a certeza de que as igrejas de matriz protestante são estruturas muito mais complexas do que muitos discursos preconceituosos difundem ao público. Se em 1989, segundo o censo do IBGE, os evangélicos representavam 9% da população, de acordo com o último censo, em 2010, já representavam 30%. Um crescimento considerável que talvez esse simples fato possa nos ajudar a entender.
Por que as esquerdas têm tanta dificuldade em chegar no público evangélico?
Os membros de religiões de matriz protestante não são o outro, o diferente. São os mesmos que dividem os locais de trabalho e demais espaços de convivência diária. Por que, então, em alguns ambientes a convivência é possível e em outros o conflito, simplesmente, é instalado? O Brasil está se tornando um país plural e não é possível fugir da realidade. Como quaisquer atores sociais, os evangélicos possuem demandas políticas em todas esferas da realidade: moral, social e econômica. Um segmento que ganhou força graças à abertura democrática, fruto da constituição de 1989 que reconheceu diversos grupos sociais como atores sociais e suas pautas como base para a construção de políticas públicas. É verdade que muitos setores aliados aos grupos Bolsonaristas, hoje, se mostram contrários e incomodados pela mesma constituição democrática que os beneficiou. É importante ressaltar que os evangélicos estão longe de representar uma unidade. São um grupo heterogêneo tendo entre eles espectros que variam desde o conservadorismo até planos progressistas.
Nos últimos tempos, muitos evangélicos foram levados a acreditar em falsas ameaças como fechamento de igrejas, kit gay e outros absurdos que prefiro nem citar neste texto. Agora que estas ameaças hipócritas, obviamente não se concretizaram, ficou clara a presença de personagens que usam de má fé e que possuem o controle de uma rede de comunicação eficaz contando com, além da tecnologia de comunicação, uma rede composta por pessoas que possuem relações íntimas cujo vínculo empresta legitimidade às informações difundidas. O tempo ou qualquer observação mais atenta basta para desmontar essas redes de fake news. É hora apontar o dedo para quem difundiu essas mentiras e buscar o diálogo com os evangélicos que também foram traídos pelos “falsos profetas”. Nenhuma igreja fechou, nunca houve uma política que impusesse o ensino do ateísmo nas escolas, tampouco o incentivo à sexualização precoce ou ao uso de drogas. Ao contrário, nos governos do Partido dos Trabalhadores houve liberdade de culto, alianças com igrejas evangélicas e convênio com instituições como creches e entidades de recuperação de adictos, dentre outras associações.
A convivência com a diferença é o pressuposto da existência de uma República. Muitas lideranças polarizam a sociedade: conservadores X progressistas; ateus X cristão… a verdade é que essas polarizações podem até existir, mas são situacionais. Por mais diferenças que existam entre evangélicos e ateus, por exemplo, ambos se reconhecem em relação a pautas como saúde, transporte ou redução da violência. Ou seja, existe um diálogo possível que contradiz essa polarização absoluta. Voltemos ao nosso caso: é necessário, acima de tudo, saber como dialogar, saber que existe uma população, como a moça amparada pelo pastor, que tem problemas urgentes e que precisa desse olhar. Se o poder público não fizer isso, as lideranças locais o farão. Caso encerrado.
A realidade pluralista (2)
Os avanços tecnológicos “encurtaram distâncias”, ou para utilizar uma expressão mais correta, “diminuíram o tempo necessário para que um ser humano estabelecesse contato com pessoas que vivem em espaços diferentes, em diferentes locais, ao redor do mundo. Hoje, grupos diversos, pessoas com visões diversas sobre a realidade convivem nos mesmos espaços. No Brasil, os protestantes são uma população cujos direitos foram negados por séculos como qualquer outra religião salvo a católica. Desde a década de 1960 vários grupos se organizaram como atores políticos, reivindicando seus direitos e obtendo vitorias políicas e sociais: feministas, LGBTQIA+ e negros, por exemplo. Inclusive, setores evangélicos tiveram papel crucial nessas lutas. Lembremos aqui da luta contra o racismo liderada pelo pastor Martin Luther King. Entretanto, como ressalta o professor Paulo Gracino “Mas, a cada demanda atendida, outras vão sendo criadas”.
As igrejas evangélicas no Brasil contam com uma avançada tecnologia social, complexa, que garante lazer, espaço de convivência, segurança espiritual e material a uma população que por muitos anos foi negligenciada pelo Estado. Inclusive, elas conseguem sustentar uma rede de cooperação social e econômica que assegura a sobrevivência de muitas pessoas. Ou seja, quando tratamos das religiões no Brasil, temos que compreender que estamos lidando com um fenômeno que está muito além dos discursos morais ou da simplória retórica sobre exploração da fé. Para se pertencer a qualquer grupo é necessário o respeito às regras morais. Ou seja, o comportamento do evangélico não é justificado, simplesmente, pela subordinação dos fiéis aos pastores mas, sim, pela sensação de pertencimento a um grupo. Os líderes têm uma importância, que, no entanto, dificilmente se sobrepõem à relação construída entre o grupo. Quantos pastores que ingressaram na política institucional não se elegeram ou não se reelegeram? A relação não é passiva.
Quando existem investimentos em um espaço público surge a possibilidade de pessoas que professam religiões diferentes perceberem, em uma conversa ao acaso, que elas têm mais em comum do que imaginam. Esse é um dos grandes “lucros” sociais gerados pelos investimentos nas melhorias urbanas de Contagem: “espaços de convivências”, por exemplo, onde indivíduos podem ter experiências comuns. Mas e quando esta convivência é ameaçada? À medida que um grupo sente sua vivência ameaçada esta coação tende a ser respondida com radicalismos e mesmo com violência. A compreensão e a as ações políticas voltadas para uma realidade pluralista são essenciais para evitar a barbárie.
O diálogo necessário
Dialogar não quer dizer concordar com tudo, mas muitas vezes reconhecer o direito de existir como bem fez o Governo de Marília Campos ao realizar a Marcha para Jesus em Contagem que aconteceu no dia 8 de julho de 2023. As reivindicações de um grupo não anula as de outros. A realidade prima pluralista. Ou reconhecemos isso ou lidaremos com os horrores que os radicalismos podem nos trazer. Por isso é essencial olharmos os evangélicos como sujeito político que deseja atendimento de qualidade nos postos de saúde, uma cidade sustentável, uma escola na qual eles também possam se expressar (como já acontece nas escolas contagenses), um transporte público de qualidade… ou seja, a maioria das suas reivindicações não são diferentes das que escutamos diariamente do restante da população. Portanto, existe muito o que dialogar. Assim como a jovem do relato que inaugura esse texto, temos uma população sofrida, massacrada em um cotidiano estafante, que quer acolhimento e qualidade de vida acima de tudo. É preciso escutar suas necessidades e devolver políticas públicas, como Marília Campos faz muito bem.
Chico Samarino é formado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, trabalha na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Contagem.
NOTAS
(1) Link para a entrevista: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/11/alianca-de-bolsonaro-com-evangelicos-e-pragmatica-e-pt-pode-se-reconciliar-diz-sociologo.shtml
(2) Sobre o conceito de pluralismo ler: BERGER, Peter L. Os Múltiplos Altares da Modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época pluralista. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017