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Fernando Abrucio: Lula III e o desafio da coordenação

Valor Econômico, 04/08/2023

É preciso colocar o diálogo político a serviço de boas ideias e dos melhores compromissos entre posições diferentes
O principal problema institucional brasileiro pode ser definido hoje, sinteticamente, pela palavra fragmentação, e sua solução passa pela ideia de coordenação. O sistema político tornou-se muito mais fragmentado do que já era e a capacidade de o presidente eleito governar depende muito mais de acordos e divisão de poder do que previa o presidencialismo de coalizão derivado da Constituição de 1988. Não obstante, é possível encontrar caminhos integradores entre os atores no curto prazo, embora seja muito difícil voltar, pelo menos no curto prazo, ao modelo que vigorou nas presidências anteriores de FHC e Lula. Entre o mundo ideal e as críticas à situação vigente, talvez haja um meio termo mais efetivo e menos romântico.

O modelo político brasileiro construído ao longo da redemocratização combinava ampla divisão de poderes com grande capacidade de comandar o processo político nas mãos do presidente da República e da União. De um lado, estava o aspecto consorciativo, com um sistema multipartidário, maior autonomia e salvaguardas federativas aos governos subnacionais, um reforço inédito de poder aos órgãos de controle e um Congresso bicameral capaz de exigir que só se poderia governar por coalizão, seja pela ausência de maioria parlamentar, seja pela necessidade constante de se aprovar reformas constitucionais ou, ainda, pela capacidade de pressionar o Executivo por meio de CPIs e, no limite, processos de impeachment.

É verdade que, do outro lado, havia fortes instrumentos majoritários nas mãos do Executivo federal. Entre esses mecanismos, estavam um conjunto grande de cargos comissionados de livre nomeação; um amplo poder de contingenciar e liberar recursos federais, inclusive de emendas parlamentares; poderes legislativos que permitiam pautar e determinar de forma eficaz o ritmo da aprovação de leis, com destaque para as Medidas Provisórias e para a dificuldade de acelerar a votação de vetos presidenciais; maior capacidade burocrática e recursos para induzir os governos subnacionais (sobretudo os municípios) a cooperarem com projetos comandados por Brasília. A agenda do país era predominantemente construída pelo presidente da República.

Um duplo processo alterou esse modelo político. Primeiro, de uma forma incremental, os demais poderes foram ganhando autonomia, com destaque para os órgãos de controle, e reformas para limitar o Executivo federal começaram a ser feitas desde os anos 2000. Mas a partir do governo Dilma, e com aceleração nos governos Temer e Bolsonaro, a transformação ganhou maior tração. O resultado disso, hoje, é um presidencialismo de coalizão diferente do original, num cenário em que predominam cinco elementos. Primeiro, a Câmara Federal e o Supremo Tribunal Federal ganharam maior centralidade, tornando-se impossível governar sem fazer pactos horizontais com ambos.

Há um atenuante em relação ao poder da Câmara Federal: o Senado tem constantemente regulado o poder da Casa vizinha, seja aliando-se ao Executivo federal, seja se tornando um contrapeso das grandes lideranças regionais frente aos interesses mais paroquiais dos deputados, ou então fazendo alianças com setores sociais e/ou federativos. Decerto que por vezes agem conjuntamente, porém, essa autonomia senatorial tem a prerrogativa de contrabalançar e dividir ainda mais o jogo governativo. Assim, soma-se mais um elemento de fragmentação do presidencialismo de coalizão.

Mais recentemente, uma segunda mudança gerou uma nova divisão no presidencialismo: foi criado um Banco Central autônomo, o que fraturou o poder de política econômica concentrado no Poder Executivo. Muitos podem ver aspectos positivos nesta mudança, só que, de todo modo, há aqui mais um campo de negociação e diálogo pelos quais o governo tem de passar se quiser governar.

Também houve, em terceiro lugar, uma redução do federalismo cooperativo erigido desde a Constituição de 1988. A União exercia uma coordenação federativa derivada da necessidade de estados e, especialmente, municípios terem o apoio federal para poderem exercer melhor suas funções. Não por acaso, o modelo de confronto e repasse de responsabilidades que imperou na era Bolsonaro teve um enorme impacto negativo sobre os governos subnacionais, aumentando a desigualdade territorial.

Da experiência traumática durante o bolsonarismo resultou uma combinação de duas demandas: os governos estaduais e locais querem hoje o retorno da cooperação e da coordenação federativas, mas num modelo em que haja maior autonomia e participação dos entes federativos em todo o processo decisório, pois também temem o centralismo.

Uma quarta mudança é paradoxal: apesar da redução do número de partidos no Congresso por conta dos efeitos da reforma eleitoral de 2017, aumentou a pulverização político-partidária. Isso se deve tanto à ausência de uma sigla hegemônica de centro, como fora o PMDB por mais de 20 anos, como também em razão de existir hoje uma maior divisão dentro dos partidos. O controle partidário está complexo neste momento e isso obriga o Executivo a negociar com mais atores e ter menos segurança em relação ao tamanho do apoio que terá.

Não só os outros atores ganharam mais poder, mas o governo federal já não tem o mesmo poder de antes. Essa é a transformação que coroa todo o processo. Seu poderio de agenda no campo legislativo reduziu-se, bem como sua força no campo orçamentário. Como também precisa dividir muito mais o governo para ter apoio parlamentar num Congresso pulverizado, será mais difícil coordenar as ações administrativas. O problema é que solução adotada por Bolsonaro, de terceirizar parcela vultosa dos recursos federais aos congressistas, fez com que perdesse a capacidade de produzir políticas públicas minimamente coerentes, o que foi um dos fatores de sua derrota eleitoral.

Algumas dessas mudanças no presidencialismo de coalizão são institucionalmente embasadas, outras são derivadas de fatores políticos conjunturais, como a polarização que afeta a dinâmica parlamentar e dos governos estaduais, além da necessidade de STF e TSE garantirem a democracia com poderes extraordinários. O quanto esse modelo extremamente pulverizado permanecerá no futuro? Já há pressões sociais para reduzir o poder político do sistema superior de Justiça, como também reclamações enormes contra a lógica do orçamento secreto, que, embora formalmente extinto, ainda tem guarida num modelo paroquial e fragmentado de emendismo parlamentar.

A dinâmica futura do sistema político dependerá basicamente dos sucessos de políticas públicas do governo Lula III. Como o clássico trabalho de Theodore Lowi mostrou, o êxito de políticas pode alterar a dinâmica da política. Desse modo, se a política econômica der certo, junto com boas ações setoriais, especialmente na área social, certamente a popularidade presidencial vai crescer. Se tal cenário se consolidar nos dois últimos anos de governo, obviamente que a maioria dos deputados, senadores e governadores vai querer apoiar o time da situação. Isso pode reduzir os efeitos da fragmentação e gerar um presidencialismo de coalizão mais equilibrado, inclusive com uma liderança mais forte do presidente da República.

Mas no curto prazo o jogo é mais difícil. A situação minoritária no Congresso Nacional, a polarização extremada alimentada pelo bolsonarismo, o poder de emergência constitucional conferido ao STF, a desconfiança de parte dos governos estaduais, o conflito com um BC autônomo, a dificuldade da maior parte do petismo de entender a necessidade de dividir o poder, em suma, todos os fatores fragmentadores estão, por ora, vencendo o jogo. Só que é possível enfrentar de forma incremental esse problema, melhorando a coordenação política e administrativa para colher frutos daqui a dois anos.

Resumidamente, há cinco formas de estratégias de coordenação que podem semear um poder futuro maior ao Lula III. Primeira, escolher poucos projetos legislativos prioritários, com maior apelo social, e liderados por governistas que saibam conversar com o sistema político. Segunda, ter uma parte central da agenda governativa que possa ser bem realizada sem a necessidade de alterações legais maiores. Terceira, dividir o poder e os recursos com o Centrão, mas criando alianças entre os ministérios, com projetos mais conjuntos e cooperativos entre os diversos grupos no poder, especialmente por meio de mecanismos de coordenação e apoio administrativo que favoreçam o sucesso de todas as políticas públicas, sejam as dos aliados mais fiéis, sejam as dos novos “companheiros”. Quarta, fortalecer a cooperação federativa e com a sociedade, sob uma lógica de parceria que facilita a boa implementação dos projetos e o reforço da legitimidade do governo federal.

Uma última forma de estratégia de coordenação frente à fragmentação vigente está no terreno de como fazer política. É preciso colocar o diálogo político a serviço de boas ideias e dos melhores compromissos entre posições diferentes. O ministro Fernando Haddad está provando que isso exige trabalho duro, mas é possível e gera frutos. Se todos no governo se comportarem assim, haverá mais chances de o sistema fragmentado pedir para ser mais governista a partir de 2025. Afinal, a perspectiva de manter-se no poder é o principal motor dos atores políticos.

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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