“Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei.”
Carlos Drummond de Andrade
O lançamento da revista “Contagem está feliz com Marília”, concebida por José Prata, com colaboração de outras criativas e cuidadosas cabeças e mãos, foi mais do que um evento e significa mais do que a quantidade de pessoas e a representatividade.
Foi um acontecimento, síntese de múltiplas e variadas determinações (passado), que é encontro de vontades que se tornam coletivas (presente) e que dispersará em interpretações, reinterpretações, relatos e compartilhamentos (futuro).
Acontecimento que convoca a pensar. E a primeira problematização que me faço é sobre o mais básico: o gesto de relatar, de narrar. Está tão em voga a palavra “narrativa”, usada e surrada à esquerda e à direita. Vazia de sentido.
A revista me fez lembrar “Em Defesa da História: Marxismo e pós-Modernismo”(1), uma coletânea de textos que discute o fenômeno político, cultural, social da pós-modernidade e que li há um bom tempo. Um dos pontos que atravessam os textos é que as ideias pós-modernas, que incidem fortemente sobre os atuais movimentos identitários (não por acaso objeto de reflexão crítica de Prata e de Marília), surgem no final dos anos 1960 e pós 1989 como contraponto à herança do iluminismo, das grandes narrativas, das ideias totalizantes, do marxismo, da ideia de nação, dentre outras. É o imperativo da fragmentação.
Pois a revista, como parte de um esforço permanente de sistematização da trajetória política de Marília Campos, empreendido por José Prata, Ivanir Corgosinho e outros, sob a liderança de Prata, é uma “grande narrativa”, no sentido clássico do termo.
A revista, estruturada a partir da experiência da Prefeita Marília Campos na gestão da Prefeitura de Contagem, traz muito mais do que relatos de ações e programas de um período da gestão pública. Ações, programas, realizações (obras, cumprimentos de metas etc.) são alinhavados por concepções, ideias, propósitos e práticas que conferem um sentido épico (de saga) à narrativa que tem na liderança de Marília um fio condutor.
É uma grande narrativa na medida em que busca retratar as coisas como elas são, mas que, pela inquietude e pela indignação de quem lidera, fala também das coisas como elas podem ser, como elas devem ser… estão sendo. Serão.
José Prata se assume, muito mais do que um parceiro, um intérprete de Marília. Da saga Marília Campos. Considero isso um valor, ainda mais por fazê-lo sempre buscando sair do simplismo de relatar fatos e ações, mas articulando realizações, história, filosofias, subjetividades, limitações, o que ações, história, filosofia. O gesto interpretativo, ao que me parece, funciona com uma provocação, uma problematização da construção permanente e dramática do “mito político” que é a liderança de Marília Campos.
O evento foi uma celebração, como tinha que ser. Como merecia ter sido. Em momentos como esse é natural a predominância de discursos elogiosos, tanto a quem liderou o judicioso trabalho de elaboração, envolvimento e escrita da publicação quanto à homenageada. Todos e todas, de um modo ou outro, fazem escolhas a partir de um olhar e de uma experiência para dar mais relevo a um aspecto ou outro da trajetória de Marília. E eis que permanece a grande pergunta que talvez seja a razão de ser da publicação e que Prata sempre se pergunta: qual é o segredo de Marília? E eu encerro a pergunta, afirmando, sem sombra de dúvida: não existe resposta; existem tentativas.
A revista, além de uma grande narrativa, que interpreta e projeta, é também uma grande, talvez a maior, a mais complexa tentativa e que, mais do que encerrar a pergunta, a atualiza e faz pessoa, como eu, refletir e tentar escrever algo, mas faz, sobretudo, centenas, talvez milhares de pessoas (homens e mulheres do povo) que nunca se darão conta de que estão a responder essa pergunta.
Na minha tentativa interpretativa, instigado pelo lançamento e pela leitura da introdução da revista, e principalmente por um aspecto da fala de Marília Campos, já peço desculpas caso eu não dê conta da intenção da minha proposta demasiadamente complexa.
O filósofo, escritor e professor italiano, Domenico Losurdo, em uma brilhante reflexão sobre o universal e o particular na decifração do que ele chama de “atormentado e processo de aprendizagem” que é governar, oferece uma chave interessante. Segundo Losurdo, “para chegar à ‘ação’, para conseguir realidade e eficácia e se tornar ‘vontade real’ – processe Hegel – a universalidade deve encontrar expressão em indivíduos concretos, ‘deve colocar no cume uma autoconsciência única.’ O universal deve abraçar o particular, deve ser tal que escolha em si ‘a riqueza do particular’.” E o particular seja expressão de universalidade (2).
Tudo bem que Losurdo e Hegel estavam a analisar processos históricos, a Revolução Russa e a Revolução Francesa, respectivamente. No entanto, tratavam de processos concretos de construção e líderes concretos que, a partir de programas que mobilizavam sonhos e desejos do povo, chegaram ao poder e tiveram que governar. É a política. E é isso o que assemelha as grandes nações e seus processos de mudança, sejam elas conjunturais ou estruturais com uma pequena cidade de qualquer lugar do mundo.
Calma, leitora amiga, não desista de mim! Vamos agora para o nosso caso. Dizer essas coisas todas como o queria Deomázio, dos Siqueiras, do conto “Famigerado”, de João Guimarães Rosa, que pediu a um médico que dissesse o significado da palavra famigerado “em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana(3).” Falo em universal e particular mais ou menos nos seguintes sentidos, respectivamente: universal – são os grandes sentimentos, os desejos e as grandes ideias gerais da humanidade: o amor, o ódio, a fraternidade, a amizade, o senso de justiça, a democracia, a liberdade, a história…; particular: as pessoas, os gestos, as ações, as realizações…
Marília, conscientemente ou não, consegue dar um conteúdo concreto e particular à universalidade na sua ação política, que se manifesta pelo que ela enuncia, mas também nas escolhas, que se materializam em programas e ações de governo, a forma como se relaciona com a cidade no cotidiano, que são, por ela, traduzidas e interpretadas pelo que elas possuem de possibilidade de universalidade. E as pessoas, por mais humildes que seja, pelas carências em função desigualdades, querem e precisam de coisas concretas, mas a humanidade que nos é inescapável se realiza em cada um de nós pela nossa ligação com a universalidade.
Marília, por fim, é uma líder que nos ensina porque mesmo que as leis não bastam!
Fagner Sena é Dirigente do PCdoB de Contagem, assessor na Secretaria de Governo e Participação Popular da Prefeitura de Contagem, bacharel e licenciado em letras.
NOTAS
(1) – WOOD, Hellen Meiksins & FOSTER, Johon Bellamy(org). Em Defesa da História – marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahad Ed, 1999.
(2) – LOSURDO, Domenico. Stalin – História crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Ravan Ed., 2010.
(3) – Sugiro muito a leitura do conto “Famigerado”, do livro “Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa. Fala de um homem muito bravo que foi chamado de famigerado por alguém e partiu em busca do médico da cidade, a pessoa supostamente mais culta, para lhe dizer o sentido da palavra. O poder da palavra. O poder dos sentidos.