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SEÇÕES

Viviane França: O desafios de ampliar a cultura de segurança pública no cenário atual

INTRODUÇÃO

No último Encontro Nacional de Secretários de Segurança e Gestores da Área, ocorrido em Angra dos Reis-RJ em novembro de 2022, a Prefeitura de Contagem, através da Secretaria de Defesa Social, esteve representada. Fui convidada para falar sobre o tema “Instituições Organizacionais de Direitos Humanos e a Cultura de Segurança Pública.”

No presente artigo, busco trazer os pontos principais da minha fala, na qual busquei 1) situar o tema proposto na conjuntura recente do Brasil; 2) discutir os pressupostos teóricos que o tema levanta; 3) contextualizar sobre os desafios municipais na ampliação da segurança pública na atualidade considerando especialmente o fato de que o município tem protagonismo no desenvolvimento das políticas públicas e, especialmente, no contato direto com o cidadão; 4) apresentar algumas das ações e programas da Prefeitura de Contagem que são orientados pela perspectiva da construção da cultura de segurança pública articulada com a garantia dos direitos.

Pensar o desafio de ampliar a cultura de segurança pública no cenário atual ancorado na relação entre as instituições organizacionais de Direitos Humanos e a cultura de segurança pública é, além de instigador, uma necessidade e uma oportunidade grande.

INSTIGADOR porque nos últimos anos, pelo menos ganhou mais força de 2018 para cá (desenvolverei mais adiante), qualquer abordagem sobre direitos humanos e segurança pública passou a ser impensável, não somente entre os agentes que atuam diretamente nas políticas de segurança, como passou a ser um senso comum no conjunto da sociedade relacionar os defensores dos direitos humanos com a defesa de criminosos. Frases com “bandido bom é bandido morto” se tornaram banais, inclusive orientando a ação de gestores públicos em todos os níveis de governo.

É uma NECESSIDADE porque existe uma relação de causa e efeito entre a garantia dos direitos humanos e a ampliação da cultura de segurança pública, tanto nas instituições de segurança pública quanto na sociedade. Ou seja, ao contrário do que se convencionou nos últimos anos, defendo que a ampliação da cultura de segurança pública apenas será possível quando as políticas de segurança tiveram como eixo central da sua atuação a defesa e a garantia dos Direitos Humanos, que são (como conceituo adiante), em linhas gerais, a defesa dos direitos fundamentais das pessoas. Daí a pertinência dessa discussão.

E temos uma GRANDE OPORTUNIDADE porque passamos por um processo eleitoral singular no nosso país. Não somente um presidente foi eleito, mas governos Estaduais, Congresso Nacional, Assembleias Legislativas. Daí que discutir colocar esse assunto em pauta no processo de transição pode e deve incidir nas políticas públicas que serão reorientadas a partir de 2023.

CONTEXTUALIZAÇÃO

O tema da Segurança Pública ganhou grande destaque no debate público nos últimos anos. Ocorre, no entanto, que esse destaque se deu na perspectiva da construção de uma cultura da violência, da ostensividade, do medo, distinto da perspectiva que estamos discutindo aqui. Fazendo um recorte dos últimos 4 anos, elenco alguns acontecimentos que corroboram essa minha afirmação, são eles:

1) A Intervenção Federal no Rio de Janeiro, quando o exército assumiu o comando da segurança pública no Estado, um marco no protagonismo das forças armadas na política e na administração pública;

2) Assassinato da vereadora Marielle Franco que até hoje não foi desvendado, o que reforça a compreensão de impunidade;

3) A eleição de 2018, quando o então eleito, hoje ex Presidente da República (INELEGÍVEL), com um discurso que focava na pauta da segurança pública na perspectiva da ostensividade, da violência e abertamente contrário aos Direitos Humanos que desencadeou:
• O convite e a nomeação do ex-juiz Sérgio Moro (que ocorreu em 2019) para o Ministério da Justiça e da Segurança Pública com tudo o que representou a lava jato no Brasil, que passou assim a ser uma política de governo;
• A apresentação do chamado “pacote anticrime”, com excludente de licitude e todas as outras medidas tidas como “licença para matar” por muitos críticos;
• As medidas adotadas para facilitar a posse e o porte de armas e munições no Brasil.
Como falei, esse período foi marcado por uma espetacularização e da propagação da violência e do medo. Um processo de ideologização exacerbada da discussão sobre segurança pública do Brasil. Eu diria que vivemos um período de predominância de um discurso único.

Quero fazer um destaque: não faço, de forma alguma, uma dicotomia entre ostensividade e prevenção no debate sobre segurança pública; entre ação imediata para coibir e combater o crime e construção de uma cultura de segurança. Aliás, a ostensividade também contribui para a construção da cultura de segurança, desde que haja controle público sobre a ação ostensiva.

Concluo esta breve contextualização registrando que também foi nesse período que tivemos um ganho institucional importante, que foi a instituição, pela Lei 13.675 de 11 de julho de 2018, do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública e das diretrizes da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS). Em relação ao tema em debate, a referida lei preconiza, no Art. 4ª que trata dos princípios da PNSPDS, 16 princípios que, em sua maioria vão no sentido da prevenção e da construção da cultura de segurança pública.
Destaco aqui os incisos III, VII e IX que estabelecem, respectivamente, “proteção dos direitos humanos, respeito aos direitos fundamentais e promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana”, a “participação e controle social” e o “uso comedido e proporcional da força.”

CONCEITOS

Entrando diretamente no tema proposto, selecionei referências conceituais a partir das quais desenvolvi a minha exposição e elenquei os marcos legais que vão ao encontro da relação entre direitos humanos e cultura de segurança pública.

Direitos Humanos – “Direitos” são coisas às quais se tem direito, que são permitidas, ou ainda, liberdades garantidas. “Humano” refere-se a um membro da espécie homo sapiens; homem, mulher, criança; pessoa. ‘Direitos Humanos’, portanto, são direitos que as pessoas têm pelo fato de serem humanas.
Calcados no princípio do respeito ao indivíduo, os Direitos Humanos carregam o pressuposto fundamental de que cada pessoa é um ser moral e racional, que deve ser tratado com dignidade. São, portanto, direitos universais, ou seja, aos quais todos, sem exceção têm direito, independentemente de raça, cor, gênero, credo, nacionalidade ou classe social, bastando, para tanto, estar vivo. (ÂNGELO, 2020).

Cultura – O conceito de cultura ainda é difuso, entretanto, são identificados alguns aspectos convergentes, como os componentes ideológicos, pressupostos elaborados a partir de valores básicos arraigados, o sistema de crenças, o compartilhamento de símbolos, e os conhecimentos e as experiências necessárias para saber como agir e sobreviver em determinado contexto cultural (FERREIRA et al., 2002). Schein (1996) define cultura como padrão de suposições básicas compartilhadas e adquiridas por um grupo à medida que solucionava problemas de adaptação externa e integração interna. Esse padrão é transmitido aos novos membros do grupo como o modo correto de perceber, pensar e sentir em relação a esses problemas. (ARAÚJO; SANTOS, 2022)

Segurança Pública – Segurança Pública é a estabilização e a universalização de expectativas favoráveis quanto às interações sociais. Ou, em outras palavras, é a generalização da confiança na ordem pública, a qual corresponde à profecia que se autocumpre e à capacidade do poder público de prevenir intervenções que obstruam esse processo de conversão das expectativas positivas em confirmações reiteradas. Por isso, a postura dos policiais é tão importante: seu foco não são apenas os crimes, sua prevenção ou a persecução criminal, mas também o estabelecimento de laços de respeito e confiança com a sociedade, sem os quais a própria confiança nas relações sociais dificilmente se consolida. Ordem tem menos a ver com força ou repressão do que com vínculos de respeito e confiança. (SOARES, 2019)

Marco Legal

– Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – Decreto 1904/96
– Matriz Curricular Nacional (MCN) 2003 – Referencial para ações formativas dos profissionais de segurança pública, malha curricular e transversalidade dos direitos humanos.
– Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) – 5 Campos de Ações: Educação Básica, Educação Superior, Educação não Formal, Educação do Sistema de Justiça e Segurança
– Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH) – Portaria 98/2003

O CENÁRIO ATUAL E O PAPEL DOS MUNICÍPIOS

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano de 2019 divulgou uma pesquisa mostrando que entre 2002 e 2017, os municípios tiveram um aumento de 258% nos investimentos em segurança pública, o que supera muito o crescimento dos investimentos da união e dos estados.

Avançar na construção de uma cultura de segurança pública e na garantia dos direitos fundamentais das cidadãs e cidadãos, independentemente da delimitação de competências, os municípios desempenham um papel central, seja na execução e\ou acompanhamento de programas dos governos estaduais e federal, mas, principalmente, nos programas e ações próprios, especialmente aquelas voltadas para a população mais vulnerável e que é vítima da violação de direitos.

Nesse sentido, a questão orçamentária é muito importante, mas não menos importante é conferir o poder de articulador local aos municípios. Sem sombra de dúvida que “nada será como antes” depois da pandemia da COVID-19, principalmente na relação entre os entes da federação, os poderes e as instituições em geral. O poder local passou a ter mais força política, institucional e orçamentária em todas as políticas públicas, a começar pela saúde. Por isso, é importante colocarmos que, seguindo essa tendência, no desafio de conjugar a preservação dos direitos fundamentais e a construção da cultura de segurança, o município através das Secretarias de Defesa Social (como é o caso de Contagem), das Guardas Municipais contribuem e têm muito a contribuir.

CONTAGEM E A CONSTRUÇÃO DA CULTURA DE SEGURANÇA

Em Contagem, a gestão Marília Campos, na construção da cultura de segurança, trabalha com quatro eixos principais: a participação popular, a prevenção à violência, a capacitação do time e, a integração entre as forças de segurança.

Antes de começar a expor os eixos acima, busquei destacar a políticas de valorização da carreira da nossa Guarda Civil implementada na gestão da Prefeita Marília Campos como estruturante do êxito da política de segurança. Homens e mulheres capacitados, treinados e valorizados são determinantes para um trabalho harmônico e integrado.

Participação Popular: uma marca forte da gestão Marília Campos, a participação popular acontece em sentindo amplo na cidade, vai desde a construção da política pública (via conselhos regionais e conselhos temáticos, inclui-se nesse escopo o próprio Conselho de Defesa Social nomeado em 2023), passa pelas plenárias territoriais de balanço do governo com o momento de escuta da população, acontece na fomentação da ocupação dos espaços urbanos da cidade (praças, parques) através das feiras e das mais diversas atividades culturais, chegando a presença marcante da prefeita Marília nos espaços públicos, no acompanhamento das obras e das políticas públicas que a população acessa, permitindo a construção e, claro, a avaliação de um planejamento real, adequado periodicamente, e transparente, as claras do que é possível ou não realizar.

No escopo participação popular a Defesa Social realiza o Fórum de Segurança Pública que apresentará como resultado final a atualização do plano municipal de segurança. Tem como objetivo específico a construção de uma política municipal de segurança pública que se baseie na prevenção.

O Fórum está acontecendo, com previsão de conclusão no final do ano de 2023, e passa por todas as regionais de Contagem, dialogando com os segmentos sociais organizados, com os conselhos regionais e com a rede municipal.
Não obstante, a participação popular também é um dos escopos da construção da cultura de paz e da segurança nos territórios. Com a mobilização das pessoas, especialmente no acesso à informação sólida e na participação dos programas de prevenção, de denúncias… é que a cultura de segurança é disseminada no espaço urbano.
Prevenção a Violência: acontece com as patrulhas especializadas (Patrulha da Mulher, Patrulha Escolar, ROMU – Grupamento de Ronda Ostensiva Municipal, que monitora praças e parques) permitindo o atendimento humanizado, e dos programas de prevenção à violência que hoje tem como público-alvo crianças, adolescentes, jovens, mulheres os quais relaciono os três principais projetos

Juventude Cidadã: um programa de prevenção à violência que acontece dentro das escolas municipais, coordenado pela Defesa Social através da patrulha escolar e da superintendência de prevenção. Atinge regiões com vulnerabilidade social e dados de criminalidade. Tem uma ementa construída com base nos valores de cidadania, diversidade e direitos humanos. Forma lideranças jovens que passam a compreender o papel do município e especialmente das pessoas dentro da cidade, o papel da guarda municipal e dentro do percurso formativo como a juventude pode contribuir na construção e valorização das políticas públicas e da cidade. A formação acontece no período de três meses.

Juventude Ativa: programa de prevenção à violência que é desenvolvido dentro dos territórios de maior vulnerabilidade e índices de criminalidade, acontece dentro do território, conseguindo atingir também jovens que não acessam a escola, construído com o mesmo escopo formativo do Juventude Cidadã, conta com o apoio da rede municipal na mobilização. Público alvo jovens de 12 a 29 anos.

Visita Guiada: um projeto desenvolvido no espaço físico da Secretaria de Defesa Social, com os alunos da rede municipal de ensino. Nesse projeto os estudantes se dirigem até a sede da Secretaria de Defesa Social, e através de uma visita educativa guiada que passa pelos principais setores, os alunos aprendem como a Defesa Social atua na cidade, quais serviços coordenados e como acioná-los, dentre outros.

Capacitação: apresentamos um escopo formativo dos trabalhadores, principalmente da equipe operacional de abordagem, que vem acontecendo durante o ano, com temáticas relacionadas aos direitos humanos, a diversidade, a inclusão. A formação tem permitido um atendimento qualificado as pessoas, e um patrulhamento cada dia mais humano e cidadão.

Integração das Forças de Segurança: com o objetivo de otimizar o papel de cada frente de segurança dentro da cidade, trabalhamos de forma contínua a integração com todas as forças de segurança. A integração se dá pela por uma comissão, pelo Conselho de Defesa Social, e pelos grupos de trabalho para assuntos pontuais destacados no atendimento das ocorrências.

COMOVEC (Comissão de Monitoramento da Violência em Eventos Esportivos e Culturais): criada para análise e aprovação de grandes eventos na cidade que ocorrem na cidade. Coordenada pela Secretaria de Defesa Social reúne além das Secretarias afins do município, a Transcon, a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros de MG, que reúne mensalmente.

Conselho de Defesa Social: restruturado e empossado em 2023. Reúne além de representantes das secretarias municipais, sociedade civil organizada, representantes dos conselhos regionais, e forças de segurança. O Conselho é deliberativo, consultivo e se reúne mensalmente para tratar de temas relacionados com a segurança e a prevenção na cidade de Contagem. As pautas são sugeridas pela sociedade civil e/ou pelos membros do Conselho.

Além dos comitês, trabalhamos com grupos de trabalho temáticos para tratar de temas pontuais e específicos que surgem com periodicidade nos dados de ocorrências atendidas, como por exemplo o furto de cabos de telefonias. Os grupos de trabalho além de avaliarem e deliberarem ações específicas para essas ocorrências, trabalha de forma cooperada e integrada nas operações. Além do que relacionei acima, não posso deixar de citar o Centro Integrado de Comando e Controle, coordenado pela Defesa Social, responsável pelo videomonitoramento da cidade. O centro vem sendo restruturado objetivando integração em qualquer tipo de operação ou evento que ocorra dentro de Contagem. Destaco, por último, o trabalho intersetorial para a construção de protocolos de orientação e atendimento a segmentos e grupos vítimas de violência. Em parceria com a Superintendência de Políticas Públicas para as Mulheres e outros órgãos estamos construindo um protocolo voltado às mulheres.

Conclusão

A segurança trabalha mais do que nunca com todas as políticas públicas que democratizam o acesso das pessoas. O direito a segurança está dentro do rol dos direitos sociais, direito fundamental basilar para o exercício da cidadania, para garantia de outros direitos, liga-se ao acesso a direitos básicos, exigindo-se assim prestações sociais por parte do Estado. Somente com políticas públicas que articulem segurança e direitos que podemos pensar na efetividade dos direitos humanos, no respeito a diversidade e na construção da cidadania.

A cultura organizacional sofre influências de diversos aspectos, internos e externos, no qual se insere a formação dos seus integrantes, o direcionamento dado pelos seus líderes e o contexto social, como vimos.
Nesse sentido, o perfil das Guardas Civis deve ser comunitário, privilegiando o relacionamento e a interação com a comunidade, buscando a solução dos problemas junto a elas, como agentes de gestão territorial e de construção cidadã.

Em Contagem construímos essa perspectiva.

Viviane Souza França é advogada, mestre em Direito Público pela PUC/MG e especialista em Ciências Penais. Atua como Secretária de Defesa Social em Contagem.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Durval Ângelo. Conselhos de cidadania: exercício de democracia. Belo Horizonte-MG: Ed. do Autor, 2020.

ARAÚJO, Aline Consta Almeida; SANTOS, Anderson Pereira. Gestão de organizações de segurança pública: uma análise da cultura de segurança. Disponível em: amandalagreca,+10-1359-v16-n2-fev_mar-2022.pdf

SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos. Rio de Janeiro-RJ: Boitempo, 2019.

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