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100 dias: os avanços nas relações civis-militares sob o Governo Lula , artigo de Ivanir Corgosinho

O objetivo deste artigo é fazer um breve balanço das relações entre o governo Lula e os militares nestes primeiros 100 dias de governo. A pretensão é demonstrar que, no período, caminhamos numa direção positiva, com avanços significativos e que, tudo indica, as soluções que apontei no artigo “O que o Brasil quer de seus soldados?”, publicado em Janeiro, são as que tendem a prevalecer, com o governo chamando os militares a cumprirem um papel relevante no projeto nacional de desenvolvimento e criando as condições para que isso aconteça. Ao mesmo tempo, voluntariamente, a caserna se afasta do bolsonarismo e se dispõe a um processo de despolitização que favorece o poder civil.

Parece-me que o fato mais notável na questão militar neste começo de governo, após o 8 de janeiro, talvez seja a atitude colaborativa do Alto Comando, que parece decidido a reduzir as áreas de aresta com o governo Lula. Os exemplos são vários e destaco alguns.

Em primeiro lugar, estão as substituições no topo da hierarquia. A saída do general Gustavo Henrique Dutra de Menezes da chefia do Comando Militar do Planalto (CMP), ocorrida neste começo de mês, parece ter concluído a lista de mudanças solicitadas diretamente por Lula. Com a mudança, ele deixou também o Batalhão da Guarda Presidencial, subordinado ao CMP. Além dele, no final de janeiro, foram trocados o ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid e o tenente-coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora, comandante do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), encarregado de proteger as sedes da Presidência da República. O primeiro foi barrado no comando do 1º Batalhão de Ações e Comandos, unidade de Operações Especiais, em Goiânia (GO), cargo para o qual havia sido designado no ano passado. Já Fernandes da Hora teve antecipada sua saída do comando da unidade, que estava prevista para fevereiro.

Noutro exemplo significativo, não houve contestação quando o ministro Alexandre de Moraes decidiu remeter à Justiça Comum, e não para a Justiça Militar, a responsabilização penal dos militares denunciados por envolvimento com os atentados em Brasília. Corretamente, penso eu, o ministro estabeleceu uma distinção entre “crimes militares” (cuja alçada é do Superior Tribunal Militar — STM) e “crimes cometidos por militares”, os quais, desde que não se enquadrem no primeiro tipo, competem à Justiça Comum. É indiscutível o avanço desta decisão em termos institucionais.

Bem entendido, crimes militares são a deserção, abandono do posto, traição, desobediência a ordem direta, entre outros. Neste caso, afirma Moraes, devem ir para o STM. Os demais pra o STF. Os atos do 8 de janeiro, tipificados como terrorismo e atentados contra a integridade da República e da democracia, estão previstos no Código Penal e, portanto, compete à Polícia Federal investigá-los e à Justiça Comum julgá-los.

Para surpresa de alguns observadores, a decisão de Moraes não foi contestada pela autoridade militar e, mais que isso, o novo presidente do STM, o Tenente-Brigadeiro do Ar, Francisco Joseli Parente Camelo, manifestou total apoio ao ministro do STF: “Li e reli a decisão do ministro Alexandre de Moraes e entendi que está muito bem fundamentada. Não vejo, no geral, que tenham sido crimes militares. Crimes cometidos por militares em situações de atividade serão considerados crimes militares se forem contra o patrimônio que esteja sob administração militar ou contra a ordem administrativa militar. Não vejo que houve isso”, disse Joseli Parente à coluna de Bela Megale no jornal O Globo.

Desta forma, 89 militares, incluindo três generais, relacionados no inquérito que tramita no Supremo Tribunal Federal, deverão prestar depoimento à Polícia Federal. Estavam intimados para depor na quarta (12/03), por exemplo, o já mencionado general Gustavo Henrique Menezes Dutra, o general Carlos Feitosa Rodrigues, então secretário de segurança da Presidência, e o general Carlos José Russo Assumpção Penteado, ex segundo em comando do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, conforme informações do jornal Folha de São Paulo.

Em março, para citar mais um exemplo da boa vontade dos quartéis, a Marinha emitiu comunicado — no que foi rapidamente seguida pelo Exército e pela Aeronáutica — determinando que os militares que ainda estejam vinculados a partidos políticos se desfiliem “no mais curto prazo possível”, sob risco de sanção disciplinar. A proibição de vínculo partidário aos militares é determinada pela Constituição, mas, segundo o próprio Exército, não vinha sendo fiscalizada e se acentuou sob o governo Bolsonaro. O movimento atende a outro pedido direto de Lula no sentido da despolitização das Forças Armadas.

Também é de enorme valor simbólico o fato de não ter havido celebração do 31 de março 1964 nos quartéis, prática acintosa pró-golpismo incentivada durante o governo Bolsonaro. De acordo com a Folha de São Paulo, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, novo comandante do Exército, chegou a ameaçar com punição os oficiais que comemorassem a data.

Finalmente, é importante registrar que o atual governo acabou com a diretoria do Ministério da Educação (MEC) responsável pelo Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), criado no governo Bolsonaro. Também não houve contestação.

Já pelo lado do governo federal, como eu havia antecipado no artigo de janeiro, prevalece o pragmatismo e o senso de oportunidade com duas metas claras: a primeira, desmilitarizar a presidência, ministérios e empresas públicas via a exoneração dos militares comissionados que ocupem postos-chave no Palácio da Alvorada e em outros setores do governo, inclusive no GSI e na segurança pessoal de Lula. Com isso, a presença castrense no governo vendo sendo exponencialmente reduzida desde o 8 de janeiro.

Faz parte desta estratégia a proposta de criação de uma carreira civil dentro do Ministério da Defesa de modo a reduzir a dependência de militares na estrutura do ministério, sobretudo nas chamadas “atividades meio”. De quebra, a iniciativa reforçaria o comando civil das Forças Armadas. Atualmente, a Defesa não conta com quadro próprio e seus funcionários são cedidos, na maioria, pelas três corporações militares. Nesta proposta, a ministra de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, deverá autorizar a realização de concurso público para a contratação de civis para cargos como “assistentes, analistas e especialistas em Defesa”.

A segunda meta é a despolitização da tropa. Nesse sentido, foi fundamental a substituição do empedernido general bolsonarista recém-empossado no comando do exército, Júlio Cesar de Arruda, pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva. Paiva está longe de ser de esquerda e chegou a declarar, já em plena posse do comando, que a vitória do Lula não correspondia à vontade da maioria dos militares. Inclusive a dele, conclui-se. Todavia, o general é conhecido por manter uma postura legalista e por defender o respeito ao resultado das urnas.

Entretanto, de fato, até agora, a iniciativa mais palpável no sentido da despolitização dos quartéis coube ao comando, com o já citado comunicado das três Armas sobre a necessidade de imediata desfiliação dos militares ainda filiados a algum partido político, sob pena de punição. O governo já anunciou que pretende encaminhar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) ao Congresso para proibir que militares permaneçam na ativa caso disputem eleições ou assumam um ministério do governo. Mas, não tem pressa e prefere deixar que as iniciativas do gênero (que implicam algum nível de reforma constitucional na questão militar) fiquem a cargo dos parlamentares da base de apoio.

É o caso do famigerado artigo 142 da Constituição, mobilizado por Bolsonaro e seus amigos para sustentar que um golpe militar no país teria amparo constitucional. A articulação de uma PEC reformulando esta passagem da Carta está nas mãos dos deputados Carlos Zarattini e Alencar Santana, ambos do PT de São Paulo. A minuta dos deputados, ainda não apresentada ao Congresso, proíbe o uso “do cargo, função ou arma para qualquer intervenção política”; a permanência na ativa de militares que forem exercer cargos públicos civis, e prevê a limitação ou mesmo a eliminação das chamadas ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), operações em que as Forças Armadas assumem funções policiais para garantir a lei e a ordem. O objetivo é delimitar mais claramente o papel das Forças Armadas— uma demanda compartilhada pelos próprios militares— mas, essa proposta, certamente, enfrentará resistência no comando.

Assim, o governo segue cauteloso naquelas questões que podem melindrar a vocação pretoriana da tropa e só avança onde tem segurança quanto à anuência do Alto Comando, como no caso da despolitização da tropa e da desmilitarização do governo.

Por outro lado e, ao mesmo tempo, Lula emite sinais fortes de que vai apostar na retomada de uma política nacional de defesa ambiciosa. Uma primeira evidência neste sentido é o orçamento do Ministério da Defesa para este ano (cerca de R$ 8,66 bilhões) que, embora insuficiente, garante o andamento dos principais projetos estratégicos da Aeronáutica, da Marinha e do Exército. Além disso, Lula determinou ao próprio vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin, e o ex-presidente do BNDES, Luciano Coutinho, a elaboração de um plano de fortalecimento da chamada Base Industrial de Defesa (BID). A prioridade é a recuperação das empresas do setor, entre elas, em primeiro lugar na lista, a Avibras, fabricante nacional de armas que está em processo de recuperação judicial e corre o risco de ser vendida a empresas de capital estrangeiro. Em perspectiva, entretanto, está a modernização e o fortalecimento do parque industrial militar brasileiro nos termos da chamada Indústria 4.0. Estamos falando, portanto, de investimentos em inteligência artificial, robótica, internet das coisas, computação em nuvem, automação, realidade ampliada, satélites, etc. Obviamente, este é um cenário que agrada muito a generais, brigadeiros e almirantes.

Encerrando este artigo, é necessário reconhecer que o governo Luiz Inácio Lula da Silva ainda enfrenta dificuldades para avançar em reformas de profundidade na Questão Militar e, quem sabe, exorcizar o eterno fantasma dos golpes. Sequer está garantido que haverá uma severa responsabilização disciplinar dos oficiais denunciados por envolvimento com o 8 de janeiro – que, aliás, foram poucos.

Entretanto, também é necessário reconhecer que existem avanços e que os militares têm se mostrado dispostos a colaborar, contrariando o discurso alarmista daqueles que se empenham em destacar a tradição conservadora, violenta e golpista das Força Armadas brasileiras.

Pessoalmente, não tenho dúvida sobre ser a memória uma frente fundamental de combate. Em política, entretanto, é preciso levar em conta tanto a cultura e as tradições quanto os interesses e atitutes concretas dos atores no curto e médio prazos em conformidade com os fatores que limitam as margens de ação em cada circunstância.

Neste caso, precisamos nos perguntar por qual motivo, apesar de sua tradição conservadora, violenta e golpista, as Força Armadas mudaram de atitude e, depois de flertarem descaradamente com a oportunidade golpista oferecida por Bolsonaro, passaram a colaborar com o Governo Lula, ainda que sem o entusiasmo que seria desejável.

Apresento duas razões para isso.

Em primeiro lugar, para parcela significativa do oficialato, o governo Lula não é fim do mundo. O balanço dos 13 anos de governos Lula e Dilma, entre 2002 e 2015, é positivo para as Forças Armadas, com a valorização das corporações e implementação de um amplo e ambicioso programa de investimentos na Base Industrial de Defesa (BID) que só foi interrompido com o impeachment de Dilma.

Em segundo lugar, está o isolamento do golpismo. Publiquei, em junho do ano passado, o artigo “Mesmo capenga, democracia brasileira pode barrar golpismo bolsonarista”, demostrando a inexistência das condições necessárias e suficientes para o sucesso de uma aventura golpista, ao estilo quartelada, naquele momento, no Brasil. De fato, o golpe não aconteceu e as respostas aos atentados do 8 de janeiro têm demonstrado que a democracia brasileira conta com grande apoio popular e institucional. Falta ao setor golpista das Forças Armadas, especialmente do Exército, o fundamental: força para reverter essa situação.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

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